Conheça a máquina de lobby contra projetos de lei que proíbem pulverização de agrotóxicos

Com fundo de R$ 1,3 milhão para atuar nas casas legislativas, Sindicato das Empresas de Aviação Agrícola (Sindag) tem virado o jogo em votações já concluídas; empresas associadas à entidade acumulam pelo menos R$34 milhões em multas ambientais

Por Julia Dolce, de O Joio e o Trigo, para o especial Brasil Sem Veneno, em De Olho nos Ruralistas

O município maranhense de Lago do Junco, localizado na transição entre o Cerrado e a Floresta Amazônica, tem um longo histórico de luta pela terra. Nos anos 1970, movimentos locais conquistaram a criação de assentamentos. Em 1997,  a aprovação da Lei Municipal do Babaçu Livre garantiu que as quebradeiras de coco – que tiram sua subsistência do extrativismo da palmeira – tivessem acesso às árvores, mesmo que estivessem dentro de propriedades privadas. A inovação serviu de inspiração para legislações semelhantes no Maranhão e em outros estados.

Algumas décadas depois, os cerca de 10 mil habitantes da cidade se depararam com uma nova ameaça: a contaminação desses mesmos territórios por agrotóxicos pulverizados por aviões e drones.

O município integra o Matopiba, região formada por porções do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia sobre as quais a fronteira agrícola do Brasil espicha desde meados dos anos 1980. Com o avanço de monoculturas, como a soja, cresceu também o uso de venenos. Em 2024, dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) indicaram que o Maranhão foi campeão em registros de contaminação por agrotóxicos.

A soja chegou ao município por volta de 2019. Desde então, a Associação das Mulheres Trabalhadoras Rurais de Lago do Junco e Lago dos Rodrigues se organizou para estabelecer na região uma “zona livre de agrotóxicos”.

A luta foi materializada em um projeto de lei  (PL) apresentado no início de 2024 pela vereadora de Lago do Junco Elidevan Ferreira de Sousa (PT). O plano era proibir a pulverização aérea de agrotóxicos por drones e aviões no município, além de estabelecer metas de redução da aplicação desses venenos no longo prazo.

O projeto já conquistava a maioria dos votos quando, em setembro de 2024, aconteceu uma audiência pública na Câmara Municipal. Após o debate, parte dos vereadores mudou de ideia. E o PL naufragou.

“Passou-se um ano inteiro fazendo reuniões”, conta Ariana Gomes, secretária-executiva da Rede de Agroecologia do Maranhão (Rama) – uma das organizações que articularam a apresentação do projeto de lei. “No fim, não foi aprovado. Entendemos que teve uma força grande do Sindag e de empresas de drone”.

Sindag é a sigla para Sindicato Nacional das Empresas de Aviação Agrícola. A entidade enviou um representante à audiência de Lago do Junco, seu assessor de relações institucionais Divaldo Custódio Maciel.

“Nós estamos aqui pra fazer com que vocês mudem a mentalidade”, resumiu ele. “A proibição é mais fácil, mas e aqueles que utilizam a ferramenta de maneira correta? Aqueles que são beneficiados pela ferramenta? Eles vão ser prejudicados por uma atitude que é extrema”. A “ferramenta”, leia-se, é a chuva de veneno.

LOBBY DA PULVERIZAÇÃO AÉREA AVANÇA NO INTERIOR DO MARANHÃO

Em sua fala na audiência pública, o representante do Sindag também tentou convencer os agricultores familiares que se mobilizaram contra os agrotóxicos de que poderiam se beneficiar da pulverização aérea.

“Lago do Junco está crescendo e vai crescer ainda mais. É uma terra de progresso – e é isso que a gente quer que seja”, continuou Divaldo. “No Maranhão, cada vez mais pequenos produtores utilizam a aplicação aérea no sentido de duplicar até mesmo a própria produtividade. Aquela dona Maria que tem a produção no fundo do quintal dela, que utiliza, às vezes, a ferramenta para aumentar essa produção e, automaticamente, aumentar a renda”.

Na sua passagem por Lago do Junco, o assessor de relações institucionais distribuiu panfletos, trocou contatos com vereadores e se colocou à disposição para enviar mais “informações”.

A Rama acredita que o Sindag esteja a postos em todo o território maranhense para fazer lobby junto às câmaras municipais. “É um sindicato muito forte, as empresas são muito fortes”, afirma Ariana.

Atualmente, já foram aprovados projetos de lei que visam proibir a pulverização aérea em nove municípios maranhenses. E em outros 12 tramitam projetos do tipo.

SINDICATO POSSUI FUNDO DE R$ 1,3 MI PARA BRECAR PROJETOS

Única representação sindical da aviação agrícola no país, o Sindag reúne 260 empresas associadas. Fundado em 1992 em São Paulo, o sindicato fez o seu début na cena política nacional a partir da aprovação de outra legislação histórica no Brasil, que proibiu a pulverização aérea de agrotóxicos no Ceará em 2019.

Lei Zé Maria do Tomé homenageia o agricultor que lutava contra a ocupação irregular por empresas de um perímetro de irrigação público na Chapada do Apodi. No bojo dessa luta, Zé Maria também denunciou o uso massivo de agrotóxicos na produção de frutas. Ele foi assassinado em 2010 com mais de 20 tiros.

Foi a primeira (e, até agora, única vez) que um estado brasileiro restringiu dessa forma os venenos. Autor da lei, o deputado estadual Renato Roseno (PSOL) conta que, após a aprovação, a “bateria” do agronegócio se voltou contra o Ceará: “A Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil [CNA] tinha medo de que outros estados adotassem a medida que nós adotamos”. O Sindag integrou a ofensiva, tentando derrubar a lei nos tribunais.

No Supremo Tribunal Federal (STF), o sindicato entrou como amicus curiae da CNA em uma ação que contestava a constitucionalidade da lei. O Sindag também entrou com dois mandados de segurança na Justiça do Ceará. Um contra a Agência de Defesa Agropecuária do estado, tentando barrar a fiscalização da lei. E outro contra o então governador Camilo Santana (PT), defendendo que a legislação feria a Constituição e pedindo a sua suspensão até que fosse julgado o mérito do pedido.

Todas as investidas fracassaram. Mas o Sindag aprendeu a lição: passou a atuar no nascedouro desse tipo de projeto de lei. “Há uma preocupação muito grande que os projetos que queiram proibir a atividade se espalhem pelo Brasil”, afirmou à reportagem o diretor-executivo da entidade, Gabriel Colle.

Essa atuação, é claro, custa dinheiro. Para montar a sua máquina de lobby, o Sindag criou um “Fundo de Defesa da Aviação Agrícola” que, até julho de 2024, já havia arrecadado mais de R$ 1,3 milhão.

O fundo tem diferentes cotas de doações, entre elas uma de R$10 mil para financiamento de ações contra os projetos de lei que visam proibir a pulverização aérea.

ORGANIZAÇÃO ATACA MEMÓRIA DE ZÉ MARIA DO TOMÉ

O Fundo de Defesa da Aviação Agrícola também financia uma campanha que recebeu um nome sugestivo: “Chega de Preconceitos”. A iniciativa é focada na defesa do que o sindicato chama de “mitos” sobre o setor.

Um deles seria o “enredo em torno do assassinato” de Zé Maria do Tomé. Em seu site, o Sindag caracteriza o episódio como emblemático na promoção de “equívocos” e “preconceito” contra a aviação agrícola e o agronegócio, “potencializados pelo tempero político e pela polarização da sociedade”. Em notícias também publicadas em seu site, o sindicato atribui aos projetos de lei que tentam proibir a pulverização aérea uma “ideologia” que propaga desinformação contra o setor.

“Não há nada mais ideológico do que dizer que o argumento dos outros é ruim por ser ideológico”, contrapõe o deputado Renato Roseno. “Quem é muito ideológico é o agronegócio que quer desrespeitar argumentos técnicos com base na falácia de que seriam ideológicos”.

Já segundo Gabriel Colle, o papel do sindicato se resume a preparar materiais para “levar informações” para parlamentares. O Sindag tem marcado presença nos trâmites de projetos de lei em diferentes cantos do país. Um levantamento exclusivo do Joio mostra que a entidade atuou ao menos 14 vezes em audiências de diferentes casas legislativas para barrar propostas que proíbam a pulverização aérea de agrotóxicos nos últimos cinco anos.

Nesse período, além de Lago do Junco, o Sindag esteve presente em audiências públicas que trataram do tema nas câmaras municipais de Nova Esperança (PR), Tabapuã (SP), Piracicaba (SP), São Carlos (SP), bem como nas assembleias legislativas de Bahia, Ceará, Mato Grosso do Sul, Pará, Pernambuco e Rio Grande do Sul.

Além da incidência legislativa, o sindicato tem representação em câmaras, comissões, comitês e conselhos de órgãos federais e regionais, como a Comissão Especial para Assuntos da Aviação Agrícola no Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa).

A reportagem mapeou 24 reuniões de representantes do Sindag com autoridades do poder executivo, principalmente membros do Mapa e da Agência Nacional da Aviação Civil (Anac), entre 2020 e 2025.

O sindicato também promove encontros com veículos da imprensa, já tendo visitado as redações da TV Globo, Band e Canal Rural.

Em 2023, passou a integrar o Instituto Pensar Agropecuária (IPA), organização que reúne dezenas de entidades do agronegócio e organiza a agenda da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) no Congresso. As entidades que compõem o IPA se reúnem semanalmente na sede do instituto em Brasília com os parlamentares da bancada para apresentar suas pautas.

ASSESSOR PARLAMENTAR É AMEAÇADO APÓS DOSSIÊ CONTRA AGROTÓXICOS

Em setembro de 2023, o geógrafo e mestre em ciências ambientais Vitor Camacho atendeu uma ligação de um DDD desconhecido. Do outro lado da linha, uma voz grave e distorcida o ameaçou: “A gente sabe onde vocês estão, a gente sabe quem vocês são. É melhor vocês pararem com isso”.

Camacho é assessor do vereador Djalma Nery (PSOL), do município paulista de São Carlos. A ameaça, por sua vez, foi endereçada a um celular que pertencia ao gabinete do parlamentar e ocorreu durante o trâmite de um projeto de lei de autoria de Nery que pretendia proibir a pulverização de agrotóxicos por aviões na cidade.

“Fiquei tão nervoso, porque eu  já estava vivendo sob pressão e ansiedade”, lembra Camacho. O projeto de lei foi baseado em um dossiê elaborado por ele com relatos de contaminação por pulverização aérea no loteamento de pequenos agricultores Aporá de São Fernando, que fica no município. “Tem fotos e vídeos que mostram que os aviões passavam em cima das casas, muitas vezes com os aspersores ligados”, relata.

“Como uma das pessoas envolvidas diretamente tanto na elaboração da denúncia, quanto da lei, a todo momento a gente se sente muito observado, principalmente pelos interessados do agro que estão sempre marcando presença”, desabafa o assessor parlamentar.

São Carlos é um município de médio porte, com mais de 260 mil habitantes, localizado na região central de São Paulo, a cerca de três horas da capital. O agronegócio é forte e a produção de usinas sucroalcooleiras domina a paisagem local. Segundo o Censo Agropecuário de 2017 (último com dados disponíveis), à época, a área colhida de cana-de-açúcar ocupava quase 28 mil hectares.

Em 23 de agosto de 2023, os vereadores da Câmara Municipal de São Carlos aprovaram o projeto de Djalma Nery com folga: por 13 votos a 1.

EM SÃO CARLOS, VOLTA ATRÁS NO ÚLTIMO MINUTO

O resultado soou o alerta. A partir daí, representantes do setor sucroalcooleiro, de pilotos agrícolas e da empresa de comercialização de drones Xmobots (que tem sede no município) começaram a se mobilizar.

No mês que se seguiu à aprovação, período em que o então prefeito Airton Garcia Ferreira (Progressistas) decidiria por sua sanção ou veto, esses representantes passaram a visitar a Prefeitura, segundo Camacho. “Nesse meio tempo, a gente presenciou esse lobby sendo feito. Eu vi eles frequentando o Paço Municipal”. A pressão surtiu efeito: o prefeito vetou o projeto.

Nas semanas seguintes, o lobby se voltou para a Câmara Municipal, que poderia derrubar o veto do prefeito. “Fizeram reuniões, encontros com os vereadores. Entregaram um documento imenso”, lembra o assessor parlamentar. O documento em questão, um calhamaço de cerca de 300 páginas de artigos defendendo o setor aeroagrícola e a pulverização aérea, foi entregue por um representante do Sindag ao presidente da Câmara.

Entre os estudos presentes no documento está um que trata dos “impactos econômicos e sociais” do banimento da aplicação aérea de “defensivos agrícolas”, produzido pelo escritório Mendonça & Nogueira Advogados Associados a pedido do próprio Sindag, da multinacional Syngenta e de outras associações do agronegócio. Um dos autores do estudo, Elvino de Carvalho Mendonça, é colunista do site do Sindag.

O veto do prefeito foi votado no dia 26 de setembro de 2023. Segundo um dos diretores do Sindag, praticamente 90% das empresas paulistas associadas ao sindicato estavam representadas na Câmara Municipal de São Carlos.

Na ocasião também estiveram presentes diversos funcionários da Xmobots, a fabricante de drones. A empresa deu ponto facultativo aos trabalhadores no dia da votação e eles lotaram as galerias. Segundo Camacho, ainda houve uma “manobra” com a mesa diretora da Câmara. “Permitiram que eles entrassem antes do combinado e lotassem a sessão, e nenhuma pessoa afetada pelo tema pudesse estar presente”.

Os funcionários da empresa, junto a representantes das usinas e pilotos, também fecharam a entrada da casa legislativa, dificultando a passagem dos vereadores. “Fizeram um corredor polonês para, literalmente, linchar ele [Djalma Nery]. Quem partiu para cima foi o pessoal dos drones. Teve um que partiu para cima com contato físico mesmo, mas a Guarda Municipal impediu”, relata Camacho.

A Xmobots não é associada ao Sindag, mas participou do Congresso da Aviação Agrícola do Brasil, promovido pelo sindicato em agosto de 2024. Contatada, a empresa confirmou que autorizou ponto facultativo, mas afirmou “repudiar veementemente qualquer conduta que viole o respeito e o diálogo construtivo”.

O resultado da história não é difícil de adivinhar: os vereadores mudaram de ideia e enterraram o projeto por 15 votos a cinco.

“NOSSAS OVELHAS ESTÃO ABORTANDO”, DIZ AGRICULTORA

Segundo Joelson Carvalho, professor de economia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) que tem se dedicado a registrar casos de contaminação pela pulverização aérea, a mobilização do agronegócio contra projetos do tipo é rápida e certeira. “O agronegócio tem uma capacidade muito grande de se unir ao redor de pautas quentes. Isso aconteceu em São Carlos. Setores pouco presentes no cotidiano do município acompanharam o debate da lei”.

Entre os principais impactados pela pulverização aérea no município estão os assentamentos rurais Santa Helena e Nova São Carlos. Os assentados relatam a perda da produção orgânica de hortaliças e mel, além da morte de animais e problemas de saúde.

A agricultora Lindamira Ribeiro, assentada do Santa Helena, participou de uma audiência pública organizada pelo vereador Djalma Nery que antecedeu a proposição do projeto. Na ocasião, ela denunciou os efeitos da contaminação.

“A nossa área, que a gente ainda planta orgânico, ainda tem bastante árvore pra não ter tanto estrago nas nossas verduras, porque é delas que nós vive. Mas nas outras áreas, que a gente não planta mais, a gente deixou para o pasto. E agora nossas ovelhas estão abortando – e eu acho que pode ser disso, porque é a área onde o avião mais passa”, afirmou. A agricultora também relatou que crianças e jovens do assentamento têm sofrido sintomas de intoxicação, como dores de cabeça.

Segundo Carvalho, as empresas alegam que, para manobrar os aviões, é necessário passar em cima dos assentamentos. “Há um desrespeito aos limites mínimos estabelecidos [por legislação para a pulverização aérea] e que já são bastante perigosos. Do ponto de vista político, essa é uma ação extremamente coercitiva que visa obter o silenciamento e expulsão”.

O diretor-executivo do Sindag afirma que o sindicato não ignora as denúncias que embasam as propostas de lei. “Uma política do Sindag é estar sempre disponível e levar pra frente, eventualmente, qualquer denúncia. Sendo feito respeitando os parâmetros, não vai ter problemas”, garante Gabriel Colle.

A entidade tem uma narrativa sustentada na separação entre o joio e o trigo. Há aqueles que “fazem errado” e os que cumprem as normas. O diretor afirmou também que a posição do sindicato é pelo respeito às leis. “Se alguém desrespeitar a legislação conscientemente, com certeza não vai estar no nosso quadro de associados”.

ASSOCIADAS ACUMULAM R$ 34,6 MI EM AUTUAÇÕES AMBIENTAIS

Apesar da tentativa de distanciamento em relação aos que “fazem errado”, um levantamento exclusivo de O Joio e o Trigo mostra que as empresas associadas ao Sindag e seus sócios acumulam R$ 34,6 milhões em multas do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Ambientais Renováveis (Ibama).

Entre 1996 e 2023, foram lavradas 123 autuações ambientais. As infrações envolvem principalmente o descumprimento da regulação da pulverização de agrotóxicos.

Outros casos envolvem a contaminação direta de cursos hídricos, como documenta uma autuação lavrada em 2018 contra Geraldo Loeff, sócio da LL Aviação Agrícola Ltda. Ou mesmo a contaminação de unidades de conservação, como indica uma autuação de 2001 contra a empresa Aerosafra Aviação Agrícola, que dá conta de danos diretos ao Parque Nacional das Emas, localizado em Goiás.

Há também obstrução à fiscalização do poder público, conforme autuação de 2018 contra a Lusa Aviação Agrícola Ltda, bem como casos de declaração de informações falsas ao cadastro técnico do Ibama, segundo autuação de 2017 contra a Rondon Aviação Agrícola Ltda.

Das 123 autuações, 65 foram lavradas contra os sócios ou diretores das empresas associadas ao Sindag. Entre elas, há 28 autuações relativas a desmatamento ilegal, queimada ou impedimento de regeneração da mata nativa, referentes à destruição de mais de 5,5 mil hectares de vegetação – em sua maioria no Mato Grosso.

Questionado sobre as autuações de associados do Sindag, Gabriel Colle disse que o sindicato “não passa a mão na cabeça de ninguém”. “A gente não defende nenhuma empresa, nenhum produtor rural, ninguém que faça nenhum crime ambiental”.

Sobre o valor das autuações, o diretor-executivo do Sindag afirmou que as multas do Ibama costumam ser altas, “e têm que ser mesmo porque são questões ambientais”. Colle destacou também que as multas lavradas não são o fim do processo, uma vez que os autuados têm direito à defesa.

O sindicato defende que a pulverização aérea é segura para o meio ambiente, as pessoas e seus cultivos. Bastaria seguir à risca a norma federal que regula a prática. O sindicato destaca também que a modalidade é mais regulamentada do que a aplicação de agrotóxicos por via terrestre.

PARA SINDAG, PROBLEMA DA DERIVA DE AGROTÓXICOS É “MITO”

A pulverização terrestre de agrotóxicos pode ser feita por tratores ou equipamentos como mochilas. Sua regulação é assunto dos estados —  apenas cinco têm regras do tipo. Já a aplicação aérea de venenos tem regulamentação federal pelo Ministério da Agricultura e pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac).

Nesse sentido, existem algumas obrigações a mais quando o assunto são os aviões e drones. No caso dos primeiros, por exemplo, devem ser enviados ao Mapa relatórios mensais de cada operação de aplicação, incluindo o arquivo do DGPS, espécie de GPS detalhado da aeronave que mostra tanto a região sobrevoada, quanto os locais onde o sistema de pulverização esteve aberto ou fechado.

Já no caso dos drones, são exigidos registro da aeronave no ministério, certificado de curso de aplicação aeroagrícola e relatórios mensais de atividades.

O problema mora nas distâncias mínimas estabelecidas para a aplicação dos venenos, consideradas insuficientes para impedir que os agrotóxicos sejam levados pelo vento — um fenômeno conhecido como deriva. No caso dos aviões, essa pulverização pode acontecer a 250 metros de distância de mananciais de água, moradias isoladas e agrupamentos de animais. No caso de povoações, cidades, vilas, bairros e mananciais de captação de água para abastecimento da população, a distância aumenta para 500 metros. Já para os drones, essa distância é de apenas 20 metros em qualquer situação.

Embora represente uma economia de tempo e dinheiro ao agronegócio, por proporcionar uma aplicação mais veloz e que não envolve a perda de plantas pelo amassamento causado por tratores, a pulverização aérea é responsável por maiores distâncias de deriva, o que intensifica a contaminação de vizinhos e áreas de proteção ambiental.

A mitigação da deriva depende tanto de fatores controláveis, como o bico do pulverizador utilizado e a velocidade da aeronave, quanto de fatores instáveis, como a direção do vento, a temperatura e a umidade do ar. Condições inadequadas podem fazer a deriva alcançar quilômetros de distância.

De acordo com o diretor-executivo do Sindag, ligar o problema da deriva à pulverização aérea é mais um “mito” sobre o setor.  Ele afirma que toda ferramenta de aplicação mal utilizada pode causar deriva. “Nosso posicionamento sempre é no sentido de orientação e de defender as boas práticas agronômicas”. Segundo Colle, a aviação agrícola no Brasil é altamente regulada. “A gente quer manter assim, cada vez mais regulado, porque isso nos dá segurança”.

Baseada em estudos que comprovaram a maior distância da deriva na pulverização aérea, entretanto, a União Europeia proíbe a modalidade em seu território desde 2009. Por aqui, além do Ceará, pelo menos 19 municípios já seguiram esse exemplo.

“O DRONE É INFISCALIZÁVEL”

Um dos fatores que têm elevado as ocorrências de contaminação no Brasil é a popularização da pulverização por drones agrícolas. Os equipamentos baratearam o custo operacional da atividade. Enquanto o preço médio de um avião agrícola está na casa de alguns milhões de reais, é possível comprar um drone a partir de R$ 60 mil.

A capacidade dos drones também avança. Em janeiro de 2025, foi anunciado que o maior drone autorizado pelos Estados Unidos para operações comerciais está pronto para atuar no Brasil, tendo obtido licença da Anac. A aeronave pode transportar até 300 litros de veneno – o mesmo que um avião pequeno.

A obtenção da qualificação técnica para o manuseio de drone também é bem mais fácil.  Cursos  inteiramente virtuais possibilitam a certificação de operador da aeronave.

O Sindag também tem empresas de drones agrícolas no seu quadro de associados, e comemorou em suas redes sociais a decisão da Assembleia Legislativa do Ceará que flexibilizou a Lei Zé Maria do Tomé. Sancionada no apagar das luzes de 2024 pelo governador Elmano de Freitas (PT), a nova lei permite a pulverização aérea por drones.

“Nós perdemos em dezembro de 2024. Lamento muito que um governador do PT, traindo sua história, se preste a isso”, comenta o deputado Renato Roseno. Ele destaca que as pesquisas sobre os impactos da pulverização por drones, incluindo sua deriva, ainda são incipientes. Vê o boom da aplicação por drones como uma tendência: “Vai ser tudo com as aeronaves não pilotadas”. E se preocupa com a fiscalização da norma que dita que as aplicações de venenos devem ser feitas a 20 metros de casas, animais e mananciais de água. “O drone é infiscalizável. O que fazem com um drone à noite, de madrugada, ninguém vai saber”.

NO MARANHÃO, DRONES SÃO USADOS PARA ATACAR LÍDERES COMUNITÁRIOS

Operações clandestinas, algumas em horários noturnos, têm sido registradas no Maranhão. Em 2024, a Federação dos Trabalhadores Rurais do estado (Fetaema) identificou 14 comunidades vítimas da prática, todas residentes do município de São Mateus, que fica a duas horas e meia de carro de Lago do Junco. Segundo a entidade, numa reunião com lideranças locais, representantes das secretarias de Meio Ambiente e de Agricultura do estado informaram que não há nenhum licenciamento para operação de drones na cidade.

Em Duque Bacelar, mais perto da divisa com o Piauí, as denúncias são ainda mais graves. Os drones estariam sendo utilizados para ameaçar a comunidade de Roça do Meio. Formada por 14 famílias que há gerações ocupam o território, a comunidade denuncia ameaças de expulsão por parte do pecuarista Paulo André Cardoso, que afirma ser dono das terras.  Ele estaria pulverizando agrotóxicos sobre a casa de familiares do líder local – Marcelo Barbosa dos Santos – que levou o caso à polícia.

Um boletim de ocorrência foi registrado pela primeira vez no dia 10 de fevereiro de 2025. No dia 19 de fevereiro, data em que Marcelo deu entrevista à reportagem, o fato se repetiu. “Hoje de manhã ele colocou de novo, passou por cima da casa da minha mãe soltando veneno. O cheiro era muito forte, minha mãe passou mal com falta de ar. Meu pai, que tem 87 anos, fica com coceira no corpo e tontura”, contou.

Não é a primeira vez que o pecuarista contamina a comunidade, segundo Marcelo. Em 2021, um avião pulverizou a escola rural, que atende 300 estudantes. “As aulas foram suspensas por cerca de quatro dias”, disse. “A gente vive de plantio de arroz, mandioca, feijão, milho. O veneno afeta tudo, acabou que matou foi tudo. E a gente não conseguiu aproveitar nada, passou um bocado de dificuldades”.

Na ocasião, o Ministério Público do Maranhão instaurou um procedimento que nunca foi concluído, e encontra-se paralisado desde 2022. Também em 2022, em resposta à contaminação da comunidade Roça do Meio,  a Câmara de Vereadores de Duque Bacelar aprovou um projeto de lei que proibia a pulverização aérea em território municipal. O projeto foi sancionado e a lei entrou em vigor.

No último 27 de fevereiro, porém, o prefeito Flávio Furtado (PDT) enviou um projeto à Câmara pedindo a revogação da lei. Conseguiu. A votação aconteceu em 14 de março de 2025 e contou com a presença de representantes da Aprosoja Maranhão.

A reportagem tentou contatar Paulo André Cardoso por meio de duas empresas das quais ele é sócio-administrador, mas não obteve resposta.

INTIMIDAÇÃO VIA NOTIFICAÇÃO EXTRAJUDICIAL

A mesma Federação dos Trabalhadores Rurais do Estado do Maranhão que acompanha esses conflitos entrou para a mira do Sindag. Em 2024, sindicato enviou uma notificação extrajudicial ao advogado popular Diogo Cabral, que representa a Fetaema. Há quatro anos na linha de frente da denúncia de violações de direitos envolvendo a pulverização aérea no estado, Cabral recebeu o documento após dar uma entrevista ao jornal JMTV mencionando contaminações no estado.

Na entrevista, concedida em 24 de abril de 2023, o advogado afirmou que a Fetaema já havia registrado 60 ocorrências de contaminação no Maranhão só naquele ano. “Pessoas tiveram queimaduras, crianças, idosos e gestantes acabaram adoecendo, com graves problemas gastrointestinais, e parte da produção agrícola destas comunidades foi inteiramente perdida”, afirmou.

Quase um mês depois, em 23 de maio, ele recebeu a notificação do Sindag demandando provas sobre as “graves informações prestadas” ou esclarecimentos “se o suposto dado foi de fato provocado pela pulverização”.

Para Cabral, a ação do Sindag se insere em um contexto de “criminalização, intimidação e limitação do trabalho de defensores de direitos humanos”. Ele afirma não ter ficado surpreso, e sim preocupado. “Não só por mim, mas por todas as organizações e pessoas que estão nessa luta”. O advogado não respondeu à notificação e até hoje não foi citado judicialmente.

Cabral destaca que o avanço da fronteira agrícola, principalmente para cultivo de soja, tem impulsionado o mercado de agrotóxicos no Maranhão. Dados do Ibama revelam um crescimento de 200% no comércio dessas substâncias no estado na última década.

O advogado ressalta que, em 2024, a Fetaema registrou 234 comunidades atingidas por pulverização aérea. Em 2025, já eram 18 comunidades até a publicação desta reportagem. Cabral destaca também que todas as contaminações registradas foram causadas pela pulverização aérea. “Não tem nada de agricultura de precisão, é uma agricultura de imprecisão, na verdade, porque tem muita gente sendo contaminada”.

LOBBY DA PULVERIZAÇÃO AÉREA ESTÁ DENTRO DAS UNIVERSIDADES

Além de entrar na Justiça, fazer lobby em casas legislativas e intimidar críticos, mais recentemente o Sindag tem fechado parcerias para o desenvolvimento de pesquisas que sustentam a segurança da pulverização aérea de agrotóxicos.

Além de uma parceria de anos com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), o sindicato deu início a um programa de financiamento de bolsas de pesquisa em universidades públicas. Segundo o Gabriel Colle, atualmente, já são cerca de 40 convênios com universidades em trâmite, entre eles a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Universidade de Brasília (UnB).

Em março de 2024, a UnB sediou o 1º Fórum Nacional de Aviação Agrícola no Planalto Central, em parceria com o Sindag, com o Instituto Brasileiro da Aviação Agrícola — braço do sindicato  — com a CNA, com a Aprosoja e com a CropLife Brasil, associação que reúne as multinacionais produtoras de agrotóxicos. O evento culminou no lançamento de um Núcleo de Estudos em Atividades Aeroagrícolas.

O núcleo recebeu a primeira bolsa financiada pelo sindicato. O financiamento resultou na publicação, em novembro de 2024, de um estudo sobre controle de deriva que, segundo Colle, chegou a resultados “extremamente importantes”. O estudo consistiu em uma revisão bibliográfica de pesquisas sobre o tema, com o objetivo de descrever uma equação para descrição da deriva.

O estudo argumenta que, nos testes realizados em diferentes pesquisas analisadas, foi identificado um valor máximo de 100 metros de deriva, e argumenta pela abertura de “novas discussões da faixa de segurança”, uma vez que as distâncias mínimas estabelecidas pelo Mapa são maiores.

O financiamento de pesquisas pelo sindicato parece ter um vício de origem: a arrecadação é realizada pelo mesmo Fundo de Defesa da Aviação Agrícola que recruta doações para promover o lobby nas câmaras municipais. Colle destaca que a pesquisa é o objetivo mais importante do fundo.

“A gente pretende utilizar mais recursos na produção de divulgação e promoção do setor, principalmente de esclarecimento de mitos e fatos. A origem disso deverá ser as pesquisas. Temos realmente um desejo, um sonho que possamos ter alunos de diferentes universidades com bolsas pagas pelo fundo incentivando a fazer pesquisa”, afirmou.

O diretor do Sindag foi questionado sobre o comprometimento dos resultados das pesquisas pelo interesse econômico do setor, mas não respondeu a pergunta.

 

| Julia Dolce é repórter de O Joio e o Trigo. |

Imagem principal (Denise Matsumoto): lobby da pulverização aérea consegue reverter projetos de lei que limitam uso de agrotóxicos.

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