A Batalha entre os Estados e as Big Techs: quem controla os números, controla o poder

A regulação das plataformas digitais se tornou um dos principais desafios para as democracias contemporâneas. O debate sobre a liberdade de expressão e o combate à desinformação tem se mostrado delicado

Erik Chiconelli Gomes*, Le Monde Diplomatique

O processo de racionalização da administração pública, consolidado a partir do século XVIII, estabeleceu as bases para uma nova forma de compreensão e gestão das populações. Essa transformação fundamental alterou não apenas os mecanismos de governo, mas toda a estrutura de conhecimento sobre as sociedades modernas. O desenvolvimento das instituições estatísticas nacionais representou um marco decisivo nessa trajetória, instituindo metodologias sistemáticas para a coleta e análise de dados populacionais.

A consolidação deste modelo de governança baseado em evidências encontrou terreno fértil nas sociedades europeias do século XIX, onde a necessidade de compreender e administrar populações cada vez mais urbanizadas demandava instrumentos precisos de mensuração social. O surgimento de departamentos estatísticos governamentais estabeleceu um novo paradigma na administração pública, fundamentado na quantificação sistemática de fenômenos sociais.

As transformações sociais decorrentes da industrialização intensificaram a necessidade de dados precisos sobre população, produção e consumo, consolidando definitivamente o papel das instituições estatísticas como pilares fundamentais da administração pública moderna. A racionalização dos processos de coleta e análise de dados tornou-se imperativa para a gestão eficiente dos recursos e para o planejamento estratégico das nações.

Neste contexto, como observa Alain Desrosières em The Politics of Large Numbers: A History of Statistical Reasoning[1]: “a estatística moderna emergiu como uma linguagem comum entre o Estado e a sociedade, estabelecendo bases objetivas para o debate público e a formulação de políticas”. Esta perspectiva é corroborada por Theodore Porter em Trust in Numbers: The Pursuit of Objectivity in Science and Public Life[2], que analisa como a quantificação se tornou um instrumento de autoridade política e administrativa.

O processo de internacionalização dos padrões estatísticos, intensificado no período pós-guerra, representou um marco fundamental na consolidação de metodologias compartilhadas globalmente. Este movimento permitiu a comparabilidade entre diferentes realidades nacionais e estabeleceu bases comuns para a compreensão de fenômenos sociais em escala global.

O surgimento de organizações internacionais dedicadas à padronização estatística fortaleceu ainda mais este processo de homogeneização metodológica. A criação de protocolos compartilhados e a definição de padrões universais de mensuração constituíram um passo decisivo para a consolidação de uma linguagem estatística verdadeiramente global.

Como destaca Martin Bulmer em The Social Survey in Historical Perspective[3], “a padronização internacional das metodologias estatísticas representou não apenas um avanço técnico, mas uma verdadeira revolução na forma como as sociedades compreendem a si mesmas”. Esta observação é complementada por William Alonso e Paul Starr em The Politics of Numbers[4], que analisam as implicações políticas da padronização estatística internacional.

A emergência da era digital, contudo, introduziu novos desafios a este modelo consolidado de produção e análise de dados estatísticos. A proliferação de fontes não convencionais de informação e a capacidade sem precedentes de coleta e processamento de dados alteraram profundamente o panorama da produção de conhecimento sobre as sociedades contemporâneas.

Com o avanço tecnológico, a velocidade e o volume da produção de dados ultrapassam significativamente a capacidade das estruturas tradicionais de processamento e análise. Este fenômeno tem provocado uma transformação radical na forma como as informações são produzidas, distribuídas e consumidas na sociedade contemporânea.

Como argumentam Viktor Mayer-Schönberger e Kenneth Cukier em Big Data: A Revolution That Will Transform How We Live, Work, and Think[5], “a revolução dos dados está alterando fundamentalmente não apenas como conhecemos o mundo, mas também como interagimos com ele”. Esta perspectiva encontra eco nos trabalhos de Safiya Noble, Algorithms of Oppression[6], que analisa as implicações sociais e políticas da concentração do controle sobre dados digitais.

A ascensão das grandes empresas de tecnologia como principais depositárias e processadoras de dados sociais representa um desafio significativo para as instituições estatísticas tradicionais. O poder informacional concentrado nas mãos dessas corporações questiona o monopólio histórico dos Estados sobre a produção de conhecimento estatístico oficial.

Esta nova realidade tem gerado tensões significativas entre os modelos tradicionais de produção estatística e as novas formas de coleta e análise de dados. A capacidade das big techs de processar volumes massivos de informação em tempo real contrasta com os métodos mais lentos, porém mais rigorosos, das instituições estatísticas oficiais.

As tensões entre as instituições democráticas e as grandes plataformas digitais têm se intensificado globalmente, com particular destaque para o caso brasileiro, onde o embate entre o poder judiciário e as big techs alcançou níveis sem precedentes. O fenômeno reflete uma disputa mais ampla pelo controle dos fluxos informacionais e pela regulação do espaço público digital.

Danah Boyd, em It’s Complicated: The Social Lives of Networked Teens[7], argumenta que “as plataformas de mídia social não são apenas intermediárias neutras de conteúdo, mas sim atores políticos com poder significativo sobre o discurso público”. Esta perspectiva é aprofundada por José van Dijck em The Culture of Connectivity[8], que analisa como as plataformas digitais moldam ativamente as relações sociais e políticas.

A complexidade deste cenário se manifesta na crescente tensão entre a soberania nacional e o poder transnacional das corporações tecnológicas. A capacidade destas empresas de influenciar processos políticos e sociais através do controle dos fluxos de informação tem suscitado respostas cada vez mais assertivas por parte das instituições democráticas.

O caso brasileiro exemplifica de maneira contundente este embate. A resistência das plataformas em adequar suas políticas às demandas regulatórias nacionais tem gerado atritos significativos com o poder judiciário, especialmente no contexto do combate à desinformação. Este cenário evidencia os desafios da governança digital em um mundo onde as fronteiras entre o nacional e o transnacional se tornam cada vez mais fluidas.

Como destaca Tarleton Gillespie em Custodians of the Internet[9], “as plataformas digitais assumiram um papel central na moderação do discurso público, exercendo um poder que tradicionalmente pertencia às instituições democráticas”. Esta observação encontra ressonância nos trabalhos de Frank Pasquale, em The Black Box Society[10], que examina as implicações do poder algorítmico das big techs para a democracia.

A regulação das plataformas digitais emerge como um dos principais desafios para as democracias contemporâneas. O equilíbrio entre a preservação da liberdade de expressão e o combate à desinformação tem se mostrado particularmente delicado, especialmente em contextos de polarização política e fragilidade institucional.

O desenvolvimento de marcos regulatórios adequados à era digital tornou-se uma prioridade para diversos países, com iniciativas que buscam estabelecer parâmetros claros para a atuação das plataformas sem comprometer a inovação tecnológica. A experiência brasileira neste campo tem se mostrado particularmente relevante, com o desenvolvimento de instrumentos jurídicos específicos para o enfrentamento da desinformação.

O cenário atual demanda uma redefinição dos papéis tradicionalmente atribuídos às instituições estatais e às corporações privadas na governança da informação. A necessidade de estabelecer mecanismos efetivos de accountability para as plataformas digitais, sem comprometer sua capacidade de inovação, emerge como um dos principais desafios para as democracias contemporâneas.

Referências:

Alonso, William, and Paul Starr. “The Politics of Numbers.” New York: Russell Sage Foundation, 1987.

Benkler, Yochai. “Network Propaganda: Manipulation, Disinformation, and Radicalization in American Politics.” Oxford: Oxford University Press, 2018.

Boyd, danah. “It’s Complicated: The Social Lives of Networked Teens.” New Haven: Yale University Press, 2014.

Bulmer, Martin. “The Social Survey in Historical Perspective, 1880-1940.” Cambridge: Cambridge University Press, 1991.

Desrosières, Alain. “The Politics of Large Numbers: A History of Statistical Reasoning.” Cambridge: Harvard University Press, 2002.

Gillespie, Tarleton. “Custodians of the Internet: Platforms, Content Moderation, and the Hidden Decisions That Shape Social Media.” New Haven: Yale University Press, 2018.

MacKinnon, Rebecca. “Consent of the Networked: The Worldwide Struggle for Internet Freedom.” New York: Basic Books, 2012.

Mayer-Schönberger, Viktor, and Kenneth Cukier. “Big Data: A Revolution That Will Transform How We Live, Work, and Think.” Boston: Houghton Mifflin Harcourt, 2013.

Noble, Safiya Umoja. “Algorithms of Oppression: How Search Engines Reinforce Racism.” New York: NYU Press, 2018.

Pasquale, Frank. “The Black Box Society: The Secret Algorithms That Control Money and Information.” Cambridge: Harvard University Press, 2015.

Porter, Theodore M. “Trust in Numbers: The Pursuit of Objectivity in Science and Public Life.” Princeton: Princeton University Press, 1995.

Notas:

[1] (Harvard University Press, 2002, p. 147)

[2] Princeton University Press, 1995.

[3] Cambridge University Press, 1991, p. 89.

[4] Russell Sage Foundation, 1987.

[5] Houghton Mifflin Harcourt, 2013, p. 73.

[6] NYU Press, 2018.

[7] Yale University Press, 2014, p. 182.

[8] Oxford University Press, 2013.

[9] Yale University Press, 2018, p. 45.

[10] Harvard University Press, 2015.

*Erik Chiconelli Gomes é pós-Doutor – FDUSP.

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