Para o ideólogo do trumpismo, defesa da paz e do meio ambiente é a grande ameaça global
por Luis Felipe Miguel, em Amanhã não existe ainda
Na semana passada, o podcast de Ross Douthat entrevistou Peter Thiel. Douthat é um jornalista de direita, cujo papel é ser uma voz conservadora no jornal The New York Times, que tem uma linha geral mais liberal. Eu ouço seu podcast de vez em quanto e percebo que ele tem bastante entrada no Vale do Silício, onde Thiel é uma espécie de guru. No episódio que ouvi, foi apresentado como o intelectual de direita mais influente dos Estados Unidos nos últimos 20 anos, “a despeito de ser um bilionário”.
Influente, com certeza. Intelectual? Depende de como a gente define a palavra.
Thiel é conhecido como um dos fundadores do Pay Pal e também como investidor pioneiro no Facebook. Talvez menos conhecida seja a outra empresa que fundou, a Palantir, em que tinha como sócio… a CIA! É curioso alguém que se define como “libertário”, no sentido para onde a direita desvirtuou a palavra, isto é, alguém que defende o menor Estado possível em nome de uma (pretensa) maior liberdade individual possível, se associar a uma agência de espionagem, que é a encarnação do controle estatal sobre as pessoas.
Mas, como dizem os gringos, money talks. Ou, em bom português, a bufunfa manda.
(A Palantir, não custa assinalar, foi recentemente citada por Francesca Albanese, a relatora especial da ONU sobre os territórios palestinos ocupados, entre as grandes empresas que são ativas colaboradoras do genocídio perpetrado por Israel, junto com Microsoft e Amazon.)
Não que esteja sob questionamento a sinceridade com que Thiel abraça a causa. Ele foi, desde cedo, um patrocinador entusiasmado da extrema-direita. Apoia Trump desde sempre, desde o tempo em que os outros oligarcas da big tech – Mark Zuckerberg, Jeff Bezos, até Elon Musk – se faziam de bons moços, ciosos da democracia à americana e das liberdades liberais. Investiu em J. D. Vance quando o hoje vice-presidente ainda não era ninguém. Não ruboriza ao dizer coisas como “Obama é socialista”. Um “socialista de impostos baixos”, mas socialista mesmo assim. Parece um bolsomínion chamando Alexandre de Moraes de comunista.
Thiel é, também, um grande promotor da ideia de criar zonas no mundo liberadas de poder estatal, em que os muito ricos possam mandar como bem entendam. Por isso, é um dos protagonistas do livro de Quinn Slobodian, Capitalismo destrutivo, que mostra como “zonas econômicas especiais”, em que direitos trabalhistas, proteções ambientais e obrigações tributárias estão suspensos, são a realização deste sonho burguês. Há muitas centenas delas pelo mundo. Quase metade, aliás, na China.
Ele é também aquele que defende com maior despudor a ideia de que os bilionários têm o direito de comandar o mundo, pelo simples fato de o serem, como corolário da meritocracia. A concentração da riqueza é necessária e moralmente correta. Mas Thiel não abandona os outros, isto é, todos nós que não somos bons o suficiente para nos tornarmos bilionários. Ele nos tira a possibilidade de interferir nos destinos do mundo, mas garante que seremos felizes nas redes sociais, apostando nas bets, brincando com IA.
A entrevista é longa e curiosa. Mesmo diante de um entrevistador complacente, Thiel tem dificuldade de completar um raciocínio. Seu pensamento é, a um só tempo, muito assertivo, repleto de certezas peremptórias, e vago, tateante, quando é instado a explicar como chegou lá.
O primeiro grande tema da conversa é a tese, defendida há tempos por Thiel, de que a humanidade está “empacada”: o avanço tecnológico não está andando rápido o suficiente. É para ser algo surpreendente, já que o senso comum diz que estamos no vórtice da maior revolução tecnológica de todos os tempos, mas a argumentação do bilionário é pueril.
Estamos estagnados, diz ele, porque os automóveis, aviões e navios de hoje não são mais rápidos do que aqueles dos anos 1970. (Não estou sacaneando, ele fala literalmente.)
Logo depois ele reclama que no segundo filme da série De volta para o futuro, que se passa em 2015, existiam carros voadores – e nós já estamos dez anos além e nossos carros continuam andando no chão.
Longe de mim depreciar De volta para o futuro, que tenho na conta de obra-prima, mas a referência é significativa. Os investidores de tecnologia hoje admirados como “visionários”, como Thiel ou Musk, extraem sua visão de mundo de quadrinhos da Marvel e filmes de ficção científica. É onde encontram o futuro com que sonham e as ferramentas que usam para interpretar a realidade.
O segundo grande tema da entrevista, às vezes citado com o nome pomposo de “transumanismo”, é a busca da imortalidade. É uma obsessão desses novos bilionários. Eles querem porque querem viver para sempre. Investem em besteiras como criogenia, adotam dietas de restrição calórica extrema, apostam no vampirismo – é verdade, uma técnica de transfusão de sangue dos filhos para os pais, pretensamente rejuvenescedora.
E não basta a imortalidade da alma, em um mundo etéreo, nem mesmo para alguém que se apresenta como tão cristão quanto Thiel. O que eles querem é ficar aqui, neste planeta.
Como escrevi outro dia, é espantoso pensar que essa gente é que foi premiada pela “meritocracia”…
Thiel meio que desdenha a criogenia, embora não se furte a especular se não bastaria reviver a cabeça, como em Futurama (um desenho animado subapreciado). O lance agora é o upload da pessoa para a nuvem.
Como visto, é a ficção científica que comanda.
De minha parte, sou um grande fã da mortalidade. É boa do ponto de vista individual (certamente chega uma hora em que a gente cansa) e sobretudo coletivo. Já pensaram se os velhos nunca largassem o osso? Aí, sim, o mundo estaria fadado à estagnação que tanto preocupa Thiel.
Mas o mais surpreendente é o terceiro grande tema. Entrevistado e entrevistador conversam longamente – e a sério – sobre a chegada do Anticristo.
Thiel parece pensar muito no assunto. Se o nada saudoso Ernesto Araújo (o olavete desvairado que chefiou o Itamarati no governo Bolsonaro) resumisse sua fala, diria que o Anticristo é o “globalismo”.
O Anticristo quer impor um “governo mundial único” e, para isso, usa a linguagem das ameaças planetárias: guerra nuclear, colapso climático, armas biológicas, IA descontrolada. Para evitar cada uma destas ameaças, seriam necessárias regulações com abragência global e o caminho para o poder mundial estaria pavimentado.
Parece que o projeto do Anticristo é evitar a destruição da humanidade. Thiel explica que os ateus colocam a questão em termos de “um só mundo ou nenhum”, isto é, ou solução conjunta para os problemas comuns ou nossa destruição. Já os cristãos pensariam “Armagedon ou Anticristo”. Ocorre que “falar sem parar no Armagedon” é a estratégia do Anticristo.
Se isto está muito abstrato, o bilionário explica, com uma comparação que é em muitos sentidos desconcertante: “No século XVII, consigo imaginar um Dr. Strangelove, tipo Edward Teller, dominando o mundo. No nosso mundo, é muito mais provável que seja Greta Thunberg”.
As referências são à personagem do genial filme de Kubrick, ao físico nuclear militarista que foi a nêmesis de Robert Oppenheimer no Projeto Manhattan e à jovem ativista sueca – por quem Thiel nutre certa obsessão, citando-a mais de uma vez na entrevista.
Ela se tornou uma espécie de símbolo de muitas lutas, sobretudo a partir do momento em que ficou claro que não se deixaria capturar por um ambientalismo aguado, ao gosto do jet set e das grandes empresas. Símbolo da defesa do planeta, da paz, dos direitos humanos. Perigosa, não é mesmo? Uma Anticrista, com certeza.
No fim da entrevista, Douthat e Thiel estão discutindo, com direito a citação da Bíblia e tudo, se Deus permitiria que o Anticristo (isto é, Greta Thunberg) realmente dominasse o mundo. É risível como o bilionário, secundado pelo jornalista, usa exatamente a mesma tática que atribui a seus adversários: cria uma ameaça para justificar sua própria vontade de poder.
Não existe nada próximo de um governo mundial. A fraqueza das Nações Unidas é patente. Guerras eclodem por todos os lados e tudo o que a ONU é capaz de produzir são apelos patéticos por paz. As metas ambientais que vez por outra são anunciadas só servem para serem frustradas – no momento, a Europa sofre com uma severa onda de calor, mas a União Europeia aprova a flexibilização das medidas para refrear o colapso climático.
Muitas vezes, as grandes corporações têm mais poder do que os Estados. Será mesmo que o risco de que Greta Thunberg imponha uma tirania mundial é maior que o do apocalipse nuclear ou climático? Alguém leva isso a sério?
Thiel se coloca como um resistente a uma dominação em curso, sendo na verdade um dos homens mais poderosos do mundo. Usa a ameaça do “totalitarismo” para impedir qualquer forma de organização democrática. Seu individualismo é eticamente capenga, pois impede que a grande maioria das pessoas tenha condições de exercer qualquer tipo de liberdade.
Ouvindo-o, fica a impressão de que ele realmente acredita no que está dizendo. E isso é mais assustador do que se fosse apenas cinismo e esperteza.