Não olhe para cima. Nem para as valas. Por Carol Almeida

Ou ainda: uma carta para Hossam Shabat

em Fora de Quadro

O medo inibe a imaginação e, portanto, a vida. A apatia inibe a imaginação e, portanto, a vida. Mas finalmente, o que é aquilo que alimenta o apetite insaciável do medo e da apatia, sentimentos tão distintos em suas liberações químicas, mas tão parecidos em suas capacidades de rapidamente tomar e travar nossos corpos? A ignorância. Existem vários tipos de engenharias da ignorância ou, podemos também chamar, tecnologias de normalizações do absurdo. Essas tecnologias operam de dentro da forma de organização de sistemas muito bem consolidados socialmente, como igrejas, escolas e as contas pra pagar no começo do mês. Há diferentes modos de convencimento nessas estruturas de que nossa sobrevivência material e emocional depende, efetivamente, de não saber de algumas coisas e, sobretudo, de não desejar saber de algumas coisas. É a inibição desse desejo que me pega.

Porque também entre essas engenharias da ignorância, uma que muito me interessa e com a qual estou mais acostumada a lidar nos últimos anos, é aquela de produção de ignorância simbólica operada a partir de sistemas muito bem montados de monoculturas visuais e discursivas que estimulam diariamente um desejo individual aniquilador de qualquer desejo de existência coletiva. Poderia, como costumo fazer, falar de cinema aqui. Mas não. Desta vez falarei do ofício que por muito tempo foi meu por decreto do Ministério do Trabalho – o registro tá lá na minha, infelizmente, mofada carteira de trabalho: jornalismo.

Como alguém graduada em jornalismo, com 10 anos de redação de jornal diário (no Recife) mais 5 anos de redação em portais de notícia e revistas (em São Paulo) e três semestres dando aula como professora substituta numa graduação de jornalismo na Universidade Federal de Alagoas (usando cinema pra tentar fazer animar estudantes a outros horizontes do real), posso dizer que sei, sim, como a salsicha é feita dentro da fábrica. Até hoje ecoa na minha cabeça absurdos que foram ditos em reuniões fechadas dos editores das quais, por um tempo, tive o desprazer de participar pra repassar as pautas do dia do caderno de cultura (nada disso existe mais hoje, digo, não apenas cadernos culturais se extinguiram, como a própria circulação massiva de jornais impressos).

Isso dito, não é novidade pra ninguém que a imprensa empresarial brasileira tem um longo histórico alianças perversas com as mais nefastas forças de poder, não serei eu a repassar esse histórico aqui. Mas algo que vem, de fato, me perturbando muito é observar como essa mesma imprensa empresarial brasileira conseguiu, ao longo desses últimos 18 meses (e contando) do mais hipervisível genocídio da história da humanidade, ser mais sádica e pernóstica que a própria imprensa empresarial do estado que promove esse genocídio, leia-se, Israel. E esse sarrafo, eu garanto, não é fácil de ser pulado. No entanto, as Organizações Globo e várias outras mídias financiadas pelo mercado estão aí para provar que o salto rumo ao abismo infinito da ignorância que produz medo e apatia sempre pode quebrar novos recordes.

Comentei, no meu último texto-desabafo aqui no Substack, como me incomoda o modo como algumas reais imagens de horror são instrumentalizadas em plataformas onde a circulação dessas imagens mais desumaniza alguns corpos do que, de fato, produz evidências da máquina de morte. No entanto, é preciso reconhecer que o jornalismo, pelo menos assim se supõe, deveria obrigatoriamente se endereçar aos testemunhos e às evidências do completo esfacelamento de um povo exterminado em massa à luz do dia e dos mísseis que agora são a única fonte de luz à noite. Mas as imagens que vi nos últimos meses – e isso naturalmente voltou a se intensificar nos últimos dias – não interessam ao jornalismo brasileiro. E, neste caso, não é que elas não estejam chegando aos nossos olhos porque essa mídia tem algum tipo de respeito pela nossa sensibilidade espectatorial e, muito menos, pela dignidade da vida das pessoas mortas pelo projeto sádico do sionismo. Pelo contrário:

É porque essa imprensa trabalha, efetivamente, para apagar, queimar e jogar as cinzas de qualquer evidência desse genocídio ao vento tempestivo do esquecimento. A imprensa brasileira é a incorporação discursiva da famosa frase da ex primeira-ministra de Israel, a sionista sanguinária Golda Meir: “Eles não existem”, dizia ela sobre o povo palestino, simultaneamente dando a entender ora que o povo palestino nunca teria existido naquele território, ora que esse povo não existe no sentido de que não haveria, nele, a qualidade que o cogito cartesiano estabelece como exclusivamente humana de consciência e, portanto, de existência.

Todas as vezes que César Tralli, William Bonner ou aqueles comentaristas supostamente mais ilustrados da GloboNews dão uma notícia começando a frase com “segundo o governo de Israel” eu escuto Golda Meir ecoando “eles não existem”. Todas as vezes que um grupo de jornalistas brasileiros decide viajar para Israel a convite de uma organização sionista em meio a esse já citado mais hipervisível genocídio de todos os tempos, eu escuto Golda Meir sorrindo “eles não existem”. E aqui vem uma afirmação que faço com base num acompanhamento de perto dessa cobertura: o principal jornal israelense, o Haaretz, consegue ter momentos de lucidez crítica à política genocida do estado de Israel e de seu exército que nenhum, repito, NENHUM meio de imprensa empresarial brasileira jamais conseguiu sequer esboçar.

De maneira sintética, como é que a coisa aqui funciona? Posso dizer que a cobertura das organizações Globo (que envolve o jornalismo de TV aberta, TV fechada e jornal) se situa no espectro que a maior parte das mídias empresariais se encontram hoje: totalmente alinhadas ao discurso sionista de Israel/EUA, quase como representantes daquilo que o governo israelense chama de “hasbara”, leia-se, a propaganda de guerra deles. E como atua esse “hasbara” midiático? Primeiro, a partir de nomeações falsas dos fatos. Em lugar de genocídio ou limpeza étcnica, a imprensa, alinhada a Israel/EUA, usa palavras como ‘guerra’ e ‘conflito’, como se existisse uma equivalência de forças naquele território, o que nunca houve. Palavras como “apartheid” também são terminantemente proibidas. Em tempo: tanto “genocídio” quanto “apartheid” são termos já consolidados por instituições do direito internacional e, no entanto, essa imprensa empresarial se recusa a usá-las.

Do mesmo modo, existe uma linha editorial que obriga uma transmissão que, sempre que possível, cria associações entre a luta palestina e o terrorismo, algo que a indústria audiovisual hollywoodiana vem trabalhando com afinco nas últimas décadas para cristalizar na mente das pessoas. Outro elemento desse “hasbara midiático” é usar estruturas de linguagem muito semelhante à dos discursos de extrema direita, com narrativas ambíguas que tendem a criar nas pessoas uma sensação de confusão. Se usam mecanismos de torção das ideias, acusando as pessoas daquilo que elas são acusadas. Então na hora que se acusa o estado de Israel de ser um estado racista e terrorista em suas práticas, eles “se defendem” acusando a todos de antissemitas e, claro, terroristas. A imprensa empresarial, na qual as Organizações Globo se encaixam, adota a mesma tática. O jornalismo empresarial brasileiro é a personificação mais perfeita e completa do hasbara.

Tudo isso me faz voltar aos anos que fui jornalista e que percebi, para minha tristeza absoluta, que, no Brasil ao menos, os jornalistas de maneira geral, particularmente aqueles que ascendem a pequenas, às vezes minúsculas, posições de poder, não se percebem como… classe trabalhadora. Sim, os jornalistas brasileiros que trabalham para grandes conglomerados empresariais acreditam, com frequência, que vivem numa Nárnia alijada da luta de classes. E eu garanto a vocês, como alguém que sabe como a salsicha é feita: está aí a origem de todos os nossos problemas. Quando o jornalismo brasileiro consegue ser mais sionista que aqueles que nasceram e foram criados pelo próprio sionismo, isso acontece porque editores, correspondentes e apresentadores acreditam, piamente, que vivem mais próximos dos donos das empresas para onde trabalham do que de uma classe trabalhadora assalariada (ou pior, “pejotificada”) que eles, de fato, são.

No caso da cobertura do que acontece em Gaza – e em todo território palestino de maneira geral – há um requinte de crueldade ainda maior dessa classe que não se reconhece como classe que é a de assistir, não apenas impassível como efetivamente cúmplice do crime, às mortes dos jornalistas palestinos que tentam, diante de um cenário de absoluto horror, se manter de pé para documentar as mortes de suas próprias famílias. Gostaria aqui de lembrar que morreu mais que o dobro de jornalistas na estreita faixa de Gaza em um ano e meio do que a totalidade de jornalistas que morreram durante os seis anos da Segunda Guerra Mundial ao redor da toda a Europa. Releiam essas últimas linhas, por favor.

Portanto, quando, muito recentemente, estive em um consultório médico e fui obrigada a ouvir César Tralli dando a versão de Israel para um dos mais horrendos massacres – dentre tantos – promovidos pelo exército terrorista sionista, leia-se, o extermínio de 15 socorristas cujos corpos foram jogados em uma vala comum (extermínio este do qual agora temos, não somente, provas visuais como a notícia de que algumas dessas pessoas foram enterradas vivas), minha vontade genuína era quebrar a TV do consultório. Não pude, claro. Me restou apenas xingar em voz alta, para pessoas absolutamente desinteressadas, o tamanho da mentira que estava sendo dita.

Mas comecei esse texto falando de uma palavra cara pra minha prática diante das imagens e, no entanto, proibida nos manuais de redação do jornalismo: imaginação. Essa que é exterminada, diariamente, pelo medo e pela apatia. Que, lembremos, são sentimentos por sua vez alimentados por engenharias discursivas como o próprio jornalismo. Passei os últimos dias pensando em Hossam Shabat, 23 anos, um dos mais de 180 jornalistas mortos em Gaza1 desde o 7 de Outubro de 2023 (ainda que Israel calculadamente mate jornalistas palestinos muito antes dessa data, Shireen Abu Akleh presente!).

Leio a carta que Hossam deixou, já sabendo que seria morto, e tento me comunicar com ele a partir dela.

A carta:

“Se você está lendo isso, significa que fui morto – provável que intencionalmente – pelas forças de ocupação israelenses. Quando tudo isso começou, eu tinha apenas 21 anos de idade, era um estudante universitário com sonhos como todo mundo. Ao longo dos últimos 18 meses, dediquei cada momento da minha vida ao meu povo. Documentei os horrores no norte de Gaza minuto a minuto, determinado a mostrar ao mundo uma verdade que eles querem enterrar. Dormi em calçadas, escolas, tendas – qualquer lugar onde fosse possível. Cada dia era uma batalha por sobrevivência. Sofri de fome por meses, e ainda assim nunca deixei meu povo.

Por Deus, cumpri com meu dever de jornalista. Arrisquei tudo para reportar a verdade e agora, finalmente, estou descansando – algo que nos últimos 18 meses me foi privado. Fiz tudo que fiz porque acredito na causa palestina. Acredito que essa terra seja nossa e foi a maior honra da minha vida morrer defendendo essa terra e servido a seu povo.

Eu peço agora: não parem de falar sobre Gaza. Não deixem o mundo desviar o olhar. Permaneçam lutando, permaneçam contando nossas histórias – até que a Palestina seja livre.

Pela última vez, Hossam Shabat.”

O que me é possível responder:

Querido Hossam, te vejo peixe nadando veloz no Mediterrâneo, rompendo com a fronteira invisível imposta por Israel aos pescadores de Gaza. Te vejo oliveira crescendo rizomas por debaixo da terra, do rio ao mar. Te vejo pássaro voando depois do último céu, ao lado do poeta que agora, também pássaro, te protege com suas próprias asas.

Mas também te vejo pipa anunciando o vento que traz o Anjo da História. Na plenitude e força de sua juventude, mas também na sabedoria precocemente amadurecida de suas palavras, sinto a tessitura dessa História enredar a todos nós, inclusive aqueles que se negam a ver, escutar e falar com você, por você, pelos seus. Os fios que, como as raízes de sua oliveira, começam a nos envelopar.

Porque acredito não somente na causa palestina, como acredito que ela é um divisor de águas para o futuro das diversas expressões de humanidades que ainda habitam a Terra. O extermínio do povo palestino é o extermínio da possibilidade de existirmos neste planeta, porque prova que qualquer litro de petróleo, qualquer especulação ao redor de recursos naturais, sempre vai autorizar o extermínio sistemático de crianças que morrem agora aos montes ora com tiros na cabeça, ora com seus pequenos corpos completamente esfacelados, ora de fome. Crianças que passaram a morrer em vida, incapazes, segundo vários relatos médicos, de se comunicar diante de tanto horror ao redor.

Do mesmo modo, Hossam, acredito que o extermínio dos jornalistas palestinos como você e seus colegas é o extermínio de todo jornalismo que hierarquiza algumas pessoas como mais humanas que outras. Você, que agora é peixe, é árvore, é pássaro, mas também é a pipa que alguma criança ainda consegue fazer voar no céu de Gaza, talvez siga sendo mais humano do que nunca.

De minha parte, não deixarei desviarem o olhar.

Até que a Palestina seja livre.

1

181 é, neste dia 6 de abril de 2025, o número oficial de jornalistas mortos. Aqui, registra-se o nome de todos eles. No entanto, sabe-se que essa é uma contagem baixa. Estima-se que mais de 200 jornalistas já morreram em Gaza. E que seguirão sendo alvos.

Hossam Shabat (2001 – 2025 – depois do último céu)

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