O Conselho de Lideranças do Povo Guató no Guadakan/Pantanal vem a público repudiar o PL ou Projeto de Lei n. 275/2024, de autoria e coautoria dos deputados estaduais Neno Razuk e Coronel Davi, respectivamente, apresentado à Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul. Trata-se de uma proposta análoga à Lei n. 12.197/2023, apresentada à Assembleia Legislativa de Mato Grosso, apontada como inconstitucional pela Defensoria Pública da União, que proíbe transportar, armazenar e comercializar pescado nos rios do estado, inclusive na bacia hidrográfica do Alto Paraguai, onde está localizado o Pantanal ou Guadakan.
Para as elites econômicas de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul e aliados, que costumam destruir os recursos ambientais e posar de defensoras da biodiversidade, o Pantanal seria apenas mais um espaço à obtenção do lucro sem fim. Os dolosos incêndios de 2020 e 2024 estão aí para dirimir dúvidas. Para nós, povos originários, pelo contrário, o Guadakan é o território ancestral onde há milênios somos o que somos e nele promovemos a preservação e a ampliação dos recursos ambientais.
O PL n. 275/2024 afeta de maneira drástica e negativa a economia das comunidades do povo Guató e de diversas outras comunidades, especialmente em Corumbá, o maior município em extensão territorial do estado e de todo o Pantanal, onde milhares de pessoas e famílias têm na pesca artesanal sua principal atividade econômica. O Projeto condena todas elas a sua própria sorte, pois ficarão ao Deus-dará, isto é, abandonadas e sem trabalho e renda. No caso de nosso povo, a proposta de Lei é mais uma tentativa de expulsar nossas famílias e comunidades das terras tradicionalmente ocupadas no Guadakan, forçando-as a migrar para as cidades. Propor o pagamento mensal de dois salários-mínimos a cada família de pescadores é algo impensável no Projeto de Lei, que sequer sugere medidas compensatórias às populações pantaneiras: acesso a um atendimento de qualidade em termos de saúde e educação escolar; direito de votar em urnas eletrônicas, que nunca chegaram ao Pantanal profundo; etc.
O texto proposto como Lei é tão obtuso que originalmente proíbe a pesca e a comercialização do tucunaré. Ora, esta é uma espécie de origem amazônica introduzida na planície de inundação pelos não indígenas e que, sabemos muito bem, tornou-se uma praga predadora e devoradora de espécies nativas. Sua captura deve ser estimulada e os pescadores devem ser remunerados por trabalhar pela sua erradicação da região.
Agora, diante das críticas recebidas, a Proposta restringe a pesca à captura, armazenamento e comercialização das principais espécies de valor comercial, mas não restringe a pesca esportiva e o pesque-e-solte ao uso de anzóis sem fisga ou farpa, dando maiores chances de sobrevivência aos peixes capturados por turistas de alhures. Por este e outros motivos, a autoria e coautoria da propositura demonstram desconhecer o Pantanal profundo e as comunidades que nele vivem e sobrevivem da pesca. Também dão a entender que desprezam estudos científicos, produzidos pelos próprios não indígenas, sobre os estoques pesqueiros do Pantanal.
Conhecer a maior planície de inundação do mundo e seus povos e comunidades não é viajar para as cidades pantaneiras e nelas participar de festas, comemorações, reuniões e pescarias, e postar fotos nas redes sociais em busca de curtidas, compartilhamentos e novos seguidores. Nascer e residir em Corumbá, Ladário ou em outras cidades tampouco assegura isso de maneira automática. Conhecer o Pantanal é compreender a crise climática que afeta negativamente o ciclo das águas, a biodiversidade, os diferentes modos de vida e as particularidades ambientais, socioculturais e econômicas dos diversos pantanais. Para isso, o diálogo com as comunidades do povo Guató é fundamental, mas isso não deve ser feito apenas nas cidades, como se pudéssemos percorrer centenas de quilômetros pelo rio Paraguai em pouco tempo para participar de debates pontuais, mas, sim, promovê-los no interior de nossas comunidades, algo que nunca aconteceu.
De nossa parte, portanto, o Projeto de Lei n. 275/2024 é altamente nocivo ao povo Guató e às comunidades que vivem da pesca na planície de inundação. Caso seja aprovado pela Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul e devidamente sancionado, causará profundos impactos negativos às famílias e comunidades originárias e tradicionais que vivem do pescado e preservam o Pantanal ou Guadakan. Por isso, repudiamos a Proposta e somos contrários à sua aprovação.
Pantanal, 24 fevereiro de 2025.
Coordenação do Conselho de Lideranças do Povo Guató no Guadakan/Pantanal
(Cacique Denir Marques da Silva, Aldeia Barra do São Lourenço, Corumbá-MS; Cacique Osvaldo Correia da Costa, Aldeia Uberaba, Corumbá-MS; Cacique Carlos Henrique Alves de Arruda, Aldeia Aterradinho, Barão de Melgaço-MT; Cacica Dalva de Moraes Amorim, Aldeia São Benedito, Barão de Melgaço-MT)
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Foto: Homens Guató em pose durante as festividades do Dia do Índio de 2017, na Aldeia Uberaba, Terra Indígena Guató, município de Corumbá-MS