Um livro contundente e atual. Por Luis Felipe Miguel

Mais de 50 anos depois de publicado, “O mito do desenvolvimento econômico”, de Celso Furtado, continua essencial para entender os dilemas do Brasil

em Amanhã não existe ainda

Nascido na Paraíba, em 1920, Celso Furtado foi um dos nomes incontornáveis da vida intelectual brasileira do século XX. Depois de concluir seu doutorado em economia, trabalhou na CEPAL, a Comissão Econômica para a América Latina, órgão das Nações Unidas liderado por Raúl Prebisch, que tinha objetivo discutir as condições para o desenvolvimento da região.

Ele criou e foi o primeiro superintendente da Sudene, destinada a fomentar o crescimento da região Nordeste, no governo Juscelino Kubitschek. Foi ministro do Planejamento de João Goulart. Cassado pela ditadura, exilou-se. Na redemocratização, foi ministro da Cultura. Faleceu em 2004.

Autor de dezenas de livros, é conhecido sobretudo pelo clássico Formação econômica do Brasil, que vendeu cerca de 300 mil exemplares e o firmou como um dos grandes intérpretes do país.

Ainda que menos conhecido, este O mito do desenvolvimento econômico, lançado originalmente em 1974 e que ganha agora uma bem-vinda reedição, é uma de suas obras mais importantes.

O livro começa com um longo debate sobre o relatório Os limites do crescimento, que Donella Meadows e outros escreveram para o Clube de Roma e que se tornou um best seller. Furtado está de acordo com a constatação de que a expansão capitalista desenfreada levaria ao colapso ecológico, algo que é ainda mais irrefutável hoje, mais de 50 anos depois.

Mas sua principal preocupação é demonstrar que uma das teses do relatório é insustentável: não é imaginável uma universalização do modo de vida dos países centrais.

Afinal, este modo de vida está escorado também na apropriação da força de trabalho da periferia. A ideia de que um dia todos viveram como a classe média dos Estados Unidos é ilusória.

O subdesenvolvimento não é uma etapa de uma trajetória única, que os países pobres superariam copiando o processo ocorrido nos países desenvolvidos. Pelo contrário, como diz Ndongo Samba Sylla no texto que serve de posfácio à nova edição, “desenvolvimento e subdesenvolvimento são gêmeos siameses criados pela expansão do sistema capitalista”.

Ou, então, como sintetiza Leda Paulani, no prefácio: o subdesenvolvimento não é uma etapa, é um tipo específico de formação capitalista – a tese que Furtado elaborara em outra obra fundamental, Desenvolvimento e subdesenvolvimento, de 1961, e que prossegue aqui.

Mas visões evolucionistas continuam em alta: basta ver o prêmio pseudo-Nobel de Economia do ano passado, concedido a Daron Acemoglu, Simon Johnson e James A. Robinson, três pesquisadores que afirmam que o problema dos países pobres é não terem implantado as “boas instituições” que lhes permitiam trilhar o caminho do desenvolvimento.

A ideia de que com uma dose de sacrifícios nós superamos nossas deficências e nos igualamos aos países da América do Norte ou da Europa Ocidental é uma armadilha ideológica. Nosso subdesenvolvimento é condição para o desenvolvimento deles.

A linha divisória entre desenvolvimento e subdesenvolvimento é a utilização do excedente que aumento de produtividade engendra. No subdesenvolvimento, ele é dissipado no consumo por uma minoria que tenta imitar o padrão de vida dos países ricos, no que o autor denomina “mimetismo cultural”.

Enquantos uns poucos usufruem desse padrão de consumo, as massas ficam condenadas à precariedade.

No caminho, Furtado faz uma crítica ácida ao formalismo de boa parte da ciência econômica, que a torna incapaz de entender a sociedade (de uma maneira que me lembra bastante a crítica similar, mas dirigida à ciência política, que Claus Offe e Helmut Wiesenthal fazem no artigo “As duas lógicas da ação coletiva”, de 1980). Vale citar um longo trecho:

“Para o economista, existe algo comum a todo ato de investimento: a subtração de recursos ao consumo, ou a transferência do ato de consumo de hoje para o futuro. ‘Sobre este ponto estamos todos de acordo’, diria o professor de economia. Ora, essa afirmação se baseia numa falácia gritante: a ideia de que o consumo é uma massa homogênea. Quando me privo de uma segunda garrafa de vinho, subtraio 50 cruzeiros ao consumo, os quais podem ser utilizados para investimento; quando um trabalhador manual é obrigado a reduzir a sua ração de pão, pode estar comprimindo o nível de calorias que absorve abaixo do que necessita para cobrir o desgaste do dia de trabalho, o que a longo prazo pode reduzir o número total de dias que trabalhará em sua vida. […] Como medir com a mesma régua a inversão financiada com a redução do pão dos trabalhadores e a outra financiada com a minha privação de uma garrafa de vinho?”

Escrito com verve e clareza, como é padrão nas obras do autor, O mito do desenvolvimento econômico é um documento da época que foi escrito – opondo-se àqueles que ainda celebravam o “milagre” alardeado pela ditadura, indicando que a política econômica do regime só produziria concentração da riqueza e o aprofunfamento de nossa posição periférica no capitalismo global. Mas, como (infelizmente) os desafios de então ainda não foram superados, guarda enorme atualidade.


Celso Furtado – O mito do desenvolvimento econômico. Prefácio de Leda Paulani. Posfácio de Ndongo Samba Sylla. São Paulo: Ubu, 2024. (Ed. orig, 1974.)

Johann Moritz Rugendas, Preparação da raiz da mandioca (1835)

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