A tese de onipresença do PCC exige cuidado. Até que ponto chega a sua influência? Como definir uma facção em evolução permanente? O que o assassinato de empresário em Guarulhos revela sobre o crime na elite paulistana?
Por Bruno Paes Manso, no Jornal da USP
A presença do Primeiro Comando da Capital (PCC) no debate público aumentou nas últimas eleições municipais. A facção foi citada pelos cinco principais concorrentes à Prefeitura de São Paulo, cada qual tentando colar no outro a imagem de conivente com o grupo. Pablo Marçal, o candidato-surpresa que quase chegou ao segundo turno, foi implicado de diversas maneiras.
Foram lembradas desde suas antigas ligações com quadrilhas de golpe financeiro em Goiás, que levaram à sua condenação em 2010, até suspeitas de envolvimento de seus aliados e correligionários com a facção. Leonardo Avalanche, presidente do PRTB, partido de Marçal, gabava-se em um áudio de WhatsApp de ter sido o responsável por “soltar o André do Rap”, considerado um dos principais traficantes internacionais brasileiros, que deixou a prisão em 2020 depois de obter um habeas corpus concedido pelo Superior Tribunal Federal (STF).
Também voltou a público a investigação da Polícia Federal contra seu sócio e amigo, o influencer fitness Renato Cariani, denunciado por ter emitido notas frias em sua empresa para desvio de toneladas de insumos químicos para refino de crack e cocaína. Outros dois dirigentes do PRTB eram acusados de usar dinheiro da venda de carros para a compra de cocaína, mediada por integrantes da facção. Marçal ainda concedeu a um piloto de avião acusado de transportar cocaína uma procuração para que ele o representasse junto ao governo federal para regularizar uma aeronave recém-adquirida.
O prefeito reeleito, Ricardo Nunes, não saiu ileso. Sua gestão foi apontada como suspeita de ter sido condescendente com a facção, já que o grupo se mostrou presente e atuante na administração municipal. Em abril de 2024, proprietários de duas empresas de ônibus da capital, Transwolff e UpBus, responsáveis por transportar milhares de passageiros na cidade, foram denunciados pelo Ministério Público por ligações com o PCC. A Justiça determinou que o prefeito assumisse a operação das empresas para evitar o colapso do sistema de transporte. Durante a campanha, Nunes precisou explicar por que pagou subsídio aos empresários denunciados.
Depois, o prefeito teve que justificar por que a Secretaria de Infraestrutura e Obras, responsável por mais de R$ 5 bilhões em contratos de obras de emergência, feitas sem licitação, tinha na chefia de gabinete Eduardo Olivatto, cunhado de Marcola. Eduardo era irmão de Ana Maria Olivatto, primeira mulher do chefe do PCC, assassinada em outubro de 2002. A morte dela promoveu uma guerra entre lideranças do PCC, que levou Marcola a assumir a chefia da facção em 2003.
Apesar de tantas suspeitas comprometedoras, quem mais se prejudicou foi o candidato Guilherme Boulos. No dia da eleição para o segundo turno, o governador Tarcísio de Freitas, que apoiou Ricardo Nunes, disse a jornalistas durante uma entrevista coletiva que escutas tinham identificado um “salve” orientando a votar no candidato do PSOL. Boulos não teve tempo suficiente para desmentir a notícia.
A recorrência do nome do grupo se justifica? Até que ponto a influência do PCC é real? A presença da facção no imaginário e nas conversas podem ser exageradas? Às vezes, o grupo parece uma assombração, vagando invisível por todos os cantos, aguçando o medo das pessoas e causando confusão, já que ninguém sabe ao certo do que se trata. Essa névoa dá margens a massacres, como os ocorridos em Santos e Guarujá, em que 84 pessoas foram mortas pela polícia ao longo de 2023 e 2024.
De fato, é preciso ter cuidado para abordar o assunto. Em primeiro lugar, porque a facção, para seguir viva e influente, precisa estar em permanente processo de transformação, o que tona difícil defini-la. Autoridades, jornalistas e pesquisadores vivem o desafio de compreender o funcionamento dessa rede de criminosos em transformação permanente. De outro lado, pode haver exagero. Muitas vezes, eu mesmo me questiono: o que cabe ao PCC e o que é resultado desse novo contexto criminal, mais profissional e lucrativo?
Ou seja, mais do que uma facção onipresente, às vezes, o que ocorre são ações de criminosos cada vez mais endinheirados e influentes, integrantes de uma rede horizontal poderosa e capitalizada pelo dinheiro do crime, cujos rastros de ilegalidade se apagaram depois de uma lavagem bem-feita e do ingresso em investimentos feitos na economia formal. Apesar de terem contatos com membros da facção, essa rede é beneficiária dessa nova ordem mais profissional e sofisticada, surgida com a ajuda das regras e mediação exercida pelos integrantes do PCC.
Apesar do envolvimento comprometedor de políticos e da máquina pública com o grupo, resta sempre o benefício da dúvida. Até que ponto houve dolo ou foram as autoridades e empresários ludibriados pela fachada de legalidade dos negócios ligados ao crime?
O caso da execução do empresário Antônio Vinícius Lopes Gritzbach mostra a complexidade dessas relações. O assassinato dele ocorreu à luz do dia, às 16 horas de uma sexta-feira, no Aeroporto de Guarulhos, um local fortemente vigiado por câmeras e por policiais. A ousadia e a precisão dos assassinos, que conseguiram escapar, mostram que os matadores tinham treinamento e sabiam o que faziam. Não eram amadores e contaram com informações privilegiadas, que permitiram a eles surpreenderem a vítima na hora exata.
A novela envolvendo a morte de Gritzbach tinha se iniciado anos antes. Corretor de imóveis nascido e criado na Zona Leste, ele vinha ajudando Anselmo Santa Fausta, conhecido como Cara Preta, apontado como traficante do PCC, que era acionista da UPBus, empresa de ônibus suspeita de lavar dinheiro do tráfico de drogas. Além de imóveis, com a mediação de Gritzbach, parte dos recursos de Cara Preta passou a ser investida em criptomoedas.
Segundo uma das versões para o início das rusgas entre os dois, Gritzbach teria perdido parte do dinheiro do investidor numa das baixas do mercado de criptomoedas. Cara Preta queria o dinheiro de volta e passou a ameaçá-lo. Gritzbach teria, então, matado seus potenciais algozes contratando um pistoleiro. Além de Cara Preta, morreu na ação Antonio Corona Neto, o Sem Sangue, em dezembro de 2021.
Outras hipóteses relevantes surgiram para explicar o homicídio. Policiais envolvidos no esquema milionário associados a traficantes e lavadores de dinheiro poderiam ter sido responsáveis pelo crime. Gritzbach, afinal, havia prestado depoimento na Corregedoria da polícia oito dias antes de ser morto. Isso talvez ajudasse a explicar uma suposta ajuda dos policiais envolvidos em sua escolta com a execução do crime.
Ainda é preciso aguardar as investigações para saber o que de fato ocorreu. Mas há um fato inegável: o crime e o tráfico estão mais influentes nas altas esferas da economia e da política paulistana. Os pequenos traficantes de antigamente, que se envolviam em conflitos violentos nas quebradas paulistanas para ganhar uma mixaria no varejo das drogas, fazem parte do passado. Entra em cena o fluxo grosso de capital movimentado pelo atacado da cocaína, commodity cada vez mais importante na economia nacional, cujos lucros são mais elevados do que qualquer outro produto agrícola, por ser ilegal e assim alcançar valores estratosféricos no mercado internacional.
Além da estrutura de transporte da cocaína dos Andes para a Europa, o fluxo da mercadoria depende cada vez mais de empresários cheios de dinheiro para corromper as autoridades que facilitem esse trânsito, além de uma nova infraestrutura de lavagem, que passa por investidores em criptomoedas, exchanges, bancos virtuais, influenciadores digitais, donos de casas de apostas, articuladores de pirâmides financeiras, entre outros atores. Pelo rumo que as coisas vão, fica evidente a necessidade de mudanças na estratégia da polícia para lidar com o problema. Em vez da fracassada guerra às drogas nas favelas, um bom começo seria usar o tirocínio para a realização de flagrantes em donos de Porsches, Ferraris e BMWs e nos proprietários de apartamentos de luxo espalhados pelas diversas capitais do Brasil.