Globo e governos: o que fazer com os corpos negros na cidade olímpica?, por Douglas Belchior

Como pedir calma, paciência e paz aos que sofrem historicamente com a violência, a tortura e a morte?

No NegroBelchior

O empresário branco denuncia.

O telejornal de maior audiência do país noticia.

O tenente-coronel, militar branco, comenta: “Nos últimos 3 meses, 69 menores foram apreendidos; 120 foram encaminhados a setores competentes“.

O delegado da Policia Civil, branco, reafirma: “Em 2015, foram 80 operações em que 120 menores foram apreendidos”.

O representante do governo, branco também, diz: “A Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social faz ações junto com a polícia no Centro do Rio“.

E, para fechar com chave de ouro, como endosso técnico para dar credibilidade à matéria, um especialista faz leitura labial no preto que, segundo o jornal, treina o bando: “Com violência, sem dó nem piedade”.

Esse foi e enredo de uma reportagem levada ao ar na segunda, dia 5 de janeiro de 2016, pelo Jornal Nacional da TV Globo. O mesmo conteúdo fora veiculado repetidas vezes nos noticiários locais da emissora durante o dia e devem ser repercutidos por toda a semana.

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A narrativa criminalizante somada à força das imagens faz da peça jornalística uma verdadeira apologia ao ódio contra aqueles que na verdade, são as principais vítimas da contradição social e econômica que vivemos: moradores de rua ou favelados, jovens e negros em sua maioria, e não só homens, mulheres também.

Novidade alguma, já que tais conteúdos tem lugar cativo nos programas policiais de qualidade duvidosa, nas tardes de emissoras de menor audiência.

Mas o que nos importa aqui é a promoção do tema ao patamar do “padrão globo de qualidade”, alçado ao horário nobre, no jornal de maior audiência da principal rede de TV do país. Isso, com certeza, não é por acaso.

A sociedade brasileira não tem moral para condenar adolescentes que batem carteiras, roubam celulares, relógios ou correntes nas esquinas do Rio de Janeiro ou qualquer outra cidade do país. O Brasil não tem moral”

O Rio de Janeiro sediará, daqui a poucos meses, o maior evento esportivo do planeta, as Olimpíadas de 2016. As ruas precisam ficar livres e limpas. Corpos negros, indisciplinados, mal educados, sujos e perigosos precisam ser varridos para longe. E a opinião pública precisa estar de acordo.

Cito as Olímpidas por ser, sem dúvida, prioridade atual dos governos Municipal e Estadual do Rio, bem como do Governo Federal. Mas a verdade é que a lógica higienista, racista e genocida de atuação do Estado está presente na história e no cotidiano do Rio de Janeiro. Sua política de segurança pública é, com absoluta certeza, a principal prova desta afirmação.

Menores infratores que roubam à luz do dia, atacam quaisquer desavisados, inclusive idosos e mulheres, dondocas e trabalhadoras, não há critério objetivo. “Bandidos violentos”, “vândalos”, “monstros”. Todos, quase sempre, negros.

Mas quem são eles? Por que moram nas ruas ou vêm sempre dos morros? Por que não têm emprego? Por que não estudam? Por que eles têm ódio?

São vagabundos? Roubam porque querem? Poderiam estar lendo? Viajando? Pedalando? Malhando… mas estão ali, roubando?

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Vocês dão taça de veneno e quer suflair? (Racionais MC’s)

Se eu não conhecesse e não compreendesse a história do Brasil, talvez até os condenasse. Mas eu conheço. Por isso não os condeno. E digo mais: a sociedade brasileira não tem moral para condenar adolescentes que batem carteiras, roubam celulares, relógios ou correntes nas esquinas do Rio de Janeiro ou qualquer outra cidade do país. Não temos – nós enquanto sociedade – moral sequer para condenar os que esfaqueiam ou engrossam as fileiras do crime organizado. Aliás, como bem já descreveu jornalista Mariana Albanese em texto publicado por este Blog, “Perto de quem realmente manda, esses moleques são tão perigosos quanto o Patati e Patatá”. O Brasil não tem moral.

Não se trata, entendam, de defesa a mau feitos ou mal feitores e sim de buscar compreender, de um ponto de vista histórico e sociológico, os porquês de determinadas práticas. Crimes contra a vida, violência e brutalidade não costumam servir como solução de problemas sociais, econômicos ou políticos. Mas um país que tem na violência e na violação de direitos a prática habitual no trato à significativa parcela da população, tem alguma condição de cobrar postura diferente? Como pedir calma, paciência e paz aos que sofrem historicamente com a violência, a tortura e a morte? Os poetas dos Racionais Mc’s, em poucas palavras, diriam: “Vocês dão taça de veneno e quer suflair?”

Não me parece justo imputar responsabilidade apenas aos que vivem em condições de séria vulnerabilidade, como se estes fossem os únicos responsáveis por essa condição.

No mais, sempre é bom lembrar que a violência e a prática criminosa não são patrimônio exclusivo dos ricos, dos maus políticos, das polícias ou da grande imprensa. Por que pretos e pobres deveriam abdicar dessa possibilidade?

Pezão quer acabar com Fundação para a Infância e Adolescência

A hipocrisia é tanta que, ao mesmo tempo em que as elites racistas querem limpar as ruas e varrer essa gente preta e mal cheirosa para longe, o governo do Rio quer fechar a fundação que acolhe adolescentes em medida de internação.

A notícia foi manchete das grandes redes de comunicação, no dia seguinte à veiculação da maldita reportagem no JN. O governo encaminhou para a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro no fim de 2015 projeto de lei em que propõe a extinção da FIA (Fundação para a Infância e Adolescência).

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O governador alega que faltarão recursos para manter os serviços de atendimento às crianças e adolescentes, bem como registrado na nota enviada pelo Palácio Guanabara:

“O projeto de lei, que ainda está em discussão na Alerj, estabelece a extinção de uma autarquia e seis fundações estaduais com base na brusca queda de arrecadação das receitas, agregada à previsão de sua diminuição para os próximos exercícios financeiros, especialmente em razão das incertezas dos cenários econômicos nacional e internacional.”

Como entender? Há, por um lado, a necessidade de “higienizar” a cidade maravilhosa para deleite do turismo olímpico. Já por outro, a iniciativa absurda de acabar com o principal ente público de ação de proteção à criança e ao adolescente no Estado.

Para onde, afinal de contas, seriam removidos os seres desprovidos de humanidade suficiente para dividir o espaço urbano? Cadeias dos adultos? Ainda não dá. Cunha não conseguiu terminar o serviço sujo da aprovação da redução da maioridade penal no Congresso. Então, que fazer?

O que fazer com os corpos negros fora da lei? Sumir com eles!

Sim, afinal, assassinar e deixar corpos expostos tem chamado muito a atenção. Será necessário mudar a prática, coisa que as milícias têm feito com primazia. Desaparecimentos em grande escala. Limpeza das ruas. Corpos às valas.

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Mas estamos falando de órgãos governamentais, da guarda municipal da cidade do Rio e da PM do Estado do Rio. São coisas diferentes. Práticas de milícias são outra coisa.

Sabemos que não.

A violência e a prática criminosa não são patrimônio exclusivo dos ricos, dos maus políticos, das polícias ou da grande imprensa”

Um estudo do sociólogo e professor Ignácio Cano, responsável pelo Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio, revela um aumento drástico no índice de desaparecidos, a partir da ação de milícias.

Os números são dramáticos. Desde 2008 a quantidade de desaparecidos supera o de homicídios no estado. Em 2015 foram registrados 2533 desaparecimentos contra 995 mortes.

Em 2005 os números apontavam 1455 desaparecidos contra 2030 homicídios. Os dados correspondem a aferições nas Zonas Oeste, Norte, Sul e Subúrbio do Rio. O aumento varia de 47% à 125%.

Síntese da hipótese: TV Globo e demais emissoras expõem o cotidiano de violência das ruas do Rio, o que fortalece o sentimento de insegurança, medo e ódio em relação aos pretos e pobres moradores de ruas e favelas. Estes configuram, portanto, criminosos perigosos à solta.

A crise econômica impede o aprisionamento de tantos mais corpos vivos. Afinal, presos têm alto custo, precisam comer, vestir, dormir e, muito embora superlotar prisões seja ideal para a prática de desvios de verba que acontecem país afora, os tempos são de vacas magras. Exterminar e sumir com os corpos é barato, prático, silencioso e eficaz.

Hipótese ou desvario irresponsável? Estariam os argumentos aqui descritos, fora da realidade? Não creio.

Nenhuma novidade para a cidade que até ontem fora capital do nosso império escravocrata. Nada de novo no país da democracia racial, do futebol, do carnaval e agora, das olimpíadas.

Nenhum absurdo para o país que mais mata negros no mundo e onde a emissora que detém 80% da audiência nacional se coloca a serviço da formação da opinião pública para o apoio ao genocídio e à barbárie.

Preto, preta, sorria. Você está sendo filmado. E morto.

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Assista a reportagem a partir de 1min40s:

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