Contra o fatalismo histórico: os 180 anos das ‘Teses sobre Feuerbach’. Por Maurício Vieira Martins

Antirreligiosas e antiobjetivistas, as ‘Teses sobre Feuerbach’ de Marx completam 180 anos em 2025; merecem ser retomadas neste momento em que fatalismos históricos de diferentes matizes nos rondam, minimizando a capacidade de ação humana.

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“Quanto mais vazia é a vida, tanto mais rico, mais concreto será o Deus”, escreveu em 1843 o filósofo ateu Ludwig Feuerbach, em seu livro A essência do cristianismo. E ele prossegue, sem concessões: “O empobrecimento do mundo real e o enriquecimento de Deus são um mesmo ato. Somente o homem pobre possui um Deus rico. Deus nasce de um sentimento de carência”1.

Para os nossos padrões contemporâneos, é difícil imaginar o impacto dessa obra feuerbachiana no debate filosófico de meados do século XIX. Uma de suas afirmações mais candentes é a de que Deus é uma criação da consciência humana que, insatisfeita com sua condição atual, se aliena numa projeção imaginária. E, ousadia suprema, Feuerbach afirmava também que as supostas qualidades divinas (onipotência, onisciência, imortalidade) seriam na verdade ansiadas qualidades humanas, irrealizadas no mundo real e projetadas num ser imaginário. Embora a crítica à religião tenha uma longa história na Filosofia, ela foi apresentada de modo particularmente ácido por Feuerbach, que não mediu palavras ao referir-se à teologia como uma “mina inesgotável de falsidades, ilusões, contradições e sofismas”2.

O jovem Marx acolheu com entusiasmo a crítica feuerbachiana à alienação religiosa: podemos localizar referências elogiosas ao autor de A essência do cristianismo em textos marxianos de 1843 e 1844. Mais do que isso, Marx avaliava que também para a crítica da filosofia de Hegel havia indicações seminais nos textos de Feuerbach. Assim é que em A sagrada família, escrito em colaboração com Engels, podemos ler que: “é ele [Feuerbach] o primeiro que consuma a crítica da religião, traçando, ao mesmo tempo, os grandes e magistrais rasgos basilares para a crítica da especulação hegeliana e, por isso, de toda a metafísica.” (Marx; Engels, 2011, p. 159).

Contudo, ao longo de seu desenvolvimento intelectual — que se processou de modo muito rápido também na década de 1840 —, Marx detectou alguns limites sérios no materialismo de Feuerbach. Eles foram sintetizados num breve texto de 1845, conhecido como as “Teses sobre Feuerbach”3. Trata-se de um rascunho manuscrito, onde Marx lançou onze teses, sintéticas, que discutem os limites de diferentes posições filosóficas da época, fornecendo indicações sobre seu próprio pensamento. De um modo geral, elas são mais conhecidas pela última tese, a de número 11, que afirma que “Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo” (Marx, 2007, p. 535). Mas, na verdade, não apenas essa como todas as demais teses apresentam uma densidade filosófica muito instigante. Antirreligiosas e antiobjetivistas, elas completam 180 anos em 2025: merecem ser retomadas neste momento em que fatalismos históricos de diferentes matizes nos rondam, minimizando a capacidade de ação humana. Sem nem de longe ter a pretensão de esgotar a riqueza do texto, o intuito aqui é sobretudo despertar a curiosidade do público mais jovem, nem sempre familiarizado com a escrita marxiana, para sua leitura integral.

Talvez a mais desconcertante das “Teses sobre Feuerbach” seja precisamente a de número 1, pois ela nos mostra a insatisfação de Marx não apenas com o idealismo alemão — com quem nosso filósofo polemizou em mais de uma ocasião — mas também com o materialismo de sua época, inclusive o de Feuerbach. E do que reclama Marx? Dentre outros motivos, do fato desses materialismos não conseguir perceber a presença da atividade humana no mundo real:

O principal defeito de todo o materialismo existente até agora (o de Feuerbach incluído) é que o objeto [Gegenstand], a realidade, o sensível, só é apreendido sob a forma do objeto [Objekt] ou da contemplação, mas não como atividade humana sensível, como prática; não subjetivamente (Marx, 2007, p. 533).

Ao fim e ao cabo, o materialismo feuerbachiano oferece uma visão estática da realidade, desconhecendo as profundas transformações que nela transcorrem. Transformações que se devem tanto a processos naturais como também — e este é o aspecto que interessa a Marx destacar — pela atividade humana. É instrutivo o cotejo da primeira tese sobre Feuerbach com uma seção de A ideologia alemã, livro um pouco posterior de Marx e Engels, onde encontraremos desenvolvido com mais vagar o argumento sumarizado nas Teses:

Ele [Feuerbach] não vê como o mundo sensível que o rodeia não é uma coisa dada imediatamente por toda a eternidade e sempre igual a si mesma, mas o produto da indústria e do estado de coisas da sociedade, e isso precisamente no sentido de que é um produto histórico, o resultado da atividade de toda uma série de gerações (Marx; Engels, 2007, p. 30).

É esse o continente da história que Marx e Engels lutam por tornar visível; o mesmo em que, mais tarde, György Lukács detectou a espessura de uma ontologia social4. Assim, ao invés de um materialismo que supõe um mundo já dado — tacitamente expulsando qualquer presença subjetiva5 —, o que temos é uma realidade onde os sujeitos humanos transformam ininterruptamente a si mesmos e à natureza, através da práxis e do trabalho. Mesmo aqueles objetos que se apresentam de forma imediata aos nossos sentidos demandam um esforço de investigação que aponte para a sua gênese. Dentre os exemplos que A ideologia alemã fornece, é muito claro o que se refere a uma árvore, a cerejeira, que, não sendo nativa da Alemanha, demandou a atividade do comércio humano para só então se apresentar à certeza sensível que Feuerbach tanto prezava.

Já a tese de número 3 mostra quão equivocado é o entendimento da posição materialista quando ela é interpretada como um endosso unilateral da afirmação de que “as circunstâncias fazem os homens”, pois tal afirmação esvazia a capacidade de ação humana, que precisamente consegue transformar mesmo estruturas muito cristalizadas. Lembremos do interesse de Marx pelos processos que levaram à transformação de modos de produção estabilizados, como foi o caso do feudalismo e de suas instituições, que não escaparam do devir histórico que os alterou radicalmente. O materialismo contemplativo tem dificuldade em conceber a permanente dialética entre as circunstâncias encontradas e a atividade humana. Embora Marx não o mencione, esse determinismo encontrou um representante ilustre em Pierre-Simon Laplace, que supunha que, sendo conhecidas as condições iniciais do funcionamento de um sistema, seríamos capazes de prever os seus sucessivos desdobramentos, daí sua aposta numa inteligência na qual “nada seria incerto para ela, e tanto o futuro quanto o passado estariam presentes diante de seus olhos” (Laplace, 1995, p. 25).

Se mesmo a natureza que antecedeu o surgimento de nossa espécie não seguiu a suposição laplaciana, nas sociedades humanas essa vertente de imprevisibilidade (categoria que nunca deve ser confundida com a da irracionalidade) se torna ainda mais acentuada. Retornando agora a Marx, ele nos lembra que “A doutrina materialista sobre a modificação das circunstâncias e da educação esquece que as circunstâncias são modificadas pelos homens…” (Marx, 2007, p. 533).

Neste levantamento extremamente sumário de alguns aspectos relevantes das “Teses sobre Feuerbach”, vale também o destaque para a singularidade da tese de número 6. Nela, Marx escreve que “a essência humana não é uma abstração intrínseca ao indivíduo isolado. Em sua realidade, ela é o conjunto das relações sociais” (Marx, 2007, p. 534).

Notemos que tal entendimento da essência como um conjunto de relações sociais finda por implodir o entendimento tradicional do que seja essência. Pois a ousia a que se referiam os pensadores gregos — traduzida pelos latinos como essentia — designa um ser em sua dimensão mais fundamental, e que supostamente permanece a mesma ao longo das transformações temporais. Mas quem conhece a obra de Marx e Engels sabe que sua ênfase recai precisamente sobre as transformações sofridas pelos seres humanos e pela história. Ao invés de uma busca por essências atemporais, encontraremos nos fundadores do marxismo uma ênfase na historicidade das relações sociais.

Se quisermos um exemplo mais empírico sobre as modificações pelas quais um determinado indivíduo passa ao longo de sua existência, podemos recorrer ao relato rememorativo de Friedrich Engels, que em 1885 escreveu sobre Wilhelm Weitling, ativista prussiano do movimento operário. Talentoso camarada em sua juventude, ao longo do tempo Weitling se torna praticamente irreconhecível:

Mais tarde, Weitling veio para Bruxelas. Mas ele já não era mais o jovem e ingênuo alfaiate-jornaleiro que, espantado com seus próprios talentos, tentava esclarecer em sua mente como seria uma sociedade comunista. Ele era agora o grande homem, perseguido pelos invejosos por causa de sua superioridade, que farejava rivais, inimigos secretos e armadilhas em todos os lugares — o profeta, expulso de um país para o outro, que carregava uma receita pronta em seu bolso para a realização do céu na terra (Engels, 2010, p. 319-320).

No nosso século XXI, são inúmeros os exemplos de indivíduos que, afetados por condições internas e externas, metamorfoseiam-se quase que em seu oposto; e isso não ocorre apenas no âmbito da atividade política e intelectual, também na esfera das artes e da vida cotidiana mudanças drásticas são presenciáveis. Aqui, é impossível não levar em conta a pressão de uma sociedade altamente mercantilizada, que cobra seu alto preço sobre o devir das diferentes individualidades.

Se trouxermos esta reflexão para o nosso mundo contemporâneo, questões relevantes podem ser apresentadas àqueles setores dos movimentos de luta contra opressões que fazem uma aposta muito excludente numa identidade positivada, que definiria uma essência estável. É motivo de intenso debate no interior da esquerda avaliar até que ponto o fechamento numa certa identidade — como praticado pelas Identity politics, de gênero, de raça ou sexualidade — contribui para o avanço real de uma perspectiva anticapitalista. Em contrapartida, quando se consegue reunir uma perspectiva de classe social e de crítica às estruturas econômicas na luta contra uma determinada opressão, obtemos um avanço significativo tanto no debate teórico como na luta política. Que o digam Angela Davis e Lélia Gonzalez, que conseguiram articular com mestria, cada qual a seu modo, o combate ao racismo com o combate à estrutura capitalista.

Quanto à tese de número 8, ela nos diz que “Toda vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que conduzem a teoria ao misticismo encontram sua solução racional na prática humana e na compreensão dessa prática” (Marx, 2007, p. 534).

O alerta para a inescapável dimensão prática da vida social é também oportuno quando se trata de lidarmos com alguns dos desdobramentos mais recentes do campo intelectual. O crescimento contemporâneo de adesões religiosas — que atinge também setores de intelectuais — pode ser atestado de várias maneiras. Uma delas é lembrar que mesmo no interior do campo marxista tais adesões continuam em alta. Basta lembrar que o Deutscher Prize  (considerado o mais importante prêmio na área de teoria marxista) foi concedido em 2014 ao teólogo Roland Boer, que em seus livros busca aproximar o marxismo da teologia (Boer, 2013). Se o crescimento das religiões populares é fenômeno que merece um estudo respeitoso por parte dos marxistas, ainda assim causa espécie o fato do júri do referido prêmio — que deveria zelar pela integridade e pelo gume afiado do legado marxiano — optar por premiar a obra de um autor que busca teologizar o marxismo. Procedimento que, aliás, desconsidera as explícitas manifestações de Marx quanto à alienação fundamental em curso na procura religiosa (ocorra ela entre os teólogos ou entre os setores populares). Levando em conta a mencionada oitava tese sobre Feuerbach, é legítimo afirmar que são as dificuldades contemporâneas enfrentadas pela prática humana emancipatória — num capitalismo cada vez mais brutal — que levam o marxismo ao caminho fácil do misticismo, recusado com vigor pelo próprio Marx.

Finalmente, temos a merecidamente célebre Tese 11: “Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo”. Embora bastante transparente, autoexplicativa mesmo, ela ainda assim merece um breve comentário, pois no nosso século XXI, não são apenas os filósofos que investem majoritariamente seu tempo na interpretação do mundo de variadas maneiras. A invasão maciça da informática no cotidiano provocou mudanças gigantescas nas novas formas de subjetividade, de estar no mundo e de agir sobre ele. A fascinação exercida pelas redes sociais e pelos celulares é tamanha que a retirada de um gadget das mãos de seus usuários pode neles provocar crises de abstinência (documentadas nas clínicas especializadas nessa nova dependência). Além do investimento de tempo, há também o dispêndio de uma preciosa energia de vida dos usuários: são conhecidas as infindáveis polêmicas que ocorrem no ambiente virtual entre seus frequentadores, com resultados práticos próximos de zero. Por tudo isso, conseguir ultrapassar a captura sedutora das telas de internet e dos celulares rumo a um engajamento presencial nos eventos dos espaços públicos é também uma forma de honrar o legado comunista que Marx nos deixou.

Referências

BOER, Roland. In the Vale of Tears: on Marxism and Theology V. Leiden: Brill, 2013.

ENGELS, Friedrich. On the History of the Communist League. In: Marx & Engels Collected Works, vol. 26. London: Lawrence & Wishart, 2010.

FEUERBACH, Ludwig. The Essence of Christianity. New York: Prometheus Books. 1989.

LAPLACE, Pierre-Simon de. Ensayo filosòfico sobre las posibilidades. Barcelona: Ediciones Altaya, 1995.

LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social, vol I. São Paulo: Boitempo, 2012.

MARTINS, Maurício Vieira. Marx, Spinoza and Darwin: materialism, subjectivity and critique of religion. Palgrave MacMillan, 2022.

MARX, K. Ad Feuerbach. In: MARX K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A sagrada família. São Paulo: Boitempo, 2011.

 

Notas

  1. Cf. Feuerbach, 1989, p. 73. ↩︎
  2. Idem, p. 214. ↩︎
  3. Embora sejam amplamente conhecidas como “Teses sobre Feuerbach”, Marx na verdade intitulou o referido manuscrito apenas como “Ad Feuerbach“. ↩︎
  4. Cf. Lukács, 2012, pp. 281-302. ↩︎
  5. Comentei com mais vagar o acolhimento da dimensão subjetiva humana no pensamento de Marx no capítulo 5 de meu livro Marx, Spinoza and Darwin: materialism, subjectivity and critique of religion (2022). ↩︎

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Maurício Vieira Martins é doutor em Filosofia e professor da Universidade Federal Fluminense. Membro do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas sobre Marx e o Marxismo (NIEP-Marx/UFF).

Grafiti do artista urbano Marycula em Berlim, 2017. Marx examina o lixo, com a frase “Lhes disse como mudar o mundo” escrita na camiseta.

 

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