Desprezada na teoria da democracia convencional, a comunicação tornou-se protagonista das explicações sobre sua crise
Está chegando às livrarias Democracias em crise, teorias em transe, livro que organizo junto com Luciana Ballestrin e que está sendo lançado pela Autêntica. São artigos de Cristiana Losekann, Gabriela Nunes Ferreira e Maria Fernanda Lombardi Fernandes, Jorge Chaloub, Maria Caramez Carlotto e Marcelo Sevaybricker Moreira, além dos organizadores, sobre o atual estado de perplexidade, da Ciência Política e da teoria política, com o desmoronamento das democracias concorrenciais.
Meu capítulo trata da relação entre a crise da democracia e a desinformação. Apresento abaixo um trechinho dele.
Um elemento importante a ser considerado na crise atual é que ela é efeito também, a longo prazo, da adesão dos agentes políticos aos incentivos que o ambiente institucional dá a determinados comportamentos. O principal aspecto a ser levado em conta, aqui, é o hiato entre a progressiva abertura da política aos grupos dominados, com a expansão do sufrágio, e a permanência das desigualdades no acesso às posições de poder. O resultado é uma combinação entre o modelo liberal de elites que disputam o governo e a promessa democrática de igualdade, que, para funcionar, deveria garantir certa impermeabilidade entre as tarefas de governo e os processos eleitorais competitivos, como já apregoava Joseph Schumpeter em sua clássica descrição normativa da democracia concorrencial. Em particular, governo e oposição precisavam manter uma identidade forte como integrantes de uma mesma elite que tinha a responsabilidade de conduzir a nação.
No entanto, o acesso às posições de poder depende do voto popular, o que leva a incentivos conflitantes com a manutenção dessa identidade. O apelo retórico ao “povo”, próprio do discurso político em ambientes democráticos, é o exemplo mais óbvio, mas nem de longe o mais importante. Um estudo do final da década de 1990, no âmbito da discussão sobre campanha permanente entre legisladores, mostra que há um aumento constante do tempo dedicado a interagir com os eleitores (ou a cortejar potenciais financiadores de campanha), com consequente redução da socialização com outros congressistas, logo da produção do “sentimento de um ‘nós’ coletivo”. Os autores observam que medidas aparentemente democratizantes, como a maior abertura do comportamento parlamentar à exposição pública, levam à maior antecipação dos efeitos eleitorais, já que cada voto no legislativo e cada discurso na tribuna podem se tornar tema de campanha. Até mesmo a imoderação no uso de ferramentas excepcionais como o filibuster (a obstrução do trabalho legislativo), que por vezes aparece como sintoma expressivo da crise atual da democracia, já é registrada como um aspecto da campanha permanente. A restrição a seu uso dependia da solidariedade de base entre governo e oposição, à crença de que, embora adversários, compartilhavam uma responsabilidade comum. É isso que se rompe.
Ao mesmo tempo, uma das características da campanha permanente é o uso ininterrupto das sondagens de opinião tanto para avaliar a popularidade do governo quanto para determinar as políticas a serem adotadas – privilegiando aquelas que prometem melhores resultados imediatos, em termos de apoio público. Uma crítica clássica à democracia, sua temporalidade curta, torna-se ainda mais gritante: não se trata de chegar bem na próxima eleição, mas na próxima sondagem. Fica esvaziado o papel da liderança política, agora condenada a reproduzir o que os institutos de pesquisa dizem que é a vontade de seus potenciais constituintes.
De fato, o que literatura lamenta é a erosão da divisão estrita do trabalho político entre governantes e governados. Uma fronteira quase intransponível deveria separar o momento da campanha, em que os cidadãos comuns são chamados a decidir, e o momento do governo, que cabe às elites políticas. Quando essa fronteira é apagada, o jogo das elites, em que governo e oposição, cada um no seu papel, mantinham o compromisso básico com o bom funcionamento do sistema, fica inviabilizado. A cada momento, os líderes devem fazer a acenos à sua base. Com isso, uma das vantagens reconhecidas do sistema representativo – o fato de que o corpo de representantes, mais homogêneo, mais acomodado e mais racional, amortece os conflitos políticos – é anulado. Os líderes políticos devem manter um discurso e uma prática aguerridos todo o tempo, porque é isso que fortalece a identificação partidária de seus liderados.
A campanha permanente, de forma mais moderada, e o “populismo” hoje diagnosticado, de maneira mais radical, são manifestações do mesmo problema: a difícil compatibilização entre a fachada democrática do sistema e sua operação efetivamente censitária. Na leitura de Bourdieu, a solução passava pela abstenção, apatia e desinteresse de um eleitorado que introjetava sua própria impotência, lendo a impermeabilidade do campo político às demandas vindas de baixo como a demonstração de uma incapacidade pessoal. Mas agentes políticos souberam mobilizar essa situação em benefício próprio, sem desafiar – ou apenas fingindo que desafiavam – as assimetrias de base que limitam o alcance das democracias realmente existentes.
Há um ponto em que o acúmulo e a aceleração das transformações levam a uma ruptura, com a emergência de uma elite política que marca com clareza sua diferença em relação à anterior. Há outra descontinuidade, talvez sutil, porém significativa. A campanha permanente anterior ao diagnóstico da crise da democracia ainda era vista como uma busca de controle do público pelos governantes, por meio do uso intensivo de sondagens de opinião e do acesso aos meios eletrônicos de comunicação. Já o “populismo” é percebido como um alinhamento do líder à mentalidade rasa e desinformada de sua base.
Isso é considerado um problema porque o bom funcionamento da democracia liberal dependeria de uma espécie de pacto de cavalheiros, em que os integrantes da elite política disputam os votos do povo mas, uma vez passadas as eleições, entendem que a vontade popular não passa de uma esmaecida figura de retórica e fazem seus acordos entre si. Respeitam, em suma, a regra sugerida por Schumpeter: a divisão do trabalho político deve ser estrita e a passividade do eleitorado precisa ser garantida a todo custo.
Assim, a crise da democracia da década de 2010 leva a respostas parecidas com aquelas da crise de governabilidade de quatro décadas antes: reforço das hierarquias sociais e restrição dos procedimentos democráticos ao momento eleitoral, de maneira a garantir a legitimação da dominação e um grau indeterminado de accountability de resultados.
É necessário, no entanto, explicar o que levou a essa situação: isto é, o que levou à ruptura do pacto de cavalheiros. Os autores das correntes hegemônicas na ciência política, como aqueles antes citados, tendem a indicar duas grandes causas. Uma delas é a reversão da expectativa de melhoria do padrão de vida material, que era constante nos países capitalistas centrais desde o final da Segunda Guerra Mundial. Pela primeira vez em décadas, as pessoas se defrontavam com a perspectiva de ter uma vida material inferior à de seus pais (em termos de consumo, patrimônio e estabilidade), o que minou a confiança no sistema e ampliou a vulnerabilidade a discursos transgressores. A ideia subjacente é que o regime democrático se legitima por seus resultados e, portanto, os consensos que o definem definham à medida que esses resultados se tornam piores.
A outra causa é a emergência dos novos circuitos de informação, sobretudo com a disseminação das plataformas sociodigitais baseadas na internet. Sem eles, certamente o desgaste da democracia liberal seria expresso de outra forma. Alguns de seus aspectos mais evidentes se relacionam com a degradação do debate público, a decadência dos critérios de adesão à realidade factual para balizar as tomadas de posição e a crescente agressividade retórica. Assim, de uma maneira talvez surpreendente, os meios de comunicação de massa, que sempre foram desprezados nas obras da teoria da democracia, tornaram-se protagonistas das explicações sobre sua crise.
–
O livro está à venda aqui.
