Toda agressão a um país muçulmano leva à mesma ladainha: as bombas são para “libertar” as mulheres
Eu nunca fui um grande usuário do Twitter. Fui ativo por pouco tempo na plataforma; na verdade, nunca muito ativo. Sempre achei chato, exigindo investimento de tempo e energia ainda maior que outras redes. O limite de tamanho favorece lacração e agressividade em vez de debate. Os “fios” que o burlam são um contrassenso e um pé no saco.
Mas guardo três troféus do tempo em que estive por lá. Fui bloqueado por três subcelebridades.
Um youtuber neostalinista. Um ministro da Educação bolsonarista. Uma jornalista também bolsonarista, mas disfarçada.
Ela é Lygia Maria, que escreve às segundas na Folha de S. Paulo. Acho que ela ficou chateada porque escrevi um texto apontando as besteiras que ela falava sobre Rousseau.
Na coluna de ontem, ela decide comentar a agressão dos Estados Unidos ao Irã, enquadrando-o com a desonestidade intelectual de sempre. Reconhece timidamete, no primeiro parágrafo, que houve uma violação do direito internacional, logo emendando com críticas contra o país asiático. A colunista não se detém no ponto, mas o fato é que o Irã se submete às inspeções da agência de energia nuclear das Nações Unidas e integra o Tratado de Não Proliferação Nuclear (ao contrário de Israel, aliás) e que não há nenhum indício consistente de que o pretexto usado para os ataques tenha fundamento.
Há dois meses, Tulsi Gabbard, diretora dos serviços de espionagem dos Estados Unidos, declarou, em audiência no Congresso, de que a “comunidade de inteligência” estava convencida de que os iranianos continuavam cumprindo o acordo de 2003 que os impede de buscar a produção de bombas atômicas. Em suma, Trump sabe que está mentindo ao justificar os bombardeios. Logo, Netanyahu sabe também.
Sim, a colunista admite que houve uma violação do direito internacional, mas o restante do texto é para justificar esta violação. E a justificativa que ela encontra é a negação dos direitos das mulheres sob o regime fundamentalista dos aiatolás.
Ninguém, em sã consciência, pode aprovar a teocracia iraniana, que nega direitos básicos à sua população, em particular às mulheres. Todo mundo já viu cenas de moças sendo espancadas e eventualmente mortas pela polícia moral do regime, por não cumprirem as regras draconianas que lhes são impostas.
(O governo diz que dissolveu a polícia da moralidade depois dos grandes protestos de mulheres em 2022. Tudo indica que não é verdade, ainda que tenha ocorrido uma ligeira redução da repressão.)
Mas eu não creio que estas mesmas mulheres tenham como objetivo ver bombas e drones de Israel e dos Estados Unidos destruindo seu país e matando seus filhos, seus irmãos, seus maridos, elas mesmas. A colunista diz que é importante ouvir as mulheres iranianas, mas o fato é que elas não são ouvidas por ninguém – nem pelos chefes religiosos que governam seu país, muito menos pelas potências que o agridem.
O que existe é o uso cínico das mulheres como justificativa para a agressão imperialista. É uma visão essencialmente racista, que julga que cabe ao Ocidente “civilizar” o restante do mundo, se necessário pela força. Como diria Kipling, hoje lembrado pelo simpático Mowgli, mas que foi em primeiro lugar um ideólogo do colonialismo britânico, é “o fardo do homem branco”, obrigado a sair do conforto do seu lar para ir pilhar, explorar, escravizar e matar outros povos, sempre para o bem deles, é claro.
Já vimos este filme antes. Quando George W. Bush invadiu o Afeganistão em 2001, na esteira do atentado contra as torres gêmeas, os direitos das mulheres eram constantemente invocados como motivo.
Faltava lembrar que foi o apoio ocidental aos fundamentalistas, então descritos apologeticamente como “guerreiros da liberdade”, que derrubou o governo laico e progressista de Babrak Kārmal. É impossível ver as fotos das moças em Cabul no final dos anos 1970, de saia curta, fumando, indo para a universidade com livros nas mãos, e não odiar o imperialismo estadunidense
Graças ao armamento fornecido por Washington, os “guerreiros da liberdade” impuseram seu governo obscurantista. E os estadunidenses só foram lembrar deles depois dos atentados de 2001.
Vinte anos depois, no início do governo Biden, os Estados Unidos abandonaram o Afeganistão (“fugiram” seria mais preciso), com os talibãs mais firmes no poder do que nunca. A opressão sobre as mulheres atinge patamares quase inacreditáveis. Elas têm negado até o acesso à assistência hospitalar – não podem ser atendidas por homens e, como são proibidas de ir à escola (logo, não se formam novas profissionais do sexo feminino), dependem das poucas médicas e enfermeiras formadas antes que não fugiram do país e das raras estrangeiras que se dispõem a trabalho humanitário por lá.
Mas, sem os soviéticos para combater ou Osama bin Laden para perseguir, o Ocidente logo se desinteressou de sua sina.
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Cabul, antes da intervenção estadunidense
