Propostas legislativas em várias cidades do país utilizam conceitos sem respaldo científico para reforçar o estigma e restringir o acesso ao aborto legal
Gabi Juns, Lahara Carneiro e Letícia Vella*, Le Monde Diplomatique Brasil
Nos últimos meses, projetos de lei que evocam a chamada “síndrome pós-aborto” voltaram a surgir em diferentes câmaras municipais e assembleias legislativas do país. Embora tenha ganhado destaque recentemente em São Paulo, onde tramita o PL 69/2025, de autoria dos vereadores Sonaira Fernandes (PL), Rubinho Nunes (União) e Ely Teruel (MDB), iniciativas semelhantes vêm aparecendo em cidades como Belo Horizonte, Curitiba, Porto Alegre, Recife e Rio de Janeiro – existem ainda proposições federais que tentam impor novos limites ou penalidades ao aborto legal.
Essas iniciativas fazem parte de um movimento coordenado de ofensiva conservadora sobre os direitos sexuais e reprodutivos. Levantamento recente da Agência Pública identificou mais de cem projetos de lei apresentados entre 2017 e 2024 em câmaras municipais de capitais brasileiras sobre aborto ou “nascituro”, a maioria com o objetivo de restringir o acesso à interrupção legal da gestação e ampliar o controle sobre o corpo das mulheres. Em âmbito federal, o PL 1.904/2024 propõe equiparar o aborto realizado após 22 semanas ao crime de homicídio, inclusive em casos de estupro. A ofensiva legislativa avança em diversas frentes e aprofunda um cenário de insegurança jurídica, desinformação e violação de direitos fundamentais.
O projeto em discussão na Câmara de São Paulo prevê a criação de ações de conscientização sobre a chamada “Síndrome Pós-Aborto”, na semana do dia 8 de outubro, quando é celebrado o “Dia Nacional pelo Direito à Vida”. Segundo o texto, o objetivo seria alertar a população sobre supostos impactos psicológicos relacionados ao aborto. No entanto, a medida reforça estigmas e desinformação, ao atribuir ao procedimento efeitos mentais não reconhecidos pela ciência.
A expressão “síndrome pós-aborto” não tem qualquer respaldo médico ou científico: não aparece no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), não é validada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) nem pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). Ao insistir nessa tese, os proponentes distorcem evidências e instrumentalizam o sofrimento psicológico como estratégia para intimidar e culpabilizar as mulheres.
Embora o aborto seja legal no Brasil desde 1940 em três situações – gravidez resultante de estupro, risco de vida para a gestante e casos de anencefalia fetal –, o acesso ao procedimento permanece limitado por barreiras institucionais e pelo estigma social. Medidas como o PL 69/2025 tendem a agravar esse quadro, reforçando a criminalização simbólica e moral das mulheres que buscam exercer um direito garantido.
Enquanto parte do Legislativo se dedica a difundir ideias sem base científica, os números de violência sexual no Brasil seguem alarmantes. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública registrou em 2024 o maior número de estupros da história: 87.545 vítimas – mais que o dobro do total em 2011. Sete dos onze indicadores de violência sexual cresceram em relação ao ano anterior, incluindo estupro, estupro de vulnerável, assédio e importunação sexual.
As estatísticas mostram que meninas de até 14 anos, majoritariamente negras (55,6%) e pobres, concentram a maior parte das ocorrências. Em 83,9% dos casos, os agressores são familiares ou conhecidos, e 67,9% das violências ocorrem dentro de casa. Segundo a Fiocruz, 23 crianças dão à luz por dia no Brasil. Entre 2011 e 2021, mais de 107 mil meninas de 10 a 14 anos tiveram filhos. No caso do município de São Paulo, dados coletados pelo Observatório Criança Não é Mãe apontam que, entre 2019 e 2023, foram registrados 1.765 nascidos vivos de meninas vítimas de violência, sendo que 65,8% dessas meninas são negras. Gestações que, em muitos casos, decorreram de estupro e poderiam ter sido interrompidas legalmente.
Ignorar essa realidade e insistir em pautas moralizantes sobre uma “síndrome” inexistente revela o descompasso entre o Legislativo e as necessidades urgentes das mulheres brasileiras. O que está em jogo não é apenas a liberdade de decidir, mas o direito à vida, à saúde e à dignidade.
O que dizem as evidências
Estudos nacionais e internacionais desconstroem a ideia de que o aborto gera adoecimento psíquico. O que compromete a saúde mental das mulheres é, antes, a violência sexual, o estigma social e a negação de direitos.
Um levantamento realizado em São Paulo e no Rio de Janeiro entre 2007 e 2008 mostrou que 44% das vítimas de estupro apresentavam sintomas de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), segundo pesquisa publicada em 2016 no Journal of Psychiatric Research. A violência sexual, e não o aborto, é o que deixa marcas profundas e persistentes.
O Turnaway Study, conduzido pela Universidade da Califórnia e considerado a maior pesquisa do mundo sobre aborto, acompanhou milhares de mulheres por cinco anos e chegou a uma conclusão inequívoca: não há associação entre a realização do aborto e o adoecimento psicológico. Ao contrário, o sentimento mais relatado por quem conseguiu interromper a gestação foi o alívio. Quase 95% das participantes consideraram a decisão correta para si mesmas mesmo cinco anos após o procedimento.
Há décadas, as evidências científicas confirmam que o aborto seguro não causa traumas psicológicos. O que adoece as mulheres é o medo, a culpa e a solidão produzidos por um sistema que as abandona. O mito da “síndrome pós-aborto” não apenas nega essas evidências, mas também tenta converter culpa em política pública.
O debate sobre os direitos reprodutivos no Brasil precisa ser recolocado em seu devido lugar: o campo da saúde pública, dos direitos humanos e da autonomia. O avanço de projetos baseados em mentiras e fundamentalismo não apenas ameaça as mulheres, mas coloca em risco os princípios básicos do Estado laico e da democracia.
*Gabi Juns é diretora executiva do Instituto Lamparina; Lahara Carneiro é analista de comunicação do Mapa do Acolhimento; Leticia Vella é diretora de sustentabilidade do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde.
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Foto: Católicas pelo Direito de Decidir
