A faca no pescoço. Por Marilena de Souza Chaui; Luís César Oliva & Homero Santiago

Reflexões sobre o novo modelo de pós-graduação das universidades públicas paulistas.

A Terra é Redonda

Há algumas semanas circulou na grande imprensa e nos veículos institucionais da USP um novo modelo de pós-graduação proposto pelas universidades públicas paulistas com anuência das agências de fomento (Capes e Fapesp); anúncio que foi recebido com aplausos nos editoriais dos grandes jornais.

Um esboço do mesmo projeto já havia sido ventilado no início do governo de Jair Bolsonaro, a partir de um acordo assinado pela USP e pela Capes e posteriormente engavetado – ou assim se acreditava. Por isso, não sem surpresa, a comunidade universitária ficou sabendo, majoritariamente pela imprensa, que esse acordo foi retomado, incluindo agora todas as universidades públicas paulistas e, além da Capes, também a Fapesp.

Ainda que a cúpula das universidades e suas pró-reitorias de pós-graduação tenham discutido longamente o projeto, é preciso destacar que a maior parte dos professores e alunos das universidades não tomaram parte nesta discussão. Todas as motivações de tais mudanças foram constatadas e elencadas pela cúpula, não pela base, da comunidade universitária. E quais mudanças são essas?

Partindo da premissa de que o processo de formação dos doutores no Brasil é mais longo do que nos países centrais (entenda-se: América do Norte e Europa) e supostamente alheio às exigências do mercado de trabalho, o projeto propõe, na prática, a supressão do mestrado como etapa intermediária na formação de doutores. Se aderirem ao modelo, os programas de pós-graduação, que hoje comportam três entradas independentes – o mestrado, o doutorado direto e o doutorado simples (para quem já tem o mestrado) –, passarão a ter uma única entrada. Inicialmente, todos os alunos seriam selecionados para o primeiro ano de mestrado, sem um projeto de pesquisa e sem orientador.

No decorrer desse primeiro ano, enquanto cursam disciplinas de caráter interdisciplinar, incluindo estágios fora da universidade, os alunos deverão “achar” um orientador e desenvolver um projeto de pesquisa, sendo submetidos, ao final, a um exame de qualificação. Neste exame, esses alunos, que a essa altura mal terão delineado seu projeto de pesquisa, terão três destinos possíveis: a reprovação, a aprovação para continuar o mestrado por no máximo mais um ano e, finalmente, para não mais do que 30% dos candidatos, conforme previsto no novo modelo, a passagem para o doutorado direto, que será concluído em quatro anos.

Ao todo, cinco anos de formação, sendo que apenas quatro com projeto e orientador definidos. Os “eleitos” para seguir no doutorado, se contemplados com bolsas da Capes, terão complementações da Fapesp até equipararem os valores desta agência, mas (detalhe fundamental) haverá no máximo 90 complementações para toda a USP (conforme a minuta do projeto divulgada pela direção), o que deve corresponder a uma ou duas por programa de pós-graduação.

Para as outras universidades que não a USP, ainda menos. Em suma, teremos concentração de recursos num grupo de doutores que se formará mais rapidamente, em contraste com o modelo atual, que prevê um mestrado de três anos em média (com dois anos de bolsa) e o doutorado de quatro anos. Ou seja, do ponto de vista dos formuladores do projeto, mais economia e agilidade na formação de pesquisadores para o Brasil. O diabo, porém, mora nos detalhes.

Dito isso, alguém poderia perguntar: por que dizer que isso implicará a supressão do mestrado, se esse título continuará existindo para 70% dos alunos de pós-graduação? E por que tal supressão seria um problema?

Comecemos pela segunda pergunta. O mestrado é o momento em que o jovem pesquisador se familiariza com as ferramentas de pesquisa de sua área e experimenta a sua própria capacidade de formulação conceitual, resultando em um trabalho que não se espera que seja radicalmente original, mas que será novo na abordagem.

Independentemente do ineditismo da dissertação que coroa o processo, o principal resultado do mestrado está no próprio pesquisador, que se torna apto a se aventurar, no doutorado, em um projeto realmente novo e relevante para sua área, o que seria impossível antes de ter o domínio das técnicas de pesquisa e, sobretudo, a maturidade intelectual para tanto. A autonomia do pesquisador não é um “dado”, mas precisa ser conquistada no processo de formação, para o qual o mestrado tem papel essencial, a não ser que se entenda a pesquisa dos doutorandos como mero apêndice do trabalho dos orientadores.

É igualmente no mestrado que muitas deficiências de formação básica de alunos oriundos de centros menos estabelecidos são sanadas, tornando-os aptos a uma pesquisa de doutorado em condições de igualdade com alunos dos grandes centros do Brasil e do mundo. Não por outra razão, com é cristalino a quem quiser, os alunos de mestrado das grandes universidades brasileiras têm sucesso quando vão fazer o doutorado (ou estágios durante o doutorado brasileiro) em Roma ou na Sorbonne, mesmo sem ter saído de um liceu clássico italiano ou de uma escola preparatória francesa.

Também é preciso lembrar que nesses grandes centros americanos e europeus o mestrado continua existindo! Ele pode ter formatos diversos, mais longos ou mais curtos, mais teóricos ou mais técnicos, mas mantém o mesmo papel fundamental na formação de futuros doutorandos ou de profissionais que decidam ir diretamente para o mercado de trabalho depois dessa primeira experiência de pesquisa.

Vale lembrar que a importância formativa do mestrado não elimina a possibilidade do doutorado direto, modalidade já prevista no sistema atual, apenas não tornada regra para todo ingressante.

Porém a realização do doutorado direto, sem o mestrado, só é viável se cumpridas algumas condições: (a) a originalidade e complexidade do projeto proposto, que, por sua dificuldade de execução, demanda um tempo mais longo do que o mestrado regular; (b) a posse, pelo pós-graduando, do instrumental necessário para tal execução, o que pode envolver, por exemplo, técnicas laboratoriais ultraespecializadas ou o conhecimento de línguas clássicas, como grego e latim; (c) a comprovada maturidade intelectual do pós-graduando, o que, em muitas áreas, é tão importante quanto raro em alunos recém-formados.

Todos os orientadores conhecem casos bem-sucedidos de doutorado direto feitos por alunos que reuniram as condições anteriores, mas a excepcionalidade destas circunstâncias exige uma avaliação particular, não podendo tornar-se regra geral.

Estabelecido que o mestrado não é uma perda de tempo, nem uma jabuticaba brasileira, podemos voltar à primeira pergunta e entender por que a proposta em tela coloca em risco o mestrado. Mesmo não deixando de existir, o que representará o título de mestre nesse novo modelo? Em vez de ser a comprovação de que o aluno está pronto para enfrentar uma pesquisa inovadora de maneira autônoma, esse título será a marca do seu fracasso na tentativa de se tornar um pesquisador.

Além disso, obrigado a executar em apenas um ano um projeto que terminou de ser elaborado na altura do exame de qualificação, o mestrando dificilmente produzirá algo melhor do que um bom trabalho de conclusão de curso de graduação. Mais prêmio de consolação do que prova de qualificação, o título de mestre persistirá no papel, mas o mestrado deixará de existir enquanto etapa de formação do pesquisador.

Além disso, a proposta não diz como estabelecer os 30% vencedores da batalha fratricida da qualificação, considerando que as dezenas de bancas terão membros diferentes que não poderão comparar os trabalhos uns com os outros. Bem como não diz se terão acesso a bolsas de estudo esses 70% perdedores que serão remanejados para o mestrado acelerado. E tampouco diz se esses perdedores que concluíram o mestrado poderão ter bolsas em um eventual doutorado simples feito na sequência.

Não nos enganemos: nas áreas de pesquisa básica, os mestrandos e doutorandos não podem manter-se sem bolsa, portanto a não promoção ao doutorado direto provavelmente significará a exclusão pura simples de um contingente expressivo de jovens pesquisadores, expulsos do sistema antes de alcançar as ferramentas necessárias para o trabalho de pesquisa. Os pressupostos da reforma partem do diagnóstico de que o sistema atual é excludente, por exigir um projeto de pesquisa para entrada no mestrado, e pouco atrativo, por sua longa duração.

Ora, a exclusão de 70% dos candidatos aptos não é muito mais excludente? A precariedade da formação acelerada não é muito menos atrativa, visto que a função essencial do doutorado é produzir pesquisadores autônomos? Também não devemos esquecer que os programas de pós-graduação do Brasil têm incluído cada vez mais ações afirmativas nos seus processos seletivos, entendidas como uma justa reivindicação em uma sociedade tão desigual como a nossa. Tudo leva a crer que esses beneficiários estarão entre os primeiros limados ao final do primeiro ano de pós-graduação.

Todas essas preocupações poderiam ser relativizadas levando em conta que a adesão ao novo modelo é voluntária, de modo que cada programa de pós-graduação pode decidir livremente, de acordo com suas características próprias, se entrará ou não. É aí, porém, que a anuência das agências (Capes e Fapesp) nos deixa a todos inseguros.

Nos corredores da universidade, o que se teme é que a partir da implantação do modelo (já no início de 2025) os programas que não aderirem terão dificuldades na atribuição de bolsas Capes para seus alunos de mestrado e doutorado simples. No caso da Fapesp, em que os pedidos de bolsa são individuais, teme-se uma priorização e concentração de recursos nos alunos de programas que façam parte do novo modelo, em prejuízo dos pedidos de mestrados e doutorados tradicionais. Enquanto essa preocupação pairar, não se poderá falar em adesão livre ao projeto.

A discussão sobre a perda formativa do modelo, amplamente reconhecida por colegas de várias áreas, fica prejudicada pela convicção de que a decisão, ao fim e ao cabo, não será nossa, mas das agências, das quais nossos alunos dependem. É delas, portanto, que esperamos esclarecimentos precisos para que uma decisão tão importante para o futuro da pós-graduação na USP possa vir de uma reflexão séria, ponderada e autônoma de cada programa, e não com uma faca no pescoço.

*Marilena Chaui é professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Em defesa da educação pública, gratuita e democrática (Autêntica).

*Luís César Oliva é professor do Departamento de Filosofia da USP.

*Homero Santiago é professor no Departamento de Filosofia da USP.

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