Professor da UniRio detalha o avanço da privatização no Rio de Janeiro e como isso impacta na qualidade do serviço
por Juliana Passos, em Brasil de Fato
De um lado, a concessionária Águas do Rio maximiza seus lucros com aumento da tarifa, investimentos para ampliar o número de contribuintes com a colocação de hidrômetros e exigindo o cumprimento de contrato que favorece a rentabilidade da empresa. De outro, a Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae) realiza um Programa de Demissão Voluntária (PDV) e assume todos os pedidos de recomposição econômico-financeira das concessionárias.
O detalhamento desse processo e como o interesse financeiro pode se sobrepor ainda mais ao interesse público com a abertura de capital da Cedae, você confere nesta entrevista com João Roberto Lopes Pinto. Ele é Rede de Vigilância Popular em Saneamento e Saúde e professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), onde coordena o Núcleo de Estudo e Pesquisa em Lutas Sociais (Nelutas) e do projeto Estado, grupos econômicos e políticas públicas no Brasil (Ecopol).
Brasil de Fato – O Ecopol/Nelutas produzem relatórios periódicos sobre os lucros das concessionárias. O que mais chama a atenção de vocês na análise desses balanços?
João Roberto Lopes – O primeiro destaque é o fato da [concessionária] Águas do Rio estar acumulando lucro. Lucros anuais, chegando em 2024 ao acumulado de R$ 1,7 bilhão. No caso da Iguá e da Rio Mais Saneamento, a gente tem um processo de endividamento por parte dessas concessionárias, mas também por conta da Águas do Rio estar controlando os principais blocos.
Outro destaque é a questão de dividendos. Existe uma cláusula contratual entre o BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] e a Águas do Rio que impede o pagamento de dividendos, até que o empréstimo de R$ 19,3 bilhões feito pelo banco seja quitado. Mas esses dividendos podem ter sido pagos, ou seja, uma parte do lucro da Águas do Rio, certamente serviu para o pagamento de dividendos do Grupo Aegea, porque a Águas do Rio, é a joia da coroa, a principal concessionária do Grupo, até porque os acionistas são os mesmos. Então a Aegea distribuiu dividendos, mas fica difícil localizar na estrutura de contabilidade dessas empresas o que dos dividendos pagos teria sido proveniente do lucro da Águas do Rio.
Outro ponto que chama atenção é o pagamento dos dirigentes da Águas do Rio, chegando aquela remuneração do total de quase R$ 370 mil por mês para cada um dos quatro diretores. Em 2024, essa remuneração total caiu para algo em torno de R$ 290 mil, exatamente porque houve uma queda no lucro. Então há uma estratégia de comprometimento dos dirigentes com o aumento da rentabilidade da empresa.
Essa situação não ocorre apenas no Brasil. Na Inglaterra, por exemplo, a empresa que monopoliza a concessão de saneamento em Londres e na Inglaterra, como um todo, é a empresa Thames Water. Ela pagou dividendos bilionários e vem sendo bastante questionada pela população e pelo governo pela não realização dos investimentos previstos. Então, há um deslocamento de investimento para remunerar os acionistas.
E o que justifica os aumentos sucessivos na conta de água que tivemos?
No próprio boletim, a gente fala dessa questão que houve um aumento muito grande da receita da Águas do Rio, que passou em 2022 de quase V 5 bilhões para praticamente R$ 7 bilhões em 2024. E a própria Águas do Rio vai dizer que esse aumento, que obviamente vai ser refletido na lucratividade, tem a ver com o reajuste tarifário e a questão do aumento do volume faturado.
E embora seja uma cláusula contratual, é uma coisa muito absurda. Eles podem utilizar para efeito de correção da inflação uma cesta de índices. E isso faz com que o aumento chamado de correção pela inflação represente um aumento real. Os índices que eles utilizam estão bem acima do índice oficial de inflação. A gente vê que nesses três anos de 2022, 2023, 2024, houve um acumulado de mais de 18% acima da inflação.
Se a gente for ver o que eles pagam para a Cedae [Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro], porque a Companhia continua fornecendo água, os reajustes que ocorreram foram reajustes bem menores. Aí sim, muito ajustados à inflação, embora em 2024 o reajuste tenha sido só de 2%.
Vocês têm um diagnóstico que coloca um cenário de difícil ampliação dos serviços para a população. Esse perfil nos dá uma pista do que pode acontecer com a abertura de capital?
Pois é. O governo do estado contratou um estudo para a abertura de capital no valor de R$ 18 milhões e parece que uma boa parte desse valor já foi empenhado. Então já deve estar na finalização desse estudo, até porque isso tem que ser feito até março do ano que vem, por conta da restrição do calendário eleitoral.
Isso preocupa bastante porque essas empresas do setor, em especial a Águas do Rio, que é a principal concessionária do país, estão com uma estratégia muito agressiva. Hoje você tem cinco grupos que comandam completamente o mercado, mas a Aegea está na liderança isolada. Apesar do Equatorial ter assumido a Sabesp, a participação é de 15%. E a Aegea tem demonstrado interesse por assumir a Cedae. Além disso, existem conversações para que a Iguá seja incorporada à Aegea por estar endividada. O risco é enorme porque há possibilidade de monopólio privado de toda a cadeia. Da produção da água, do tratamento, até a distribuição, ou seja, a gente ficará totalmente refém desses monopólios privados. Com a desculpa de que é para superar esse déficit fiscal de R$ 18 bilhões que foi anunciado no orçamento estadual para 2026, mas que na verdade tem a ver com o contexto eleitoral, para levantar caixa para as eleições.
Então, uma coisa que preocupa bastante é a Aegea se colocando como a maior interessada na participação da abertura de capital. Não se sabe ainda se vai ser uma venda de um lote que mantenha o Estado como controlador. Mas a gente sabe que hoje, mesmo quando o Estado tem maioria do capital, existem formas dos acionistas privados, minoritários, terem uma maior influência, um controle maior na gestão da empresa.
A gente estima, olhando os balanços, que em torno de 40% do custo da Águas do Rio hoje vem da compra de água da Cedae. Então, significa incorporar isso e, de fato, dá uma força muito grande para a atuação da Aegea, do ponto de vista financeiro. Fora o fato que a Aegea vai ter um poder enorme sobre o Estado. E a gente não vê ampliação, melhoria do serviço, muito pelo contrário, né? Há um recorde de processos judiciais contra a Águas do Rio. São mais de 90 mil processos nos últimos três anos.
Nesse programa que eles enaltecem muito, “O vem com a gente”, eles mesmos dizem que a maior parte do investimento foi feita por eles, só que é um investimento para aumentar exatamente a base de contribuição. Não foi através da ampliação do serviço, mas colocando novos hidrômetros. E passaram a colocar para aqueles que tinham gratuidade. A gente não tem como avaliar percentualmente, mas certamente a esmagadora maioria é de pessoas que pagava menos por conta da tarifa social ou tinha isenção, porque estão extinguindo a previsão do decreto de 1999 que continha essas previsões e a perspectiva de direito de uso.
Aí agora, como se não bastasse isso, está sendo noticiado que a Águas do Rio alegou que o índice de cobertura de esgotamento sanitário indicado nos estudos que orientaram o edital estavam superestimados. E, portanto, haveria necessidade de um reequilíbrio econômico-financeiro do contrato. Agora, você imagina o BNDES junto ao governo do Estado formatando um edital em que o indicador de cobertura, fundamental para estimar o custo da operação, é estimado de maneira equivocada. É algo que prejudica a lisura do contrato, gerando a possibilidade de questionamento, o que efetivamente ocorreu. O Cláudio Castro assina um tipo de termo de ajuste em que se compromete a avaliar se houve realmente superestimação e nesse caso, a empresa poderia fazer uma correção acima da inflação.
Recentemente, o governo do Estado reconheceu que teria uma superestimação de mais de 18% dos indicadores. E quem vai pagar essa conta é a Cedae de novo. Está se propondo então que haja um desconto no valor de R$ 900 milhões na tarifa paga à Cedae pela compra da água. É como se o orçamento público e o direito público administrativo estivessem totalmente entregues à lógica privada. A privatização não é a privatização de um serviço, é a privatização do Estado como todo. Da sua gestão, da sua forma de organização, do seu regramento. É impressionante.
E qual o papel da participação social nesse processo?
A gente lutou muito pela transparência do orçamento público e isso era uma uma luta histórica, como foi o orçamento participativo, a publicidade do orçamento. Com essas lógicas de parceria público-privadas e de concessões públicas, estamos nos deparando com o desafio de abrir o orçamento das empresas privadas, porque elas tão controlando serviços públicos e elas precisam prestar contas à sociedade. Elas não podem ficar escondidas por trás dos contratos.
Então não dá para a gente ficar utilizando os mesmos instrumentos que a reforma do Estado lá do Fernando Henrique Cardoso criou, que é a ideia de contrato de concessão, que é a ideia de agência reguladora, porque esse esse modelo está falido, ele não garante o interesse público.
Não dá para a gente ter esse conjunto de irregularidades do ponto de vista do interesse público sendo ocultados pela lógica do segredo comercial ou pelo fato de que elas são apenas empresas prestadoras de serviço que respeitam o que está determinado no contrato.
A coisa é muito mais complexa do que isso e a gente precisa voltar a debater. Então, a empresa que realiza serviço público, ela tem que ter um controle público muito maior do que os marcos da reforma do Estado é indicaram ou consagraram, mas estamos muito aquém e tem uma capacidade de controle público.
A Agência Reguladora de Energia e Saneamento Básico do Estado do Rio de Janeiro (Agenersa) está investigando casos de condomínios que tiveram transbordamento de esgoto, porque a Águas do Rio teria colocado uma rolha no encanamento dos inadimplentes. Isso é uma coisa recorrente ou são casos isolados?
Se isso está acontecendo, é nível de crime. É um achaque.
Um outro índice apontado por vocês é o de que 10% dos clientes são responsáveis por 75% da receita da Águas do Rio, o que é considerado um ponto forte por parte dos acionistas. Gostaria que o senhor comentasse esse dado.
A gente achou isso, na verdade, vendo um relatório do Itaú sobre as condições financeiras da Águas do Rio, e aqui é preciso lembrar que o Itaú é um dos controladores. E aí eles colocam no relatório que não estar exposta a clientes de menor renda é um ponto forte da empresa. Então, 10% é responsável por 75% de toda a receita. Então, é um negócio, por onde se vê que a atuação da Águas do Rio é bastante problemática.
Enquanto isso, a Cedae passa por um processo de incentivo à demissão, o Programa de Demissão Voluntária (PDV), o enxugamento da empresa. Em um processo da empresa transferindo renda diretamente para o setor privado através desses abatimentos. Só de da tarifa social foi 800 milhões e agora mais 900 [por conta do erro de cálculo no sistema de esgoto], ou seja, 1 bilhão e 700 milhões. O lucro que a Águas do Rio teve em três anos, ela agora tem em abatimento junto à Cedae. Eles são muito agressivos.
E a gente está concluindo um estudo agora também que mostra como os acionistas dos grandes grupos privados, eles estão inter-relacionados. Então, por exemplo, se você pegar o Fundo Soberano de Cingapura (GIC), ele é um grande acionista também do Equatorial, que está em São Paulo. Aí, um outro grande acionista da Equatorial é a Black Rock, um grande fundo de investimento americano. E a Black Rock também é uma das acionistas do próprio Itaú. Um dos maiores controladores da Iguá é o fundo de pensão de servidores públicos do Canadá, e que hoje controla também a Equatorial.
Então os acionistas estão interligados também. Por isso que eu falo que é uma atuação agressiva, porque tem estratégia, tem organização e estão avançando. A presença privada no setor pulou de 6% antes do Novo Marco do Saneamento, aprovado em junho de 2020, no governo Bolsonaro. Hoje já está chegando a 45% em menos de 5 anos.
Apesar dessa expansão no Brasil, diversos países têm feito o caminho inverso, o da remunicipalização. Qual foi o ponto de virada nesses países?
A tendência ainda é a de aumentar esse domínio privado. Em Paris, em Berlim, nos países centrais do capitalismo, eles fizeram um movimento contrário depois da onda privatista, porque viram que existe uma orientação para a lógica financeira em detrimento da qualidade de serviço. Na Inglaterra, nesse momento, também se questiona profundamente o modelo privatista.
E aí, no nosso caso, a gente está entrando na órbita privatista agora, até porque também os agentes privados que estavam atuando ali vão procurar novas oportunidades de mercado. Então, por exemplo, Sergipe foi o primeiro estado a ser privatizado pelo BNDES no governo Lula, a próxima agora é em Pernambuco, o leilão está previsto para dezembro agora desse ano. E já estão prevendo outros em Rondônia, Goiás. A própria Abicon [Associação e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto] prevê que até 2026, 60% esteja com a iniciativa privada. Então, vai pular de 6% para 60%.
Essa situação que o senhor descreve, lembra em parte o que aconteceu na Bolívia, na Guerra Água nos anos 2000, quando a concessionária impediu a população indígena de utilizar seu abastecimento de água e passou a cobrar. É possível fazer essa comparação?
Sim, é possível. Só que lá o pessoal conseguiu se levantar e segurar o processo. Aqui a gente está desafiado a fazer isso nesse final de ano, porque se abrir o capital da Cedae, aí o negócio vai ficar difícil segurar. No contrato de concessão está dito que a universalização prevista em lei é de 99% de água até 2033, 90% de esgoto até 2033. E ainda no contrato está dito que as populações moradoras de áreas irregulares, não urbanizadas ou parcialmente urbanizadas, estão fora da meta de universalização. Está lá no contrato que essa população está fora da meta. Vai ter algum investimento, mas universalizar não está previsto. A situação é essa, então totalmente ligada à questão de Cochabamba e só resta saber se a gente vai ter força para contestar esse movimento.
