Justiça Federal fez a ‘COP dos Quilombolas do Sítio Conceição’

Em 2021, a comunidade, que fica em Barcarena, não foi consultada pela Prefeitura Municipal, que realizou à revelia uma obra da estação de tratamento de esgoto e destruiu casas dos moradores. Antes da Conferência da ONU, o juiz Neymenson Arã dos Santos, da 1ª Vara em Belém, fez uma audiência para escutar os quilombolas sobre as violações de direitos. A reunião foi denominada pelos quilombolas de “A Nossa COP”.

Por Giovanny Vera, da Amazônia Real

Belém (PA) – O Quilombo Indígena Sítio Conceição, localizado no município de Barcarena, no nordeste do Pará, trava desde o ano de 2021 uma luta contra a Prefeitura Municipal de Barcarena exigindo a retirada da Estação de Tratamento de Esgoto (ETE) Pioneiro, instalada no território sem consulta prévia, violando a convenção da OIT (Organização Internacional do Trabalho) e desconhecendo a ancestralidade tradicional da comunidade nesta parte da Amazônia Oriental.

No dia 4 de novembro, dias antes do início da Cúpula dos Líderes e da abertura da Conferência do Clima da ONU (COP30), a reportagem da Amazônia Real acompanhou uma audiência marcada pelo juiz Neymenson Arã dos Santos, da 1ª Vara Federal Cível, com os moradores do Quilombo Sítio Conceição, em Belém. Os quilombolas divulgaram o evento como: “A Nossa COP é Amanhã na Justiça Federal. Participe!”.

Na audiência, o juiz Neymenson Santos determinou que os moradores do território avaliassem se querem e sob quais condições que a ETE, da empresa concessionária Águas de São Francisco, continue funcionando até que o processo de titulação do território quilombola finalize. Ou, até que a proposta da Associação da Comunidade Quilombola Indígena Sítio Conceição (ACOMQUISC) seja apresentada, solicitando que a Prefeitura de Barcarena paralise as operações de despejo de dejetos com caminhões na ETE e o projeto de ampliação da obra.

O Quilombo Sítio Conceição foi reconhecido e certificado pela Fundação Palmares e demarcado pelo Instituto Nacional da Colonização e Reforma Agrária (Incra) em 2019. No momento, o processo de titulação definitiva está em tramitação. A área também é conhecida como uma comunidade indígena quilombola pela sua ancestralidade ligada aos povos originários.

Os moradores do Quilombo têm ancestralidade do povo Aruã, uma etnia que habitava a região do Marajó e que hoje está em luta de retomada de seu território e sua identidade étnica como quilombola/indígena. Segundo Roberto Cravo, presidente da Associação da Comunidade Quilombola Indígena Sítio Conceição (ACOMQUISC), devido à essa ancestralidade, os remanescentes mantiveram a origem indígena na identificação do quilombo.

Sítio Conceição é uma comunidade com “duas ruas, três quadras, duas travessas e uma avenida”, explicou a quilombola Nilma Pompeu. O território fica na Vila dos Cabanos, onde moram cerca de 300 famílias, somando quase 700 habitantes.

O embate da Prefeitura de Barcarena contra a comunidade começou em 2021. O prefeito Renato Ogawa (PL) planeja usar a área para expandir a estação de tratamento de esgoto e ampliar o sistema de saneamento básico da cidade.

Era uma quinta-feira, 14 de outubro daquele ano, conta o líder da ACOMQUISC, Roberto Cravo, 51 anos, quando os moradores do quilombo viram as retroescavadeiras chegando e começaram a demolir casas para abrir espaço para a obra da concessionária Águas de São Francisco.

Foi a prefeitura que levou as máquinas para cumprir uma liminar determinada pela juíza Carla Sodré da Mota Dessimoni, da 1ª Vara Cível e Empresarial de Barcarena, em uma ação de reintegração de posse que permitia o despejo dos moradores.

No entanto, no mesmo dia, a Defensoria Pública do Pará deteve as demolições, alegando incompetência da 1ª Vara Cível e Empresarial de Barcarena, já que, seria a Vara Agrária de Castanhal, na região metropolitana de Belém, a responsável pelos litígios coletivos pela posse e propriedade da terra rural na área pleiteada.

“A Nossa COP”

Pelo menos 15 moradores da comunidade Sítio Conceição viajaram para Belém para acompanhar a audiência na Justiça Federal e se manifestarem contra as violações de direitos da Prefeitura de Barcarena.

“Todos queremos que saia a ETE da nossa comunidade, porque já estamos cansados da contaminação, do mau cheiro que tem lá”, diz Edineide Damião, 55 anos, moradora do quilombo. “Sou mais uma moradora que se sente afetada e violentada”, diz.

Edineide, que teve seu quintal invadido pela ETE, conta que antes não haviam ratos nem moscas na região, mas que agora é algo que todos os dias encontra em sua casa. “Tudo isso é mais do que preconceito, isso é uma violação de direitos. Nós somos seres humanos”, diz ela.

Natália Bastos, 29 anos, é uma confeiteira conhecida na comunidade, e chegou até o edifício da Justiça Federal em Belém com seus vizinhos para se manifestar. Ela conta que seu trabalho exige muito cuidado com a limpeza, e que a existência da ETE lhe prejudica não só nisso, mas também na vida diária, até na criação de seus dois filhos.

“Agora eles têm que ficar só dentro de casa, fechados, e até com a janela fechada, para tentar que eles não sintam esses cheiros e terminem contaminados”, diz ela, se referindo a ETE. Natália afirma que a estação de tratamento de esgoto fica a menos de 3 metros de sua casa. “A empresa simplesmente foi e construiu a cerca metálica no meu quintal, literalmente”.

A vinda desde Barcarena até Belém demandou dinheiro e tempo, além de que todos tiveram que deixar seus afazeres diários e até as crianças com parentes. Mas Edineide diz que vale a pena porque eles estão lutando pelo que é deles, pelos direitos deles, e se eles não brigam, ninguém o fará por eles.

“Como comunidade quilombola, nós somos desprezados e ignorados pelos governantes que se interessam mais em ter capital, em vender a nossa terra”.

Durante a audiência, três testemunhas da comunidade narraram a forma em que sentem que a existência da ETE os afeta em sua comunidade. A fala de todos se concentrou na contaminação do ar pelos odores emanados pelos dejetos; a contaminação do solo ao derramar dejetos durante a descarga dos caminhões; e especialmente o desrespeito da condição de Sítio Conceição ser um território indígena-quilombola.

Posteriormente, Roberto Cravo foi chamado pelo juiz para lhe indagar sobre quais seriam as demandas ou benefícios que a comunidade poderia solicitar caso a ETE se mantivesse no local até que seja concluído o processo de titulação do território quilombola.

Roberto, por sua vez, informou que era necessário que o debate e decisão fosse realizado com a comunidade. “O que a comunidade decidir a gente traz”, disse ele. Dessa forma, o juiz concedeu 30 dias para que a ACOMQUISC apresente uma proposta com as condicionantes para que a ETE se mantenha em funcionamento até a decisão sobre a titulação do território.

União ignora sobreposição

O Ministério Público Federal (MPF), que também acompanha o processo contra o município de Barcarena, reconhece a existência das ilegalidades cometidas não só contra Sítio Conceição.

Outras quatro comunidades (São Lourenço, São João, Cupuaçu e Burajuba) sofrem a mesma ameaça: a União doou ao município de Barcarena terrenos que somam um total de 7,7 milhões de metros quadrados. Porém, a cessão dos territórios ignorou a sobreposição dos territórios tradicionais ocupados por comunidades indígenas e quilombolas, provocando litígios posteriores como o de Sítio Conceição, que se vê afetado diretamente.

De acordo com o procurador da República, Rafael Martins, Sítio Conceição é reconhecido como comunidade quilombola e está em processo de demarcação de seu território, pelo qual “sendo um território tradicional, em tese, a prefeitura de Barcarena não poderia estar fazendo nenhum empreendimento lá, não podia estar fazendo nada, inclusive a ETE”, disse ele à Amazônia Real.

Na audiência, o juiz tentou fazer uma conciliação entre as partes, e a prefeitura disse que não tem como tirar a ETE dali por enquanto. No entanto, o MPF considera que é a comunidade que deve decidir se aceitará uma conciliação, mas “não se pode transigir sobre direitos fundamentais”, disse o procurador, já que a existência da ETE no território já causou um impacto irreversível.

Agora a comunidade terá que ver se aceita algum tipo de compensação, mas “do ponto de vista do MPF, é impossível haver conciliação com esse tipo de empreendimento ali dentro, que é uma estrutura de poluição”, encerrou Martins.

Um território violentado

A região de Barcarena tem um histórico de conflitos fundiários e ambientais envolvendo empresas mineradoras -como a Hydro Alunorte e Imerys- e governos contra as comunidades indígenas, quilombolas e ribeirinhas, tradicionais habitantes que hoje se veem envolvidos e forçados a lutar.

Ameaças reais como contaminação de rios e igarapés, contaminação humana, desmatamento, vazamento de resíduos tóxicos, poluição, além dos impactos sociais e contra a vida humana, já fazem parte da realidade de uma população que busca recuperar sua forma de vida tradicional em um território que deve ser respeitado e protegido.

A prefeitura de Barcarena foi procurada pela Amazônia Real para falar sobre os temas desta reportagem, mas não retornou até a sua publicação.

Moradores da comunidade quilombola Sítio Conceição na frente da Justiça Federal (Foto: Giovanny Vera/ Amazônia Real).

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