Jair Bolsonaro é condenado e um fato curioso sobre o Brasil emerge: o cargo de Presidente da República está dessacralizado. E isso nao é tão ruim
Ser presidente no Brasil é realmente “uma coisa perigosa”. É muito interessante observar o processo político brasileiro nos últimos anos porque podemos ter a evidência de como o cenário está tenso e incerto. Vejam esse fato curioso. Os quatro últimos presidentes do Brasil tiveram de alguma forma um enfrentamento com a justiça ou com um processo de destituição.
Guerra contra os Brics
Lula foi preso, julgado e inocentado. Dilma Rousseff sofreu impeachment. Michel Temer também foi preso e foi alvo de um mandado de busca, embora não tenha passado tempo na prisão. A operação da Polícia Federal na época chamou a atenção por sua orquestração midiática, característica dos anos da Lava Jato. Por fim, Jair Bolsonaro foi julgado e condenado com voto histórico da ministra Cármen Lúcia que até onde estava acompanhando vinha pronunciando um discurso que considero um marco. Mas Jair não será inocentado.
O que me interessa aqui não é abordar os motivos e as razões de cada uma dessas operações. Sabemos que o impeachment da Dilma foi basicamente um caso arquitetado desde fora do Brasil – não quero acusar ninguém, mas ninguém aqui é bobo – e que se enquadrava numa dinâmica global de desestabilização dos Brics. Devem lembrar que na mesma época, o presidente sul-africano Jacob Zuma também enfrentava acusações da justiça de seu país. Foram anos tenebrosos para os Brics.
Decapitar a esquerda global
Imaginem o que é isso. Talvez hoje as pessoas tenham esquecido, mas Barack Obama possuía um carisma absurdo. Alguns até dizem que só conseguiu um Prêmio Nobel da paz graças ao seu carisma. E Lula superava tudo isso. Era o único presidente de um país ocidental com popularidade acima dos 80%. E sua queda era um troféu que a aliança internacional da extrema-direita precisava exibir. E foi isso que Sérgio Moro conseguiu oferecer a eles.
Foi por isso que a mídia nacional festejou a prisão de Lula. Havia no ar um clima de celebração. Sabem aquelas cenas que a gente via nos filmes históricos sobre escravidão no Brasil ou nos Estados, ou até mesmo nos anos da segregação racial nos Estados Unidos, quando os extremistas brancos prendiam um negro e o levavam para a árvore onde seria enforcado; pois, a mídia nacional brasileira comemorava a prisão de Lula com a mesma exuberância daqueles radicais e extremistas racistas.
O fato é que Lula não era um político qualquer. Era, sobretudo, o que ele representava. Lula era a imagem dos trabalhadores, era o momento em que os negros conquistavam certa dignidade. Era a época da ascensão social, do acesso à educação superior para os negros e os pobres, para as mulheres. Era um Brasil em transformação, com as linhas duras de separação entre as classes sendo rompidas aos poucos. E com Lula preso, era esse símbolo que se matava. Daí a comemoração da classe midiática brasileira.
Bem, eu disse que não falaria tanto assim do que cada uma dessas prisões representava. O que me interessa é outro aspecto simbólico que emerge com a condenação e [futura?] prisão de Jair Bolsonaro. O cargo de Chefe de Estado em si que perde sua sacralidade.
Entendam. Não estou dizendo que isso seja ruim. Na verdade, enquanto eu pensava em escrever estas linhas, eu estava até rindo. É bom ou é ruim que o cargo do presidente no Brasil seja dessacralizado? No momento não conseguia chegar a uma resposta clara. Me explico.
Presidente não, imperador.
Em outras palavras, ao colocarem seus envelopes nas urnas, os americanos não elegeram um presidente. Elegeram um rei. Ou melhor, elegeram um imperador. Uso esse termo porque é precisamente onde a comparação com o Brasil faz sentido.
Gosto sempre de lembrar que os Estados Unidos se comportam como um império. Isso nunca deve ser esquecido quando olhamos para os Estados Unidos.
O ataque e bombardeio das instalações nucleares do Irã, o tarifaço, o bombardeio de um barco da Venezuela no Caribe, o assassinato de inocentes norte-coreanos por uma força especial da Marinha americana: todos, sem exceção, foram atos supremacistas para demonstrar a força do império. E como império, há uma imagem que eles precisam projetar para o mundo. Isso é muito mais importante que a imagem que projetam internamente. É, sobretudo, questão de mandar uma mensagem ao mundo: aqui é o império. E um imperador está sempre além do bem e do mal, acima da lei.
De fato, se observarem a história dos Estados Unidos no século XX, para não irmos mais longe, os presidentes americanos beneficiaram da proteção do sistema judiciário e político mesmo quando cometeram os maiores crimes, não só contra os Estados Unidos, mas também contra o mundo. Em mais de 125 anos, só um presidente – Nixon – sofreu um impeachment para logo ganhar a anistia presidencial de seu sucessor, o presidente Gerald Ford.
George W. Bush invadiu o Iraque e o Afeganistão com base em mentiras e matou centenas de milhares de pessoas, destruíndo esses países por completo, mas nunca teve medo de ser atingido pela justiça de seu país.
O curioso é que Richard Nixon, alguns anos depois de seu impeachment, na famosa entrevista com o jornalista David Frost, declarou que “qualquer ação do presidente dos Estados Unidos, mesmo um crime, deixa de ser um crime a partir do momento em que é executada pelo presidente dos Estados Unidos”. Uma frase que na época chocou o país e que hoje, a Suprema Corte americana oficializou com Trump. O mundo não gira, ele capota…
Não é ciência exata
Por outro lado, para os Estados Unidos, a imagem é altamente negativa. Embora eles projetem com sucesso essa imagem global do imperador inalcançável pelas leis humanas, internamente, não param de fragilizar sua República. O país está praticamente vivendo uma crise institucional e uma crise constitucional, embora uma juíza da Suprema Corte tenham negado esse quadro. Mas o fato de negá-lo já mostra que tem um problema.
O fato é que a Suprema Corte americana está isolada, votando quase sempre a favor de Trump mesmo quando todas as cortes de apelação do país estão dizendo que suas decisões são ilegais. O que eles conseguem com isso é criar um contexto jurídico em que uma dezena de juízes está em completo desacordo com a maioria dos juízes do país sobre a interpretação da Constituição. Se isso não é uma crise constitucional, eu não sei o que é.
Não acho que o Brasil esteja dando uma lição a ninguém sobre esse aspecto. O Brasil está fazendo o que um país normal faz. Pessoalmente, sinto certo desconforto em ver qual vem sendo o destino dos presidentes brasileiros nos últimos anos.
Sou uma pessoa que acha que a representação política é algo quase sagrado na democracia. Não a pessoa em si, mas o símbolo. Para retomar a frase do clássico Claude Lefort, “o poder é um lugar vazio”. Isto é, não há personalismo numa República. Importa a função, não a pessoa. E se na famosa pergunta “o que é mais importante para uma democracia, instituições fortes ou dirigentes fortes? ”, preferimos sempre instituições fortes, a história também já nos ensinou que em tempos de crise, não há ciência exata na política. O que salvou o Brasil até aqui não foram suas fortes instituições. Foram precisamente homens e mulheres fortes: Lula, Alexandre e, hoje, Cármen.
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Foto: Marcelo Camargo /Agência Brasil
