*Maria Lúcia da Silva – População Negra e Saúde
“Nenhum valor é neutro, pois espelha as convicções e as
crenças de um sistema particular – é uma significação já
estabelecida. Não basta, assim, afirmar a evidência da
multiplicidade humana. A percepção da diversidade vai além
do mero registro da variedade das aparências, pois o olhar,
ao mesmo tempo em que percebe, atribui um valor e, claro,
determinada orientação de conduta.” (Sodré, 1999)
Sodré nos mobiliza a reconhecer que todo encontro com o outro, diferente de mim, é atravessado por valor condicionado e conduta orientada. O lugar objetivo e subjetivo que cada pessoa ocupa em dada sociedade é determinante no estabelecimento das relações. As nossas crenças definem o olhar e as mútuas atitudes. As representações que temos dos diferentes grupos sociais e que amparam o nosso comportamento estão baseadas em informações nem sempre acessíveis ou passíveis de serem decodificadas pelo senso comum, porém presentes em nossas sensações, sentimentos e impressões. Vejamos a força da ideologia do branqueamento, magistralmente analisada por Carone (2002), um mecanismo forjado nos períodos pré e pós-abolicionistas para atender às necessidades, aos anseios, preocupações e medos das elites brancas, e que na atualidade ganha outra conotação – “é aos negros que se atribui o desejo de branquear ou de alcançar os privilégios da branquitude por inveja, imitação e falta de identidade étnica positiva” [1].
No momento em que a ideologia do branqueamento torna-se inviável e também não serve mais aos interesses de seus fundadores, torna-se uma patologia peculiar dos negros. Um problema das elites do século 19 e começo do 20, passou a ser interpretado ideologicamente como um problema dos negros – como o desejo de branquear. Signos, representações, possibilidades de leituras e compreensão, nem sempre essa conta fecha, mas os negros sabem o que significa ser “a carne mais barata do mercado”[2]. A música fala de um corpo inferiorizado, subalternizado, e expropriado das suas produções objetivas e subjetivas e de suas reinvenções cotidianas para se manter humano.
A construção da subjetividade tem como pano de fundo as condições e processos históricos sobre o qual se desenvolve a história pessoal e coletiva de um sujeito e de seu grupo de pertença; estrutura sob a qual repousa a base de acolhimento ou não do sujeito em seu processo de desenvolvimento. Neste sentido, compreender de que forma o racismo, incrustado na cultura como elemento estruturador das relações na sociedade brasileira incide sobre a vida psíquica do sujeito, poderá balizar ações na direção de sua desconstrução.
Três pontos são importantes para essa reflexão. Primeiro, a transmissão de um padrão de humanidade assentado em valores e ideais caucasianos, ou mais precisamente, de brasileiros(as) brancos(as), e a incorporação, pelos negros, de atributos negativos, ligados a uma condição de inferioridade.
O segundo refere-se às interdições no processo de identificação dos negros com seus pares e com sua história, produzindo desenraizamento e eliminando o sentimento de pertencimento racial, podendo levar a uma condição de solidão e isolamento profundos.
O terceiro, um tema pouco discutido, a desumanização do sujeito negro materializada pelo constante processo de usurpação de seus bens materiais e imateriais, inicialmente dos negros africanos e, seguidamente dos negros em toda diáspora.
O narcisismo enquanto representação unificada de si mesmo, para o sujeito implica na apreensão de sua imagem corporal. Para Freud: “O eu é, antes de tudo, um eu corporal; não é tão só um ser de superfície, mas é, em si mesmo, a projeção de uma superfície.” … “Pode ser considerado a projeção mental de uma superfície corporal.” (O eu e o isso, 1923)
Assim, vale reafirmar, que é no corpo, é nessa “projeção mental de uma superfície corporal” que o racismo incidi. Trata-se de um corpo marcado pela sua história e que o “outro” sem nenhum respeito ou pudor se sente no direito de vilipendiar, de violar e de julgar negativamente. Este é um corpo que incita o outro a atacá-lo, está exposto ao aniquilamento.
Mezan (1995) afirma que para muitos negros, o fato de ser negro é vivido com muita dificuldade, já que foram introjetadas imagens negativas, produzidas pelos brancos, acerca do que “é” ser negro. Torna-se muito difícil conviver com um corpo tido como feio, um cabelo por definição “ruim”, os lábios denominados como beiços, etc. Para que o trauma da discriminação possa ser assimilado, acomodações psíquicas devem ser feitas para que a vida se torne ao menos suportável”. [3]
Jaime Ginzburg fala da necessidade de investigação sobre a grande dificuldade do Brasil em lidar com seu passado, com sua memória coletiva, com as representações ou a falta delas. E também, “…do que aconteceu de pior no passado do país que cria impactos de fantasmagoria: são imagens do horror do passado que reaparecem como se fossem parte do presente, criando um efeito perturbador.” [4]
Esse efeito perturbador, fantasmático se materializa no corpo negro, constantemente assaltado por uma realidade ameaçadora. O povo negro amedrontado, desgastado chega ao limite de sua capacidade para suportar a pressão cotidiana, a qual o expulsa continuamente da comunidade humana, colocando-o no lugar do despossuído.
Como entender os processos psíquicos vividos pelos negros considerando-se as intensas cargas pulsionais presentes no seu dia a dia?
Como acompanhar, do ponto de vista econômico, o destino de tamanha excitação?
Faz pensar muito a que(m) serve a perdurável recusa da nação brasileira a olhar para o seu passado escravocrata, marcado por sistemática violação e coisificação de corpos negros. Mesmos pós escravização mantém-se até hoje todos os estereótipos e preconceitos criados no passado para legitimar a dominação de um grupo sobre outro, fazendo crer que negro é preguiçoso, pouco confiável, afeito à subalternidade e ao trabalho pesado, inferior intelectualmente e que não encontra o seu lugar porque não se esforça, não tem vontade própria e nem merecimento. Certamente, alguém ganha com isso.
Desse passado escravocrata portanto só há ônus ao povo negro, mantendo a população não negra omissa e isenta de qualquer responsabilidade, desfrutando de privilégios simbólicos e materiais, do fortalecimento dos laços da branquitude e do monopólio dos lugares sociais de poder.
A nossa ação tem rumo certo: a reparação psicossocial. E é isso que sustenta e revigora a nossa energia. Energia que demanda passagem, movimento e voz: Basta de adoecimento e sofrimento psíquico causados pelo racismo!
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REFERENCIAS
1 Patologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueam. Aparecida Silva Bento (organizadoras). Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.
2 A carne. Compositor: Seu Jorge, Marcelo Yuca E Wilson Capellette
3 Mezan Renato. Psicanálise, Judaísmo: ressonâncias / Série P Janeiro, 1995
4 Entrevista com Jaime Ginzburg. Linguagem e experiência na Brasileira de Psicanálise · Volume 47, n. 1, 17-26 · 2013 17
*Texto publicado na secção Debate da Percurso: Revista de Psicanális XXXVIII n. 54, 2015. São Paulo, Instituto Sedes Sapientae.
*Psicóloga – clínica psicanalítica, especializada em trabalhos em grupos com recorte de gênero e raça. Diretora-Presidente do Instituto AMMA Psique e Negritude; Coordenadora Geral da Articulação Nacional de Psicólogas(os) Negras(os) e Pesquisadoras(es). Empreendedora Social da Ashoka. E-mail: [email protected]