É essencial proteger as crianças, mesmo que isso signifique confrontar discursos prontos.
Um menino chora na noite, atrás da parede, atrás da rua,
longe um menino chora, em outra cidade talvez,
talvez em outro mundo.Carlos Drummond de Andrade, O sentimento do mundo
François Bayrou é o atual primeiro-ministro da França. Um político veterano, figura de proa da direita católica. Foi várias vezes candidato a presidente, sem sucesso, até que parece que largou mão e aceitou o papel de coadjuvante do macronismo.
Um dos escândalos com os quais ele tem que lidar diz respeito à revelação dos abusos sistemáticos aos quais eram submetidos os estudantes do colégio Notre-Dame-de-Bétharram, incluindo espancamentos, agressões sexuais e negligência em cuidados médicos, por vezes levando à morte. Ele diz que não sabia de nada.
Ele foi prefeito de Pau, cidade em que está colégio. Mas diz que não sabia de nada.
Era ministro da Educação do governo Jacques Chirac, no período em que as violências contra os alunos foram mais acentuadas. Mas diz que não sabia de nada.
Três de seus filhos estudaram lá. Mas ele diz que não sabia de nada.
Uma das filhas veio a público contar episódios como aquele em que foi surrada, a socos e pontapés, por um dos padres do colégio. Bayrou continua dizendo que não sabia de nada.
O primeiro-ministro nega, mas é cada vez mais difícil acreditar que ele não acobertou os abusos de Bétharram.
O caso nos conta mais do que a hipocrisia de um político. Mostra que não existe grupo social mais oprimido do que as crianças.
As violências cometidas contra as crianças são as mais facilmente esquecíveis, perdoáveis, negligenciáveis.
É um mundo que não se comove com o sofrimento de milhares e milhares de crianças palestinas – muitas mortas, outras mutiladas, passando fome, sem escola, perdendo suas famílias inteiras.
Mas nem precisamos ir tão longe. Basta pensar no nosso dia a dia.
Basta imaginar como seria se algum adulto fosse tratado da maneira como as crianças são normalmente tratadas. Se a gente achasse que podia lhe dar um tapa quando não obedecesse. Ou obrigar a comer o que não queria. Ou mandar ficar calado quando sua intervenção não é bem-vinda.
Se um restaurante ou uma pousada anunciasse que não aceitava pessoas do grupo X – judeus, negros, gays, autistas, qualquer grupo – da mesma forma como muitos fazem com crianças, não seria um escândalo?
As crianças são crianças, isto é, não dominam ainda todos os códigos. Mas são – e aqui vale o clichê – o futuro da humanidade. Quem propõe a exclusão das crianças do espaço público está, na verdade, recusando o nosso compromisso coletivo com a educação e o bem-estar delas.
E é de se perguntar como as crianças poderiam desenvolver as competências necessárias para a convivência com outras pessoas se é bloqueado a elas o treinamento para que isso ocorra.
A repulsa às crianças carrega em si dois elementos centrais da razão neoliberal. Um é o individualismo, que erode qualquer compromisso com os meus semelhantes. Outro é a privatização absoluta das tarefas de cuidado. Quem tem filho que cuide deles – o que, na prática, significa “que os controle para que eu não tenha sequer que notar a existência deles”.
Todos os adultos um dia foram crianças. Nem isso garante um mínimo de empatia. É outra característica desse individualismo neoliberal: meu eu de hoje enterra, espezinha e despreza todos os meus eus anteriores. É como faz o empreendedor de moderado sucesso em relação ao pobre, o neoevangélico em relação ao jovem de vida “desregrada”, o adulto em relação à criança.
À direita, a gente sabe, as únicas crianças que têm valor são aquelas que ainda não nasceram. As outras podem viver na miséria, podem sofrer abusos, podem até ter que virar mães.
Dentro da família, na versão conservadora, impera a situação que a feminista francesa Christine Delphy definiu como “estado de exceção”: os direitos de seus integrantes estão suspensos. É uma situação que atinge as mulheres mas, ainda mais, as crianças.
Quando foi aprovada a Lei Menino Bernardo, que criminaliza o espancamento de crianças no ambiente familiar, deputados pastores, como Marco Feliciano, e não pastores, como Jair Bolsonaro, se revoltaram. Eram outros tempos; hoje, quase certamente, uma lei assim não seria sequer aprovada. Mas, tendo sido aprovada, é praticamente letra morta. Ainda impera, na sociedade, a ideia de que bater em criança não é problema.
O pessoal do Escola Sem Partido sintetizou essa postura no slogan “meu filho, minhas regras”. É a ideia de que a criança não é um sujeito de direitos. É um projeto dos pais, não um indivíduo. Se os pais desejam, a criança pode ser privada do acesso à educação ou de cuidados de saúde básicos, pode ter sua integridade física violada e assim por diante.
Meus filhos, minhas regras, mas também, em alguns casos, meu dinheiro. A exploração do trabalho infantil começa nas fábricas, nas lavouras e no trabalho doméstico, mas chega, em outras classes sociais, nos influenciadores mirins.
John Locke, o grande inspirador do pensamento liberal, já dizia que filhos de trabalhadores estão aptos a ganhar o próprio sustento partir dos 3 anos de idade. Nas redes também, expostos, amestrados – para ganho e gozo dos adultos.
Faz um tempo, li reportagem sobre uma influenciadora holandesa, uma adolescente que fazia vídeos de snowboarding e que, desde os 13 anos de idade, era seguida por milhares de pedófilos. Os pais sabiam e concordavam. Quando ela completou 18 anos, os seguidores comemoraram o fato de que ela iria entrar em plataformas de “conteúdo adulto”. “Feliz aniversário”, escreveu um, em francês. “Mal posso esperar para te ver sem nenhuma roupa”.
Mas é preciso dizer: a normalização da objetificação sexual, que transborda para as crianças, não é mais privilégio da direita. Se a objetificação é ressignificada como “empoderamento”, como bloquear o acesso das crianças e adolescentes?
Ainda mais quando vinculada a práticas consideradas “transgressoras”. Meses atrás, a direita fez um carnaval com a foto de uma menina de quatro ou cinco anos de idade, ao lado de homens em trajes de fetichismo sadomasoquista.
Nikolas Ferreira disse que era o Brasil. Na verdade, foi tirada numa parada gay em Montreal – a direita é viciada em mentir. De todo jeito, alimenta os projetos de lei que visam criminalizar quem leva crianças à parada gay.
É claro que é perfeitamente legítimo levar crianças para manifestações em defesa dos direitos de gays, lésbicas ou qualquer outra minoria. Mas quando se trata de um carnaval altamente sexualizado, não importa qual seja sua orientação – aí estamos diante de uma situação potencialmente abusiva.
A indignação da direita é seletiva, mas claro que, no caso, ela tem um ponto. E quando se defronta com uma esquerda que fica presa a um “progressismo” de verniz, na verdade imaturo e desprovido de compromisso com o mundo real, o serviço fica fácil.
Outro exemplo é a reação à recente decisão do Conselho Federal de Medicina sobre tratamentos hormonais em menores de idade.
Sim, o CFM não é flor que se cheire. Todo mundo sabe disso. Mas a decisão de impedir o tratamento hormonal cruzado e as cirurgias de redesignação de gêneros em menores foi rechaçada pelos “progressistas” sem qualquer reflexão, sem atenção aos riscos associados à introdução de procedimentos seletivos, com efeitos colaterais nem sempre claros, muitas vezes irreversíveis, em pessoas imaturas, influenciáveis, volúveis, com o cérebro ainda em formação. Tudo isso em um vazio de consenso científico (médico, psicológico, sociológico), com dados tão básicos, como a taxa de arrependimento, altamente disputados e em meio à pressão de poderosos interesses econômicos.
Estranha sociedade essa em que se considera que a criança não tem condições der decidir o que vai comer no almoço (“tem que ter verde, não pode ter salsicha”), mas pode decidir por tratamentos que potencialmente afetam todo o seu desenvolvimento futuro.
Aí está o nó da questão: as crianças devem ser protegidas exatamente porque não têm condições de tomar decisões em seu próprio nome. Mas, por isso, a fachada de proteção corre sempre o risco de se transformar em abuso – e o reconhecimento de que a criança não tem condições de decidir vira desprezo pelo que ela expressa e sente.
Para resolver o problema, é necessária uma sociedade que priorize a segurança e o bem-estar das crianças, aceitando-as como pessoas integrais, dotadas de direitos, em especial o direito de amadurecerem e se tornarem adultos plenos e autônomos.
E é possível – mais do que possível, é imperativo – entender que a proteção aos direitos de qualquer grupo social não precisa e não pode ofender o princípio da proteção à infância.
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Hans Süß von Kulmbach, detalhe do Tríptico do rosário (c. 1510)
