É somente através de negacionismo, revisionismo e desinformação que se pode negar papel da URSS na Segunda Guerra Mundial
Por Estevam Silva, no Opera Mundi
“Sem os Estados Unidos, a libertação nunca teria acontecido. (…) A vitória foi alcançada principalmente graças a nós, gostem ou não”. A declaração foi dada pelo presidente norte-americano Donald Trump na última quarta-feira, dia 7 de maio, na véspera das celebrações dos 80 anos do Dia da Vitória — data da rendição incondicional da Alemanha nazista e do fim da Segunda Guerra Mundial na Europa.
A frase de Trump é apenas a adição mais recente a um extenso catálogo de declarações revisionistas que buscam, ao mesmo tempo, apagar o papel da União Soviética na luta contra o regime nazista e exagerar a contribuição dos Estados Unidos e de seus aliados no Ocidente.
Nos discursos oficiais das autoridades norte-americanas, as forças armadas dos Estados Unidos e Reino Unido costumam ser parabenizadas pela vitória sobre a Alemanha, ao passo que os militares soviéticos/russos não são sequer citados.
A Rússia foi excluída da celebração dos 80 anos do desembarque das tropas aliadas na Normandia, organizada pela França no ano passado. Já a Alemanha, que até 20 anos atrás estava banida da cerimônia, esteve presente no ato.
Em 28 de janeiro de 2020, em pleno Dia de Lembrança do Holocausto, a Embaixada dos Estados Unidos na Dinamarca parabenizou os soldados norte-americanos por “libertarem os judeus de Auschwitz” — ignorando o fato de que foram os combatentes do Exército Vermelho que libertaram o mais infame dos campos nazistas.
O esforço de guerra soviético
É somente através de doses cavalares de negacionismo, revisionismo e desinformação que se pode negar o papel da União Soviética na Segunda Guerra Mundial. O país é, de longe, o que mais contribuiu para a derrota da Alemanha nazista.
Nenhuma outra nação venceu tantas batalhas e mobilizou tantos soldados no esforço de guerra. Entre 1941 e 1945, o Exército Vermelho destruiu e capturou 607 divisões do Eixo. Para efeitos de comparação, Estados Unidos e Reino Unido, juntos, neutralizaram 176 divisões.
Os soviéticos foram responsáveis por encerrar o domínio alemão em quase todas as nações do Leste Europeu e liberaram os prisioneiros dos maiores campos de concentração e extermínio mantidos pelo Terceiro Reich.
Mais de 74% das baixas totais da Alemanha nazista (10 milhões, entre 13,4 milhões de soldados) foram provocadas pelo Exército Vermelho. O número de soldados nazistas mortos pelas tropas soviéticas na Frente Oriental é seis vezes maior do que o contingente de todas as outras frentes somadas.
Em seu ápice, a União Soviética mobilizou 34 milhões de soldados no Exército Vermelho — 2,6 vezes mais combatentes do que as outras 25 nações aliadas juntas. Os soviéticos inutilizaram 75% de todo arsenal da Alemanha nazista — incluindo 62 mil aviões, 56 mil blindados e 180 mil peças de artilharia.
A capacidade industrial da União Soviética foi um pilar fundamental da luta antinazista. O governo soviético mobilizou milhares de fábricas para atuar no esforço de guerra. Entre 1941 e 1945, o país fabricou aproximadamente 20 milhões de rifles, 55 mil tanques T-34, 36 mil canhões autopropulsados, 120 mil aeronaves e 70 navios de guerra.
O custo do conflito
A União Soviética é também o país que mais sofreu perdas humanas durante a Segunda Guerra Mundial. A ofensiva genocida perpetrada pelos nazistas contra o país custou a vida de 14,6 milhões de civis e de 12 milhões de soldados. Ao todo, 26,6 milhões de soviéticos foram mortos no conflito — quase 14% da população do país.
Além das mortes em combate e nos campos de prisioneiros, muitos soviéticos faleceram em decorrência das doenças e das crises famélicas. Estima-se que mais de 800 mil morreram de fome apenas no Cerco a Leningrado. Ao menos 5 milhões de sobreviventes soviéticos ficaram gravemente feridos ou mutilados.
A perda de uma geração de jovens criou um desequilíbrio demográfico que afetou a União Soviética por décadas. A destruição de parte substancial da força de trabalho teve profundo impacto na economia do país.
O segundo maior contingente de mortes na Segunda Guerra Mundial pertence à China — entre 15 e 20 milhões de mortes. Os Estados Unidos perderam cerca de 419.000 pessoas (0,3% da população), e o Reino Unido, aproximadamente 450.000 (0,9% da população).
A União Soviética também sofreu enormes perdas econômicas. Conforme o Protocolo Final de Yalta, o país arcou com 65% dos prejuízos totais da guerra. Durante os julgamentos de Nuremberg, a União Soviética apresentou evidências de que os alemães dizimaram 71 mil cidades e vilarejos e destruíram 32 mil empresas.
Cerca de 98 mil fazendas coletivas foram arrasadas, com a perda de milhões de cabeças de gado e equipamentos agrícolas. Dezenas de milhares de ferrovias foram destruídas.
O reconhecimento da façanha soviética
Tão crucial e evidente foi a colaboração soviética na luta contra o nazismo que até mesmo as autoridades norte-americanas se viram obrigadas a dar o braço a torcer.
Ainda em 1943, o presidente Franklin Roosevelt exaltou em um discurso os “feitos magníficos, sem paralelo na história” do Exército Vermelho, responsável por, em suas palavras, “colocar Hitler e suas tropas no caminho da derrota definitiva”.
Douglas MacArthur, o comandante-chefe do Exército dos Estados Unidos, chamou a campanha russa contra a Alemanha de “a maior conquista militar de toda a história”.
Frank Knox, secretário da Marinha norte-americana, reconheceu que os Aliados tinham uma “dívida de gratidão eterna com os povos e exércitos da União Soviética”. E o secretário de guerra, Henry Lewis Stimson, assegurou que “jamais houve maior demonstração de coragem do que a do povo da Rússia soviética”.
A percepção de que a União Soviética havia sido a principal responsável pela derrota do nazismo era compartilhada pelo público em geral. Uma pesquisa realizada pelo Instituto Francês de Opinião Pública (IFOP) em maio de 1945, logo após o fim da Segunda Guerra na Europa, deixa esse dado mais evidente.
Quando questionados pelos pesquisadores sobre qual era o país que mais tinha contribuído para a derrota da Alemanha nazista, 57% dos franceses apontaram a União Soviética. Outros 20% disseram que era os Estados Unidos. E 12% indicaram o Reino Unido.
Mas ao repetir a mesma pesquisa em 2004, o IFOP obteve resultados completamente distintos. Nessa última sondagem, 58% dos franceses creditaram aos Estados Unidos o papel de principal responsável pela derrota dos nazistas. Outros 16% apontaram os britânicos. E somente 20% afirmaram ser a União Soviética.
A batalha pela memória
A alteração do entendimento dos franceses reflete não apenas o efeito do distanciamento histórico no conhecimento acerca da contribuição efetiva dos Aliados, mas sobretudo o papel proeminente da indústria cultural, da mídia e dos aparelhos ideológicos ocidentais na percepção da realidade.
A breve política de tolerância em relação à União Soviética que vigorou durante a Segunda Guerra foi abruptamente encerrada após o término do conflito e a emergência da Guerra Fria. Em 1947, os Estados Unidos instituíram a Doutrina Truman — uma política que visava conter a expansão do bloco socialista e reforçar o domínio político, cultural, militar e econômico dos Estados Unidos sobre as nações periféricas.
Como parte desse esforço, as potências ocidentais pretendiam resgatar e amplificar a narrativa da União Soviética como uma ameaça perigosa para o “mundo livre”. Era necessário, então, apagar o poderoso trunfo que os socialistas adquiriram ao derrotar o mais nefasto regime da história — que fora, aliás, reivindicado ou elogiado por ícones do liberalismo, incluindo Churchill, Henry Ford e William Hearst.
Boa parte dos centros de formação e difusão do pensamento ocidental foram mobilizados na tarefa da reescrita da história. Na academia, uma poderosa corrente revisionista ganhou fôlego a partir dos anos 50, propondo a equiparação do nazismo ao comunismo, tratando-os como regimes totalitários semelhantes.
Buscava-se, dessa forma, deslegitimar o legado da União Soviética, sugerindo que sua luta contra o nazismo não se encontrava em um patamar diferenciado de civilidade ou moralidade.
O mesmo modus operandi foi repetido na campanha contra Josef Stalin. Para desqualificar o homem que derrubou o Terceiro Reich, era necessário convencer o público de que ele era um genocida ainda pior do que Hitler.
Historiadores e jornalistas ligados ao pensamento anticomunista, de Robert Conquest a Stéphane Courtois, produziram centenas de trabalhos que tinham como foco “denunciar os horrores” cometidos pela União Soviética, apresentando números de vítimas cada vez mais impressionantes — obtidos a partir de metodologias cada vez mais inconsistentes e questionáveis.
Os mitos
Um dos artifícios mais utilizados na campanha de desqualificação e vilanização da União Soviética e de difusão do ideário anticomunista foi a reciclagem de mitos criados pela propaganda nazista.
O caso mais conhecido é o do Holodomor. A tese de que Stalin teria causado propositalmente a terrível crise famélica de 1932-1933 fora criada pelo próprio Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Adolf Hitler, ainda em 1934.
Durante a Guerra Fria, a acusação seria retomada e difundida à exaustão — a despeito do fato de que, até hoje, mesmo após a abertura dos arquivos soviéticos, jamais se encontrou qualquer prova documental que valide a tese de que a fome foi construída como parte de um plano genocida.
Ao mesmo tempo em que a imagem da União Soviética era violentamente atacada, filmes, séries, documentários e a indústria cultural em geral supervalorizavam o papel dos Estados Unidos na guerra. A grande maioria das produções ocidentais sobre o conflito tem como foco a Frente Ocidental ou o Pacífico — ignorando a Frente Oriental, onde a União Soviética lutou e onde quase 80% das baixas alemãs ocorreram.
A ênfase no “Dia D” e sua caracterização como o “ponto de virada” da guerra é um caso clássico. A invasão da Normandia, liderada pelos Estados Unidos, é frequentemente apresentada pelas narrativas da cultura de massa como o evento decisivo da Segunda Guerra Mundial — ao mesmo tempo em que as ofensivas soviéticas que efetivamente definiram os rumos do conflito, como as batalhas de Stalingrado e Kursk e a Operação Bagration, são totalmente ignoradas.
Alguns autores contemporâneos têm se esforçado em corrigir essas distorções, mas a influência das narrativas da Guerra Fria ainda persiste em certos círculos. Os norte-americanos parecem seguir à risca a ideia de que, se não é possível mudar o passado, é possível manipular a percepção das pessoas aliando propaganda e ignorância e vendendo revisionismo histórico como entretenimento.
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Fotografia histórica tirada por Yevgeny Khaldei Anan’evich em 02/05/1945, dia em que ocorreu a rendição incondicional de Berlim ao Exército Vermelho, na Segunda Guerra Mundial. O soldado da foto está no alto do Reichstag.