Nenhuma a Menos X Política pública de Menos: quando a política não chega e o feminicídio avança. Por Sérgio Botton Barcellos

No dia 14 de dezembro de 2025 no Brasil, após os atos contra o PL da dosimetria, no qual progressistas e segmentos da esquerda foram às ruas, foi muito pautado, além da pauta sobre o “Congresso Inimigo do povo”, emergiram também muitos protestos relacionados ao feminicídio no país. Falar disso, como homem branco, hétero e cis, ciente dos meus privilégios, mesmo vindo de uma classe popular, é sempre complexo e desafiador. Além de lidar e questionar os meus privilégios e enfrentar o meu próprio machismo, assim como o machismo presente nas relações com as pessoas com quem eu convivo, pergunto-me, então, o que posso fazer nesse debate a partir do lugar que vivo. Sob essa perspectiva, vou esboçar aqui nesse ensaio o feminicídio à luz das pesquisas que desenvolvo em sociologia, especialmente no campo das políticas públicas. A partir disso, reforço e parto do princípio aqui que o feminicídio no Brasil não é um conjunto de coincidências e não pode ser reduzido apenas a fatores culturais, ainda que estes sejam essenciais na dimensão social, pois devem ser considerados em conjunto com dimensões econômicas, ambientais e políticas da realidade.

Ou seja, há dimensões estruturais relacionadas às políticas públicas, que exigem um olhar sistêmico para diversos segmentos, inclusive sobre as mídias digitais em nossa sociedade junto a nossa juventude na configuração de masculinidades. É preciso também observar quem são os tomadores de decisão no Estado e por que é tão difícil construir políticas públicas de combate ao feminicídio em um país onde o poder político, seja no Congresso, nas assembleias legislativas, nas câmaras de vereadores e nas prefeituras, é hegemonizado por homens brancos que se declaram heterossexuais e cisgênero. Essa configuração tem raízes na história brasileira, marcado pela invasão colonial, pela escravidão, pelo estupro, pelo racismo estrutural e por formas específicas de patriarcado que produzem sociabilidades, violências e desigualdades de gênero próprias do contexto brasileiro. Há muitos aspectos a serem analisados em relação ao feminicídio no Brasil e o que vou tentar aqui é apenas esboçar um início de conversa a partir do meu lugar de fala e das relações e vivências que carrego pelo olhar das políticas públicas.

Em meados de dezembro de 2025, no Brasil foram noticiados uma sequência de feminicídios ou tentativas que expõem a violência de gênero em todas as regiões do país: em São Paulo, uma mulher de 31 anos foi atropelada e arrastada por cerca de um quilômetro pelo ex-companheiro, sobrevivendo, mas tendo as duas pernas amputadas; em Goiás, uma jovem de 19 anos foi morta a facadas por um cliente , que não aceitava o fim da relação e Rosilene Barbosa foi assassinada a tiros pelo ex-marido após anos de ameaças em Rio Verde; em São Paulo, Tatiana Correia dos Santos foi morta em Cordeirópolis ; no Distrito Federal, Jane Oliveira foi assassinada pelo namorado; e no Rio Grande do Norte, Maria das Vitórias da Silva foi assassinada pelo ex-companheiro.

Esses casos recentes de tentativa ou de feminicídios revelam não apenas a brutalidade dos crimes, mas também a reincidência de padrões estruturais: vínculos afetivos marcados por controle, ameaça, agressões denunciadas e ignoradas, medidas protetivas ineficazes e a presença constante do companheiro ou ex-companheiro como autor (8 em cada 10 casos). Cada novo caso expõe a mesma chaga social, a insuficiência imperativa da rede de proteção e o modo como o Estado brasileiro sistematicamente falha em garantir o direito elementar das mulheres à vida em nossa sociedade.

Em reação e resposta a esses feminicídios, no dia 07/12/2025 ocorreu uma onda nacional de manifestações contra o feminicídio e a violência de gênero, que levou milhares de pessoas às ruas em pelo menos 90 cidades de 20 estados e no Distrito Federal. Em São Paulo, cerca de nove mil manifestantes ocuparam a Avenida Paulista com faixas, cruzes, cartazes e cantos de “nenhuma a menos”, transformando o MASP em um grande memorial pelas mulheres assassinadas. Em Brasília, mesmo sob chuva, milhares marcharam com velas e bandeiras roxas, reunindo familiares de vítimas, movimentos sociais e figuras públicas em um ato marcado por forte comoção. Em outras capitais como Salvador, Recife, Porto Alegre e Belo Horizonte a tônica foi semelhante, com mães, irmãs e amigas de mulheres assassinadas dividindo o microfone com coletivos feministas, professoras, estudantes e trabalhadores(as), exigindo que o Estado trate o feminicídio como uma emergência nacional. Os atos expressaram luto, indignação e um chamado coletivo para que políticas públicas efetivas sejam finalmente implementadas, denunciando o descaso histórico do poder público e transformando a dor em força política, em um gesto que expressa a recusa social diante da naturalização da violência que diariamente ceifa a vida de mulheres no país.

Ou seja, o feminicídio no Brasil não é apenas um dado estatístico alarmante, mas uma expressão da estrutura social patriarcal que organiza relações de poder, distribui desigualdades e naturaliza a violência contra mulheres. Em um país onde, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, uma mulher é assassinada a cada sete horas por razões de gênero, torna-se evidente que a violência letal é a ponta visível de um iceberg muito mais profundo: o controle, o assédio, a desigualdade econômica, as violências domésticas e institucionais na vida cotidiana.

De acordo com o Anuário Brasileiro da Segurança Pública de 2025 a maioria das mulheres assassinadas (63,6%) são negras, jovens, pobres e residentes de regiões marcadas pela ausência do Estado. A violência de gênero, não é um desvio individual, mas uma forma de manutenção da ordem social masculina, onde corpos femininos, sobretudo negros e pobres, permanecem mais vulneráveis à lógica do controle, da dominação, da desigualdade, do extermínio e que vivem em regiões com menor presença do Estado.

Do ponto de vista sociológico, o feminicídio pode ser compreendido como um fenômeno estrutural que articula patriarcado, racismo e classe social. A sociologia política na análise de políticas públicas traz evidências que o subfinanciamento não é uma falha técnica, mas uma decisão política inscrita na forma como o Estado brasileiro hierarquiza vidas e causa de variadas formas o desmantelamento de políticas públicas. No caso das políticas públicas para as mulheres essa lógica reforça a desigualdade de gênero e restringe o próprio direito à vida. Outro conceito que pode auxiliar para compreender o feminicídio no Brasil é a interseccionalidade, pois a partir dele é possível analisar como a violência letal contra mulheres não atinge todos os corpos da mesma forma e nem pelas mesmas condições. Exemplo disso é quando é analisado quem são as principais vítimas, pois daí emergem padrões estruturais que articulam gênero, raça, classe e território.

O feminicídio no Brasil também está vinculado a estruturas profundas de machismo e com o pacto narcísico branco na própria dinâmica do Estado brasileiro, como analiso em 570 dias no governo Lula 3. E essa dinâmica de poder domina o direcionamento dado às políticas para as mulheres no governo federal. No interior do governo, esse pacto opera como uma coalizão tácita de homens, majoritariamente brancos, tecnoburocratas e autocentrados que, mesmo se dizendo progressistas, mantêm uma lógica de tutela sobre as pautas de gênero e tratam o Ministério das Mulheres como uma pasta “secundária” ou meramente simbólica, destinada mais a produzir narrativas do que a receber prioridade orçamentária e força política real.

Paradoxalmente, enquanto os indicadores de violência contra mulheres crescem, o Estado brasileiro mantém orçamentos irrisórios para políticas públicas em relação a demanda social, como as Casas da Mulher Brasileira, centros de referência, delegacias especializadas, campanhas educativas e programas de autonomia econômica vinculadas ao Programa Mulher Viver Sem Violência. A consequência é um sistema de proteção fragmentado, com serviços insuficientes e dependentes da vontade política de governos locais e até estaduais.

Outro exemplo disso, foi o orçamento para enfrentamento à violência de gênero na Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2024, no qual o montante foi de R$ 119.409.070 e apenas R$ 18.786.895 foram executados. Isto é, há muitas causas para explicar isso como aponta o Relatório “A Mulher no Orçamento”. Por isso temos que começar a analisar os impactos do arcabouço fiscal, que foi o principal projeto político do governo Lula 3, e como isso afetou as políticas para as mulheres no Brasil. Além disso, também cabe considerar o sequestro de metade do orçamento público pelo Congresso Nacional em forma de emendas parlamentares, tornando o quadro de financiamento de políticas públicas no Brasil mais precário.

Além do orçamento que é um aspecto estrutural que viabiliza as políticas públicas também há o fato de quando as políticas públicas para as mulheres são tratadas como termômetro de aprovação política e isso, além da violência simbólica, relativiza o devido lugar das mulheres nos espaços de poder, mesmo que tenha aumentado no governo Lula 3 a ocupação nos cargos em comissão por mulheres (sobretudo brancas).

O atendimento às mulheres em delegacias no Brasil ainda é marcado por falhas estruturais profundas que revelam tanto o despreparo dos agentes públicos quanto a persistência de uma cultura institucional machista. Em muitos casos, mulheres que buscam ajuda após agressões relatam que enfrentam situações de revitimização, são desacreditadas, pressionadas a “reconciliar” com o agressor ou recebem orientações inadequadas que desconsideram o risco imediato de violência letal. A formação policial raramente inclui conteúdos sobre gênero, direitos humanos e atendimento humanizado de forma consistente, o que resulta em abordagens burocráticas, insensíveis ou mesmo abertamente hostis. Além disso, o número de Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher é insuficiente e muitas delas funcionam com equipes pequenas, estrutura precária e horários reduzidos, o que impede uma resposta efetiva às situações de urgência. A soma desses fatores produz um cenário no qual o Estado, ao invés de proteger, muitas vezes afasta e desampara mulheres em situação de violência, contribuindo para um ciclo que culmina no feminicídio.

A Câmara dos Deputados aprovou iniciativas voltadas ao enfrentamento da violência contra a mulher, em especial em 2024, incluindo projetos que ampliam mecanismos de proteção, estabelecem protocolos de atendimento e buscam garantir espaços específicos para acolhimento em delegacias comuns quando não há delegacias especializadas. Nos últimos anos, também houve aprovações de pacotes legislativos, como medidas de proteção da identidade da vítima, uso de tecnologia para denúncias e destinação de fundos para ações preventivas, além do protagonismo constante da Bancada Feminina na defesa dessas pautas. A bancada cresceu para 91 deputadas eleitas nas eleições em 2022, mas ainda representa pouco o contingente de mulheres que são a maioria em nossa sociedade. No entanto, em meio a esses avanços, de forma antagônica também tramita um projeto de criminalização do aborto legal, que amplia penas e restringe direitos reprodutivos, criando um ambiente legislativo que também produz iniciativas que aprofundam violências institucionais e reduzem a autonomia feminina. Assim, a atuação da Câmara dos Deputados revela um cenário paradoxal: avança-se na criação de normas de enfrentamento à violência, mas devido à atuação da bancada BBB retrocede-se em direitos reprodutivos e mantém-se a dificuldade de transformar legislação em política pública concreta.

O crescimento dos feminicídios no Brasil também precisa ser compreendido junto a expansão do discurso red pill nas redes sociais, um ecossistema misógino e vinculado à extrema direita que forma, educa e socializa meninos e jovens dentro de uma pedagogia do ódio. Esses conteúdos, apresentados como “verdades duras” sobre relacionamentos e virilidade, operam como um currículo informal de masculinidade violenta, ensinando que mulheres são manipuladoras, interessadas, inferiores ou responsáveis pelas frustrações masculinas. Meninos adolescentes, ou até de mais idade, em plena constituição de sua identidade, encontram nesses influenciadores uma espécie de “clube masculino” que legitima a agressividade, normaliza o controle e transforma a violência em linguagem emocional. Essa cultura digital não apenas reforça o machismo estrutural já presente na sociedade brasileira, mas o atualiza em novas formas de sociabilidade e pertencimento, criando gerações que aprendem a erotizar a dominação e a romantizar o discurso do “homem injustiçado”. Somado ao fato do Estado subfinanciar políticas de gênero e negligenciar a educação para a igualdade, no Congresso não tramita a regulação das redes sociais, o que deixa meninos muitas vezes à deriva das plataformas, dando licença para que a ideologia red pill produza masculinidades tóxicas que também configuram a violência que culmina nos feminicídios.

Ou seja, a subalternização das pautas das mulheres nos bastidores de poder no Estado brasileiro não é um mero detalhe administrativo, mas é expressão direta de uma estrutura estatal que reproduz o machismo e o pacto narcísico branco que banaliza a violência contra a mulher e o feminicídio, bem como impede a construção de uma política robusta de proteção e autonomia feminina em nossa sociedade.

Enfrentar o feminicídio no Brasil requer muito mais do que discursos e leis, exige que o Estado e os governos eleitos financiem, coordenem e estruturem uma rede integrada de proteção, articulando segurança pública, justiça, emprego, remuneração, assistência social, saúde, educação etc. Exige, sobretudo, levar a cabo dentro do próprio Estado e espaços de poder na sociedade a aceitação genuína das mudanças culturais e nas relações de gênero que rechaçam o machismo, a misoginia e que reconheçam a centralidade política das mulheres na vida social.

O discurso individualista, meritocrático e a ideologia neoliberal reduzem a violência contra as mulheres a conflitos privados ou a “casos de polícia”, obscurecendo sua dimensão coletiva e estruturante. Quando o feminicídio é compreendido apenas como tragédia individual na relação entre homem e mulher, desresponsabilizando a sociedade e o Estado, dilui-se a urgência de políticas públicas efetivas. Sem investimentos consistentes e sem políticas públicas que incidam sobre as raízes estruturais do patriarcado, a cada mulher assassinada seguimos repetindo perguntas, por exemplo, como: que vidas o Estado brasileiro realmente protege? E a segurança pública das mulheres negras e pobres em nossa sociedade? Que candidata ou candidato tem em seu programa de governo políticas públicas para mulheres com previsão orçamentária robusta?

Em caso de violência contra a mulher, busque a Central de Atendimento à Mulher e Ligue 180.

 

 

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