Desculpe se o tom é pedante, mas parece que alguns livros são como faróis que nos guiam em meio a tempestades. Doppelgänger (Carambaia, 2024), da premiada Naomi Klein, é uma dessas pérolas que de tempos em tempos surgem e nos arrancam do frio solitário. Um livro que surpreende, sobretudo, nós que somos leitores das obras da autora. Surpreende pelo tom íntimo da prosa, quase um chamado a se sentar e ouvi-la. Uma experimentação que começa com a linguagem para terminar com uma convocação que nem precisava ser feita porque, depois da prosa – essa é a experiência que nos causa sua leitura –, saímos com a ideia de que temos que romper com o circuito vicioso do individualismo.
É estranho falar de um livro tão urgente de modo tão pessoal. É como se eu tivesse que dar explicações sobre a experiência que foi ler Doppelgänger. É como se eu tivesse conhecido intimamente uma das maiores críticas contemporâneas, mas sem o tom autocelebratório (ou vitimista) que caracteriza grande parte das autobiografias atuais. Não se engane, porém. O livro não é autobiográfico, é antes uma potente crítica que parte da experiência vivida da autora e como um periscópio nos faz observar o oceano contraditório da atualidade. Enfim, um livro mais do que necessário.
O bom da conversa é que ela não exige nota de rodapé e – ainda que o livro seja lotado de notas, numa erudição própria aquelas que se devotam à crença de que as palavras escritas, embora não mudem o mundo, ajudam a compreendê-lo para ultrapassá-lo – facilmente nos deixamos guiar. Os temores de nosso duplo são apresentados por Naomi Klein, que teme que sua Doppelgänger, Naomi Wolf, tome sua identidade. A questão aparentemente trivial revela as esquinas sinuosas de nosso tempo. Um tempo violento e marcado por uma cosmovisão de mercado que nos torna todos competidores implacáveis. Portas abertas ao fascismo.
É interessante como, partindo de seus medos, Naomi Klein evidencia que eles são, na verdade, os nossos. Como um mundo espelhado, fruto da comunicação instantânea por dados, unido ao etos competitivo do neoliberalismo, nos faz reféns de nossa imagem como uma marca rentável e disponível nas redes sociais. E esse é só um dos traços da obra. Mas aqui talvez eu esteja queimando algumas etapas. Melhor dar um passo atrás para enfim conseguir dar dois à frente. Comecemos pelo começo.
Antes, o que é Doppelgänger?
Doppelgänger é uma palavra inventada por um romântico chamado Jean Paul lá do século XVIII, “vem do alemão, combinando Doppel (duplo, réplica) com Gänger (andarilho, aquele que vaga)”1. Podemos sintetizar que doppelgänger é como uma réplica nossa, só que com sinais invertidos. Melhor dizendo, alguém que é idêntico a nós, porém, oposto ao que somos. E isso requer um exercício imaginativo: pense em alguém idêntico a você, mas que gosta justamente daquilo que você detesta, andando por aí – pronto. É essa curiosa palavra alemã que será eleita por Naomi Klein para nos guiar pela sinuosa estrada do mundo-espelho. Um mundo-espelho apresentado por algoritmos que nos torna meros dados.
Pois bem, a abertura do livro é exatamente Naomi Klein se esfumaçando pela atuação de sua doppelgänger particular no Twitter – rebatizado como X pelo facho Elon Musk –, Naomi Wolf. O que Naomi Klein tem em comum com Naomi Wolf? Afora o fato de terem o mesmo primeiro nome e serem judias, nada. Mas é aqui que se inicia uma confusão que, ao mergulharmos com a autora nos seus meandros, desnuda as armadilhas de um mundo de “eus simulados e avatares digitais e vigilância em massa e projeções raciais e étnicas e duplos fascistas e as sombras deliberadamente negadas que estão todas vindo à tona ao mesmo tempo”2.
Naomi Wolf – importante feminista liberal dos anos 1980 – dobrou a esquina política (algo sempre fácil para um liberal) e se tornou companheira de fascistas que não têm medo de dizer o seu nome, dentre os quais, talvez o mais perigoso do mundo: Steve Bannon. Naomi Klein, pelo contrário, coerente com o ideário de esquerda e uma socialista séria, manteve-se alerta e disposta a interpretar o mundo a fim de transformá-lo. Mas, para as redes sociais, Klein e Wolf eram indistinguíveis. E aqui Naomi Klein passa a ser assombrada pela sua própria doppelgänger. As redes sociais confundiam-nas.
“O eu cuidadosamente construído pode se desfazer de inúmeras formas”, escreve ela. E continua: “e num piscar de olhos – em decorrência de um acidente incapacitante, um surto psicótico ou, hoje em dia, por uma conta hackeada ou por um vídeo de deepfake”3. Klein viu isso acontecer quando as pessoas confundiram seu avatar digital. À medida que Wolf enveredava pelo mundo da extrema-direita em meio à pandemia, Klein desaparecia aos surdos gritos de xingamentos e elogios no Twitter. Uma confusão que interditava sua própria presença no debate.
Uma questão nada trivial àqueles acostumados ao rigor da psicanálise é o enlace que Klein tem com Wolf. Um elã que liga as duas Naomis por aspiração e inspiração: ambas são escritoras, feministas, judias e se conheceram nos tenros vinte e poucos anos. Naquele momento crucial em que os anos de formação inspiram anseio e expectativas de um futuro grandioso. Wolf era uma referência para Klein, O mito da beleza, livro lançado nos anos 1980, marcou sua geração, e embora Klein, como boa socialista, o achasse insípido, Wolf só tinha 28 anos quando o lançou e obteve o reconhecimento que qualquer aspirante à escrita busca.
A questão então se desdobra: como alguém que admiramos pode se tornar um fascista? Os duplos não estão só no mundo, eles estão também dentro da gente. Uma lição ímpar dada por Freud. Nós mesmos somos um eu e um outro, muitas vezes desconhecido. E Naomi Klein, a partir da assombração de sua doppelgänger, nos revela um mundo de duplos mortais que habitam o mundo-espelho.
O mundo-espelho
O mundo-espelho é um mundo invertido. No livro Doppelgänger, ele se concentra sobretudo nas redes sociais. Mas não é só isso: é também a ressignificação feita pela direita de símbolos fundamentais à esquerda. Durante o transcorrer de sua crítica, Klein mostra como na arena política há disputas e esvaziamento de conceitos caros à tradição socialista, que se perdem no jogo de instantaneidade da internet. Elaborações e reflexões críticas são, assim, subvertidas de seu sentido pelo descompromisso com qualquer noção de verdade factual no campo da extrema-direita.
As redes sociais se tornaram centrais para a construção de comunidades virtuais de pertencimento, identidades provisórias e em liquidação. Diante disso, resta a questão: quais os impactos na formação da subjetividade? A comunicação abundante e sem filtro, privilegiando a velocidade em textos curtos e sem mediação, acostumou o usuário da internet à linguagem publicitária. Nesse sentido, qualquer texto mais reflexivo é visto como xingamento. A busca por uma comunidade artificial se liga a elementos narcísicos que criam uma relação grupal delimitada por fronteiras e ódio à diferença. E é nesse contexto que a extrema direita passa a nos roubar até mesmo as palavras. A esse respeito relembra Klein:
“Alex, uma das minhas poucas amigas que não se incomodam com o tipo de programa que eu costumo escutar [trata-se de War Room, de Steve Bannon], encolheu os ombros e respondeu: ‘a polícia é ruim’. Mas é estranho: antes eu sabia quem eram os fascistas e quem eram os antifascistas. Havia brigas de rua. Estava claro qual lado era qual. Mas agora os fascistas encamparam totalmente nossa linguagem. Eu me sinto sem palavras.”4
Sem palavras e com o espaço da reflexão tolhido pela aceleração do tempo conectado, há uma completa indistinção entre esquerda e direita. Soma-se a isso o fato de que, enquanto gestora do capital de rosto humano, a esquerda se esvaziou, tornando-se um alvo fácil ao fascismo. Naomi Klein nos coloca nesse labirinto de um mundo-espelho, no qual nosso reflexo parece ter mais consistência do que nós mesmos. Além disso, esse reflexo – esse doppelgänger de todos nós – capturou anseios forjados pela hecatombe social e climática, dando a problemas complexos respostas fáceis: a culpa é sempre do outro, e não do capitalismo.
Uma sociedade global fascistizada
A pandemia é o lugar temporal onde Naomi Klein concentra parte de suas reflexões. E, nesse cenário de guerra contra um inimigo invisível, muitas figuras aparentemente antagônicas se encontrarão no mesmo lado da trincheira. Como admitir que pessoas extremamente religiosas partilhem da mesma visão de mundo de pessoas que cultuam o corpo acima de tudo? (Uma breve anedota: certa vez viralizou um tuite em que escrevi que o Brasil virou um espaço urbano marcado por smartfit, farmácia e igreja evangélica, nas linhas de Naomi Klein finalmente entendi o porquê).
Para entender essa aliança entre aqueles que querem o paraíso celeste e aqueles que veem no corpo o lugar do paraíso, Klein vai fazer o esforço basilar de toda socialista séria: analisar as condições de reprodução social desses grupos. “As pequenas empresas e os autônomos que trabalham com ou nos corpos estavam entre os mais atingidos pelos confinamentos pandêmicos”5. Juntam-se a esse grupo do corpo as igrejas, que viram cultos esvaziados e, portanto, portas fechadas. A unidade da diferença se dá por uma equação simples: ambos os grupos, que estão em simbiose, foram os mais duramente atingidos pelos confinamentos. Tornaram-se, assim, terreno propício às teorias conspiracionistas de extrema-direita.
Tendo esse ponto claro, entretanto, é preciso levar em consideração que um mundo cuja cosmovisão global se dá pela repetição do mantra do corpo perfeito, da moralidade religiosa e da automedicação não se constituiu ao acaso. Essa aliança supostamente incomum não se deu por acidente. E é analisando esse ponto que Naomi Klein nos faz perceber como o culto ao corpo se liga à teologia neoliberal, cujas raízes se atrelam à competição universal e perda de direitos sociais. “A busca pela saúde e pelo bem-estar se tornou uma empreitada obsessiva na era Reagan e Thatcher, e desde então só cresceu em influência”6.
Diante de um mundo em dissolução, sem garantias sociais, o bem-estar social tornou-se bem-estar individual. A luta pelo corpo tornou-se uma competição em que se acredita ter um mínimo controle frente à sociedade em perpétuo descontrole. Resta o investimento no eu como fuga dos infortúnios de um mundo em ebulição. Fortalecer o corpo e resistir às tentações: “O ódio e a raiva contra o eu imperfeito e inadequado podem ser o outro lado da busca por um corpo aperfeiçoado e controlado, que se alcança por meio da combinação certa de exercícios, dietas, cirurgias e diversas intervenções de bem-estar.”7
Foi na Pandemia, entretanto, que se revelou a face sinistra dessa equação entre moralidade religiosa e bem-estar individual. Morrer pela covid, na cabeça de muitos de seus adeptos, era algo relegado àqueles cuja fraqueza biológica era evidente. As comorbidades e o envelhecimento foram as brechas legitimadoras de um discurso fascista que impregnou consciente e inconscientemente muitos dos fãs exacerbados do corpo. Uma equação sinistra entre morrer porque Deus quis ou morrer porque a seleção natural fez seu papel. Nunca antes, depois da Segunda Guerra, as portas ao fascismo se mostraram tão escancaradas.
Por isso, afirma Klein: “Essa disposição nas narrativas supremacistas de descartar enormes setores da humanidade que são considerados inferiores é a cola mais forte que une o mundo narcisista e de tons pastel do bem-estar das mulheres ao mundo de retórica furiosa e violenta da direita de Bannon, afeita a atacar com veemência os imigrantes”8. Infelizmente, essa porta segue mais escancarada do que nunca com a chegada de Donald Trump à presidência dos EUA com um programa claramente fascista.
Doppelgänger, porém, não cai no tom melancólico. Mais do que um alerta, é um convite que se põe para além da resistência. É preciso: “Ação!” que se desconecte de nossos avatares digitais presos às redes de bilionários fascistas e se conecte aos vizinhos e àqueles que são nossos iguais nas diferenças que possuem. Enfim, é um livro que eu desejo intensamente que seja lido pelo maior número de pessoas possíveis.
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Notas
- Naomi Klein. Doppelgänger: uma viagem através do mundo-espelho. Tradução Renato Marques. São Paulo: Carambaia, 2024, p.14. ↩︎
- Idem, p. 23. ↩︎
- Idem, p.39. ↩︎
- Idem, p.187. ↩︎
- Idem, p.211. ↩︎
- Idem, p.212. ↩︎
- Idem, p.214. ↩︎
- Idem, p.227. ↩︎