Clones, fugas e tanques viram meme no nosso feed. A direita agradece: enquanto rimos, eles organizam o próximo golpe.
No Café Amargo
Três cenas, um roteiro previsível.
Uma senhora de meia-idade discorre, com entusiasmo clínico, sobre clones do Lula.
Um deputado bolsonarista foge de um debate com a elegância de quem precisa, urgentemente, de um banheiro.
Generais norte-americanos sustentam um silêncio constrangedor enquanto Donald Trump anuncia, com a sutileza de um tanque, seus planos para os EUA.
Três momentos protagonizados pela direita.
Três inundações no seu e no meu feed.
Três memes que compartilhamos em nossas bolhas para nos sentirmos espertos.
Três iscas — e, não por acaso, três armadilhas.
Convenhamos: as redes não são vitrines neutras. São máquinas de amplificação, calibradas para transformar performance em combustível e, de quebra, remodelar nossa percepção. Há anos, lixam a nossa subjetividade até cabermos no formato de um botão de reação. O resultado? Nossa presença no mundo — inclusive a política — se reduz a reflexo condicionado.
Pensar dá trabalho; reagir nem tanto.
É por isso que essas imagens viralizam. Porque é mais confortável rir da senhora que delira sobre clones do que encarar o incômodo: ela não é uma exceção, mas um sintoma. Sintoma do desmantelo mental e social produzido pelas próprias redes. Enquanto rimos, outros adoecem. E, sejamos honestos, o nosso riso também é sintoma — muitas vezes uma anestesia rápida e barata para a ameaça real que esses atores representam.
Antes que coloquem palavras na minha boca: humor é necessário e o escárnio é ferramenta política legítima. De fato, diria que fundamental, é preciso permanecer alegre – e vivo – para resistir. Eu mesmo me valho dessa estratégia em boa parte dos meus trabalhos para o grande público.
O problema é quando o escárnio por vezes se torna a nossa única linha de atuação política e reflexão. Quando nos limitamos, dia após dia, a uma visita ao editorial “zoológico da política”, apontando para “os ridículos” do outro lado enquanto nos sentimos reconfortados pela nossa suposta superioridade intelectual e moral: ainda bem que não somos “eles”. Missão cumprida. O ego agradece. O cérebro, nem tanto.
Qual o problema nisso? Em si, nenhum. O problema, reitero, é parar por aí.
O que há para além do riso? O que estamos construindo para além do escárnio? A fala delirante da senhora é um alarme, não uma piada. O deputado que foge do debate não apenas diverte: ele avança sua agenda, direta e indiretamente, inclusive quando vira punchline. E enquanto rimos do gelo dos generais, fingimos não ouvir o que Trump diz em voz alta: implementar, dentro do próprio país, a Doutrina da Guerra Revolucionária — a mesma exportada para parir ditaduras mundo afora, inclusive a nossa. Que parte do “isso é grave” ainda não entendemos? Seria uma ruptura sem precedentes por lá. E aqui, seria um empurrão vigoroso para projetos semelhantes, sempre à espreita.
E o que fazemos diante disso? Transformamos tudo em meme. Apenas em meme. Depois juramos surpresa com o tamanho do estrago. Estamos gargalhando enquanto eles se organizam, se armam!
“Foi assim que Bolsonaro foi eleito”, dirão as leitoras mais atentas. Exato. Mas repito, o erro não foi fazer meme — foi tratar como se fosse apenas isso, até descobrir, tarde demais, que a piada não estava do nosso lado.
Resumindo, para quem gosta de atalho: rimos do sintoma e alimentamos a doença. E a doença, paciente, agradece.
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Boneco inflável de Trump é solto em protesto contra visita a Londres. Foto: FINBARR WEBSTER /SHUTTERSTOCK
