Nota Pública do Conselho de Lideranças do Povo Guató no Guadakan/Pantanal sobre a situação da saúde indígena nas comunidades de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul

Durante parte do século XX, o povo Guató foi tido como “extinto” no Brasil. No entanto, nunca deixamos de existir e resistir à nossa maneira no Pantanal ou Guadakan, o mundo das águas onde somos o que somos. A partir de 1976, a comunidade da Aldeia Uberaba, localizada na TI (Terra Indígena) Guató, rompeu com a dolosa situação de invisibilidade étnica em Corumbá, Mato Grosso do Sul. No começo da década de 2000, a comunidade da Aldeias Aterradinho e São Benedito, situadas na TI Baía dos Guató, fez o mesmo em Barão de Melgaço, Mato Grosso. Em 2023, a comunidade da Aldeia Barra do São Lourenço seguiu o mesmo caminho em Corumbá e rompeu com o rótulo de “ribeirinhos”, imposto mais recentemente, em pleno século XXI, a muitos coletivos
originários. Outros patrícios ou parentes poderão fazer o mesmo daqui em diante.

A classificação de várias comunidades do povo Guató como “ribeirinhas” tem sido feita com apoio de ONGs (Organizações Não Governamentais), representantes das elites econômicas e políticas locais, pesquisadores, agentes públicos e órgãos do Estado Brasileiro. Sendo “ribeirinhas”, não teriam direitos originários sobre as terras tradicionalmente ocupadas, tampouco receberiam assistência por parte da FUNAI (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) e da SESAI (Secretaria Especial de Saúde Indígena). Sequer teriam acesso ao tratamento dispensado pelo MPF (Ministério Público Federal) para garantir direitos aos povos originários. Isso tem ocorrido porque as comunidades do povo Guató estão estabelecidas em lugares distantes dos centros
urbanos, onde o principal meio de transporte são as canoas de um pau só e embarcações a motor. No Pantanal profundo, a ausência eficaz e moralizadora do Estado Brasileiro aumenta a vulnerabilidade social e favorece a perpetuação de várias formas de violência contra nossas comunidades, inclusive para a transformação de terras indígenas não regularizadas em propriedades privadas e unidades de conservação.

Segundo a maneira de pensar de muitos não indígenas, o destino natural do povo Guató seria o de ser assimilado e transformado em “ribeirinhos”, peões de fazenda e trabalhadores braçais em contextos urbanos. Quando usamos roupas e celulares, por exemplo, para eles deixaríamos de ser indígenas. Caso tenhamos a pele mais escura, atribuem a nós o rótulo de “quilombolas” sem, contudo, jamais termos acionado a Fundação Palmares para esse tipo de reconhecimento étnico. Quando a pele de muitos de nós é mais clara, seríamos descendentes de argentinos, paraguaios e outros estrangeiros.

Enfim, para nossos opositores, seriamos qualquer coisa, menos um povo originário. Por isso, até hoje sofremos diversas formas de preconceito etnicorracial e o abandono por parte de setores do poder público. Neste contexto, desde o ano de 2020 que nossas comunidades passaram a sofrer impactos negativos decorrentes dos incêndios florestais que têm destruído a planície
pantaneira. Grande parte dos incêndios são a tentativa de fazendeiros e aliados de expulsar do Pantanal muitas famílias e comunidades indígenas, especialmente as que ainda não
conseguiram romper com a situação histórica de invisibilidade étnica. Naquele ano, a TI Baía dos Guató teve mais de 80% de suas matas devastadas pelo fogo. A comunidade da Aldeia Barra do São Lourenço também enfrentou o mesmo problema em seu território. A TI Guató, por sua vez, foi acudida em tempo e não registrou perda da cobertura vegetal.

Em 2024, os incêndios voltaram a assolar a região, mas felizmente nossas comunidades foram socorridas rapidamente. Por isso, somos gratos a todas as pessoas e instituições que nos apoiam nas lutas pela preservação do Pantanal e sobrevivência nos territórios. Apesar da ajuda recebida, na Barra do São Lourenço muitas pessoas, incluindo crianças e idosos, passaram a apresentar problemas respiratórios por conta de inalação da fumaça dos incêndios. Além disso, em todas as comunidades as águas de rios, corixos (canais) e baías foram contaminadas por cinzas e por meses se tornaram impróprias para o consumo humano.

Diante do cenário apontado, vimos aqui manifestar posicionamento sobre a situação do atendimento à saúde por parte da SESAI, mais precisamente dos DSEIs (Distritos Sanitários Indígenas) de Cuiabá e Mato Grosso do Sul, para as Aldeias Aterradinho e São Benedito, em Barão de Melgaço, e para as Aldeias Uberaba e Barra do São Lourenço, em Corumbá. As comunidades estabelecidas em terras demarcadas, como as TIs Guató e Baía dos Guató, recebem atendimento por parte da SESAI. Na Aldeia Uberaba, porém, o atendimento precisa ser aprimorado com a contratação de Agentes Indígenas de Saneamento e a expansão do sistema de abastecimento de água tratada para atender a todas as famílias. Lá também se faz necessária a manutenção periódica e preventiva do
gerador que serve para bombear água tratada até as casas. Na cidade de Corumbá, para onde periodicamente se deslocam várias pessoas das Aldeias Uberaba e Barra do São Lourenco, em busca de atendimento médico e da realização de exames e cirurgias, há a necessidade de um lugar para o acolhimento temporário dos pacientes indígenas.

Nas Aldeias Aterradinho e São Benedito, por seu turno, bastante distantes entre si, há a necessidade de cada uma delas contar com Agente Indígena de Saúde, Agente Indígena de Saneamento e Técnico de Enfermagem, bem como de unidade de saúde e da implantação do sistema de abastecimento de água tratada. Cada uma das duas aldeias também precisa de um barco a motor para os profissionais de saúde se deslocarem até as famílias estabelecidas ao longo das margens dos rios Cuiabá e Perigara, e do Corixo do Bebe. Contando com barco a motor e uma cota mensal de combustível, será mais fácil o atendimento de pessoas com comorbidades e, quando necessário, sobretudo nas cheias, levá-las pelo rio Cuiabá até a estrada que chega a Poconé, cidade onde também precisamos ter um espaço para o acolhimento dos pacientes indígenas.

O caso da comunidade da Barra do São Lourenço é o mais grave e preocupante porque durante todo o ano de 2024, a equipe do Polo de Corumbá do DSEI-MS não compareceu sequer uma única vez no território. Repetidas vezes membros do nosso Conselho buscaram conversar sobre o problema com o Sr. Lindomar Ferreira, Coordenador do DSEI-MS, mas até agora nenhuma solução foi apresentada formalmente às lideranças da aldeia ou a este Conselho. Em fins do ano passado, tivemos informações de que a SESAI não teria enviado uma equipe à Aldeia Barra do São Lourenço porque o nível do rio Paraguai estaria muito baixo para uma viagem de barco até a localidade.

Curiosamente, grandes barcos de turismo e embarcações das Forças Armadas conseguem navegar pela região. Em janeiro de 2025, uma de nossas lideranças encontrou uma equipe da SESAI subindo de barco pelo rio Paraguai. Na ocasião, inquiriu o coordenador do Polo de Corumbá sobre o atendimento à Aldeia Barra do São Lourenço e ele respondeu que seria preciso conversar sobre o assunto, pois o órgão não disporia de infraestrutura para atender as pessoas da aldeia. Uma pessoa ali presente disse para a liderança buscar ajuda com o Programa Povo das Águas, da Prefeitura Municipal de Corumbá. Este tipo de postura se soma a um conjunto de discriminações de que temos sido vítimas no Pantanal, cujas ações denotam ou desconhecimento sobre o papel da SESAI ou preconceito etnicorracial ou as duas coisas juntas.

Dito isso, conclamamos os coordenadores dos Distritos Sanitários Indígenas de Cuiabá e de Mato Grosso do Sul, bem como as Coordenações Regionais da FUNAI e o MPF nos dois estados para que envidem os esforços necessários para que as comunidades do povo Guató não permaneçam abandonadas no Pantanal profundo e sem um atendimento de excelência no que diz respeito à saúde. A SESAI, portanto, deve incluir todas as nossas comunidades em suas ações no Pantanal, cumprindo e fazendo cumprir as competências expressas no Art. 46 do Decreto n. 11.798, de 28 de Novembro de 2023.

Sendo o que temos para o momento, colocamo-nos à disposição das autoridades para os esclarecimentos e informações complementares que se fizerem necessários.
Pantanal, 21 de Janeiro de 2025.

Coordenação do Conselho de Lideranças do Povo Guató no Guadakan/Pantanal

Carlos Henrique Alves de Arruda – Cacique Aldeia Aterradinho
Dalvina Moraes de Amorim – Cacica da Aldeia São Benedito
Denir Marques da Silva – Cacique da Aldeia Barra do São Lourenço
Osvaldo Correia da Costa – Cacique da Aldeia Uberaba

Nota Pública do Conselho de Lideranças do Povo Guató no Guadakan/Pantanal sobre a situação da saúde indígena nas comunidades de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul

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