Newsletter da Ponte
É quinta-feira (30/10) e ainda estamos contando os corpos. Talvez, quando você estiver lendo este texto, ainda estejamos incluindo mortos no Massacre do Alemão e da Penha, como preferimos classificar a assim chamada “megaoperação” no Rio de Janeiro. Massacre, pois é necessário dar às coisas o nome que reflita a gravidade da situação. E o que aconteceu esta semana nos complexos da Penha e do Alemão, na zona norte do Estado, foi um massacre.
A tal Operação Contenção, do governo Cláudio Castro, foi tudo, menos contida. Dois mil e quinhentos homens entraram nos territórios como se invadissem um país inimigo à luz do dia. Tiros e ações violentas, tanto da polícia quanto do crime organizado com armamento pesado, marcaram uma ação que resultou em mais mortes do que o ataque israelense em Gaza, realizado no mesmo dia do massacre no Rio de Janeiro. A respeito de Gaza, o jornal britânico The Guardian classificou o episódio como “um dos mais sangrentos em dois anos de guerra”. Lá, 104 pessoas morreram e mais de 253 ficaram feridas. Aqui, nesta quinta-feira, às 12h44, já são 132 mortos contabilizados.
Assim como Cláudio Castro celebrou o “sucesso” da operação e afirmou que apenas quatro mortes aconteceram e que as outras 120 teriam sido de criminosos, o exército israelense declarou que “mais de 30 terroristas que ocupavam posições de comando dentro das organizações que operam em Gaza” foram atingidos durante os ataques. Que se explodam os outros mortos, efeito colateral.
Os números oficiais, celebrados pela cúpula de segurança pública do Rio de Janeiro, foram mais de 90 prisões e 93 fuzis apreendidos. Em março de 2019, sem disparar um único tiro, a polícia apreendeu 117 fuzis na casa de um amigo do ex-policial militar Ronnie Lessa — um dos assassinos de Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes. Não foi na casa de um traficante, veja bem, mas de alguém que integrava as forças de segurança. A própria Polícia Civil, à época, classificou a ação como a maior apreensão de fuzis da história do Rio.
Este texto não quer se focar em números, mesmo que sua frieza dê dimensão ao que aconteceu. Mas o trabalho da Ponte está, sobretudo, baseado no fator humano. Entre imagens e vídeos que inundaram minhas redes sociais, um relato de uma mãe, mulher negra — sempre elas na linha de frente — feito aos colegas do Voz das Comunidades, veículo de jornalismo nascido no Complexo do Alemão, me impactou bastante. Nele, a mulher revela que implorou para que os policiais prendessem seu filho, para que ele pagasse pelo que havia feito, mas que não tirassem sua vida. “Eu gritei: ‘eu sou mãe, só vim aqui pegar meu filho. Se tiver que levar preso, leva’.” Ela estava implorando para que o devido processo legal fosse realizado. Mas a pena foi aplicada ali mesmo: a de morte. Ela encontrou o corpo do filho esfaqueado.
Quando o ativista Douglas Belchior fala que esse “massacre é mais um capítulo de um país em guerra racial, de um Estado em guerra contra seu próprio povo”, não é exagero retórico. É a realidade histórica que, há mais de 400 anos, criminaliza corpos negros e periféricos e bota a favela para sangrar, enquanto na Faria Lima ou Alphaville o tratamento é de realeza.
Enquanto o sangue lavava as ruas do Alemão e da Penha, nos domínios de “Dona Helena”, na zona sul, a vida seguia na maior paz. Uma grande amiga que mora em Copacabana me disse que os mais velhos estavam na rua como sempre, um mendigo cantando baladinha romântica, turistas deslizando pela orla. Como se fosse o paraíso prometido nas ilustrações das publicações das Testemunhas de Jeová. A zona sul dormiu em paz.
Esses 130 corpos têm história, família, vida e o direito de, caso estivessem envolvidos em ilícitos, passarem pelo mesmo processo legal de quem, por exemplo, praticou tentativa de golpe de Estado. Imagina se o país não pegaria fogo se as forças de segurança atirassem contra a multidão de golpistas que tomou Brasília naquele 8 de janeiro? Se condenar “senhorinhas cagadeiras” foi o suficiente para as pessoas surtarem e até clamarem pelos tais direitos humanos, imagina se a mesma lógica do massacre desta semana tivesse sido aplicada.
Ali, o “bandido bom é bandido morto” não cabe. Mas como foi no Alemão e, como muitas pessoas disseram, “se a pessoa estivesse em casa, nada disso teria acontecido” (contém altas doses de ironia). É o mesmo pensamento desgraçado de sempre: se morreu, estava alguma coisa errada.
Uma frase que me marcou muito foi a da ativista Renata Trajano, do Coletivo Papo Reto, que mora no Alemão: “Saímos do Mapa da Fome, mas não do das mortes.” Ela reforça, perguntando: “E, para vocês, qual é a importância da vida?”. Para a segurança pública brasileira, nenhuma. E poderá se tornar pior se a tal PEC da Segurança Pública for aprovada. Afinal, vai no caminho de uma maior militarização da segurança pública como meio de combate ao crime, ao entregar mais policiamento ostensivo, mais policiais. Já vemos esse filme desde que ele era em preto e branco. A tal guerra armada às drogas é apenas o codinome pomposo da guerra contra pretos e pobres.
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Foto: Leonardo Coelho /Agência Pública
