Nunca vivemos uma situação tão ruim. Por Valerio Arcary

Por Valerio Arcary, no blog da Boitempo

Não precisamos de nenhuma grande sagacidade filosófica ou cul­tural para reconhecer por que a revolução darwiniana é tão difícil de aceitar, e por que ainda está longe de ser concluída na acepção freu­diana do termo. Creio que nenhuma outra revolução ideológica na his­tória da ciência teve um impacto tão forte e direto sobre como concebe­mos o sentido e a finalidade da nossa existência (…) Gosto de resumir o significado da destruição de pedestais da revo­lução darwiniana, tal como eu o interpreto, na seguinte frase (que pode­ria ser entoada várias vezes ao dia, como um mantra Hare Krishna, para ajudar a penetrar na alma): os seres humanos não são o resultado final de um progresso(…), e sim um pormenor cósmico for­tuito, um pequenino ramo da espantosa arborescência da vida; se a semente fosse replantada, é quase certo que não voltaria a produzir o mesmo ramo e, possivelmente, nenhum outro galho com uma proprie­dade que pudéssemos chamar de consciência. (grifo nosso)
— Stephen Jay Gould1

A posse de Trump foi um espetáculo de horror. Não foi um prenúncio do “fim do mundo”, mas quase. Deixou claro que nunca estivemos em uma situação política tão ruim ou tão perigosa, desde o final da Segunda Guerra Mundial. Não fosse o bastante todos os eventos extremos – inundação no Rio Grande do Sul, secas na Amazônia, tempestade em Valência, incêndios em Los Angeles – confirmando a elevação da temperatura global em 1,5 graus centígrados, meia década antes de 2030; o genocídio palestino em Gaza e seus quase cinquenta mil mortos; a guerra na Ucrânia e seus mais de duzentos mil mortos; a eleição de Milei na Argentina; a revelação do plano “punhal verde e amarelo”, temos agora um governo de extrema direita liderado por um neofascista na Casa Branca. Nestas condições adversas, em que as expectativas se reduzem e o pessimismo se alastra, é decisivo lutar contra a desmoralização. Trata-se uma luta ideológica pela esperança. O socialismo é uma esperança suspensa no tempo. A esperança de que a barbárie não é inexorável, e é possível um outro destino. Haverá resistência. Mas é verdade que, para as duas últimas gerações, nunca pareceu tão ruim. Nestas condições terríveis, vai ser preciso estudar mais e procurar forças no marxismo, que nos ensina que tudo é possível de mudar.

As margens dos espaços da vontade consciente ainda são estreitas? Sim. A autoemancipação humana, ainda não é senão uma fugidia miragem de esperança, em um mundo ameaçado por explosões de irracionalismo cego, que podem ameaçar a própria humanidade de autodestruição? Sem dúvida. O livre arbítrio, democraticamente autoconstituído, ou seja, a ação consciente dos sujeitos sociais ainda opera em terreno muito limitado, por todo tipo de coerções? Com certeza.

Mas também é certo que a história humana não pode ser explicada pela sucessão de acasos aleatórios, o caos como única regularidade: os que se rebelam contra o papel da luta de classes na história não se dão conta que o que colocam no lugar do marxismo é o império do acidental.

A passagem de Stephen Jay Gould, paleontólogo e divulgador científico, contém uma observação sobre as resistências enormes que todas as grandes revoluções científicas enfrentam. É natural que a ênfase esteja colocada na dificuldade e reservas em relação à teoria da evolução. Mas ele talvez se engane quando conclui que foi a revolução científica que teve o mais radical impacto sobre a finalidade de nossa existência. Como saber? Tanto a revolução freudiana quanto a marxista tocam em tecidos tão ou mais sensíveis e nervos mais expostos.

É certo que, na escala colossal das durações da seleção natural, os acidentes bizarros da evolução, as dizimações em massa, os abismos genéticos em que espécies mais duradouras que a nossa sucumbiram, enfim, a completa ausência de moralidade na natureza é uma vertigem para a consciência humana, porque coloca sob uma nova perspectiva a possibilidade da extinção.

Mas a maioria dos seres humanos vai dormir todos os dias sem perder o sono com a nossa solidão cósmica. Já o medo dos atavismos do subconsciente, a angústia com as pulsões mais elementares da condição humana, e o pavor da morte fazem estremecer a maioria das mentes. Tremem os alicerces de uma sociedade que tem enormes dificuldades em aceitar a indivisibilidade de uma inteligência que é racional sendo emocional, e é emocional sendo racional. Não menos importante, os medos sociais estão de tal forma enraizados sob camadas de preconceitos de classe, raça e nação, que a ideia mesma da indivisibilidade da liberdade e igualdade, fundamento filosófico essencial do marxismo, desperta ódios e até fúrias irredutíveis. Diz-se que todas as grandes revoluções científicas alimentaram uma perturbadora redefinição da consciência que a humanidade construiu sobre si mesma. A revolução cosmológica deslocou a imagem de um universo geocêntrico e impôs um universo heliocêntrico: aprendemos que o nosso endereço cósmico é a periferia de uma galáxia, entre centenas de milhões de galáxias. A revolução darwiniana nos ensinou que não somos os filhos pródigos da criação, ou sequer o resultado de um progresso evolutivo provável ou previsível, mas um acidente biológico fortuito, ao longo das imensas eras de sucessivos abismos genéticos e cataclismas galácticos, uma seleção evolutiva cujas medidas de duração tem uma escala de pesadelo, quase inapreensível. A revolução freudiana nos revelou que à nossa consciência escapam boa parte dos impulsos profundos e inconfessáveis que motivam as nossas escolhas.

Uma das objeções mais comuns e mais perturbadoras ao marxismo como teoria da História, é a acusação feita a Marx de determinismo e objetivismo, uma vez que teria  construído uma teoria que buscava interpretar a evolução da história humana como um fluxo de processos dotado de compreensibilidade, que poderiam ser analisados com a ambição da busca de fatores de regularidade, de causas condicionadoras de tendências, em uma palavra, enfim, a identificação de forças motrizes que poderiam ser interpretadas como a pressão da necessidade histórica ou padrões.

A demolidora acusação final contra o marxismo seria a arrogante pretensão de descoberta de uma direcionalidade perceptível que, sendo conhecida, poderia ser alterada, dominada, reorientada, porque seria possível um domínio sobre um sentido histórico imanente, o controle de uma obra de engenharia econômico-social. Para reacionários de diferentes tipos, conservadores ou liberais o socialismo seria o reconhecimento de um sujeito social que não existe, mais um fatalismo milenarista e apocalíptico precedido por uma revolução escatológica. O marxismo seria uma teleologia igualitarista da história, entendida como um vir a ser… que já é, porque o destino do futuro, já teria sido revelado pelo determinismo histórico. Finalmente, a previsibilidade histórica seria um exercício de fantasia racionalista.

Em oposição a essa pretensão do marxismo, que teria restringido a história a uma interpretação exaltada do sentido do progresso, argumenta-se que a história seria um processo em aberto, de um fazer-se sempre renovado e livre, impossível de ser apreendido sob a forma de leis. Premissas falsas, conclusões apressadas: erro de sujeito e predicado. Porque o marxismo não afirma que a História esteja prenhe de sentido.

Ao contrário, o marxismo defende, condicionalmente, que a Humanidade poderá vir a oferecer uma direção ao seu futuro, se conseguir superar os desenlaces cegos das lutas de classes que dilaceram a vida social. Reconhece a incerteza, em função do antagonismo classista que não possui um desenlace pré-estabelecido. Identifica a possibilidade, mas não anuncia o imponderável. A ausência de finalismo não se deve confundir com a ausência de protagonismo.

Essa questão não é secundária. Se admitíssemos a hipótese inversa, ou seja, que a esfera da transformação social não poderia ser dominada, em alguma medida, pela ação dos sujeitos sociais em luta, e pela vontade dos sujeitos políticos que expressam os interesses das classes, então, seríamos obrigados a admitir que os atuais impasses da civilização seriam insolúveis. A História deixaria de ser processo e passaria a ser sujeito. Mas, em decorrência, o que é insolúvel, não é um problema. O cepticismo histórico, nesse nível, portanto, só pode ser a antessala do relativismo e do cinismo.

O que nos diz, então, o marxismo? Identifica nos povos dominados e nos oprimidos, mulheres e negros, LGBTs e indígenas e, em especial, nos trabalhadores assalariados, a liderança do protagonismo social de um desafio que sempre se renova. Afirma que essa possibilidade é uma encruzilhada entre a defesa da civilização e a barbárie.

O marxismo não reduz esse novo sentido a uma luta pelo progresso. Insiste na causa de um combate pela liberdade e pela igualdade, enfim, indivisíveis. Em uma palavra: o marxismo não aconselha o fatalismo, mas o máximo ativismo.

A revolução teórica que o marxismo trouxe para a História, e para as Ciências Sociais, em geral, também foi uma mudança profunda de paradigma cultural: ele revelou que existe uma explicação histórica para os desajustes e impasses que dilaceram a sociedade humana. Afirma que as irreconciliáveis contradições que dividem a humanidade corresponderam a uma fase da evolução, mas não são um destino maligno. Logo, seria possível tentar mudar o mundo, como expressão política de um projeto de vontades conscientes. Essa explicação não é moral, embora a civilização viva uma crise moral. O que provoca irritação contra o materialismo histórico não é a afirmação da necessidade que ele traz, mas a promessa de liberdade que ele reivindica: ela se choca contra a força de inércia de séculos de prostração política, resignação moral, ceticismo ideológico e fatalismo religioso, profundamente sedimentados na cultura humana para justificar uma ordem de desigualdade social.

Notas

  1. GOULD, Stephen Jay. Dinossauro no Palheiro. São Paulo, Companhia das Letras, 1997, p. 395

Imagem: “Nicolau Copérnico, ou Conversas com Deus” (1873), por Jan Matejko. Via WikiCommons.

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