Viver na correnteza. Por José Eduardo Andaluza

Via Mihai Cauli

Elon Musk confundiu Gaza, na Palestina, com Gaza, em Moçambique. Um equívoco compreensível, não fosse Musk sul-africano, e o Império de Gaza o resultado de uma disputa entre a nobreza Zulu, após o assassinato do famoso Rei Shaka kaSenzangakhona — o Shaka Zulu, uma figura venerada no país natal do oligarca.

Indignado, Musk anunciou ao mundo que o anterior executivo americano gastara US$ 50 milhões em camisinhas, oferecendo-as aos terroristas do Hamas, na Faixa de Gaza. Trump adorou o escândalo e apressou-se a propagá-lo. Os jornais israelenses deliraram. Finalmente, jornalistas sérios fizeram o que os jornalistas sérios fazem — investigaram. Não tiveram de investigar muito. Logo perceberam que aquela Gaza não se situa no Oriente Médio e que a Usaid, entretanto extinta ou quase extinta, não havia gasto US$ 50 milhões apenas em preservativos, mas em todo um programa de combate à Aids, um problema muitíssimo sério em Moçambique.

Confrontado com o disparate, Musk admitiu cometer erros. Disse aquilo sem o menor sinal de arrependimento, com a leviandade do costume — o filho X empoleirado nos ombros, e Donald Trump escutando-o, embevecido, com as mãozinhas pousadas na secretária presidencial, como uma bizarra aparição alaranjada.

Leviandade, crueldade, idiotice — três palavras que resumem a atuação do novo governo americano. Decisões gravíssimas, que irão destruir a vida de milhões de pessoas, são tomadas por Donald Trump, ou por Elon Musk, com a mesma ligeireza com que decidem qual o boné adequado para uma conferência de imprensa na Sala Oval.

O pior é que estas decisões não afetam apenas a vida dos cidadãos americanos. A extinção da Usaid, por exemplo, pode provocar a morte de centenas de milhares de pessoas. A médio prazo, lançará muitos países, sobretudo em África, para a esfera de influência da China.

Amo cachoeiras. Sempre me surpreende encontrar plantas que sobrevivem presas às rochas, lutando contra a força das águas, como se a vida naquelas circunstâncias fosse fácil e até aprazível.

Precisamos aprender, como aquelas plantas, a viver na correnteza. A correnteza, a que podemos também chamar incerteza, é o novo normal. Sim, a vida foi sempre imprevisível. Uma larga fatia da Humanidade nunca conheceu o conforto de não ter de se preocupar com o que irá comer no dia seguinte. Houve um tempo, contudo, em que o futuro parecia um pouco mais sólido — tanto quanto pode parecer sólido algo que apenas existe na nossa imaginação.

Depois, o futuro começou a decompor-se. O regresso de Trump — e de tudo aquilo que ele representa — apenas acelerou esse processo.

Viver na correnteza não é fácil. Podemos deixar-nos arrastar por ela, ou aprender a ler os seus fluxos, a encontrar pontos de apoio, a construir formas de resistência. Períodos de grande turbulência costumam ser também momentos de transformação e descoberta. Quero acreditar que o colapso do futuro acabará forçando a Humanidade a criar novas utopias — um outro modo de se relacionar com o planeta e de criar sociedades mais justas.

O escritor angolano José Eduardo Agualusa. Foto: Arquivo pessoal

 

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