Por Geraldo Prado, em Justificando
A Constituição da República foi promulgada em 05 de outubro de 1988. Para os brasileiros significava o fim de uma era, o deixar para trás a ditadura. Comemorava-se o início de um tempo repleto de expectativas.
O resto do mundo, todavia, assistia ao colapso da União Soviética, o término próximo da Guerra Fria, experimentava o apogeu do neoliberalismo e a expansão das globalizações contemporâneas, com múltiplas implicações e contradições, envolvidas em uma transformação inédita nas relações sociais, mudança ditada pelo desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação.
Estas contradições, mais do que qualquer outro fenômeno, atingiram seriamente o mundo do trabalho e o das relações interpessoais – quer no nível dos afetos, quer no da confiança.
Era esperado que uma Constituição que brotava um tanto atrasada, fundada em promessas de bem-estar social historicamente desdenhadas por grande parte das nossas classes mais favorecidas, sofresse ataques desde o primeiro dia de sua vigência. Foi o que ocorreu.
Não que a Carta de 88 propusesse uma transformação radical em direção à democracia inclusiva. Mas sem ter essa potência, sempre assustadora para os grupos conservadores, ainda assim inovava no reconhecimento das cidadanias política, social e econômica, referia a reforma agrária, reconhecia o direito dos povos originários e o valor do trabalho e se propunha a ser um obstáculo às históricas violências do poder, dirigidas aos descendentes dos antigos escravos, à população da periferia das grandes cidades, aos dissidentes em geral, aos jovens, idosos e mulheres.
Um exemplo hoje trivial esclarece o quanto o mais básico instrumento de proteção parecia, ao olhar treinado no autoritarismo, uma concessão inadmissível à fraqueza – “coisa típica das democracias”: muitos delegados de polícia revoltaram-se com o fato de lhes ser exigido, de 05 de outubro de 88 em diante, que buscassem um mandado com um juiz para poder entrar na casa alheia sem autorização do morador. Nas favelas, a regra constitucional ainda hoje não vale.
90 Emendas e quase 28 anos depois os ataques se intensificam. Partindo de todos os lados – e até mesmo dos governos populares – o capital busca se impor ao trabalho, a previdência é cada vez menos previdente, as portas se fecham às gerações futuras, o ambiente é degradado em prol do lucro e os interesses das grandes corporações submetem imensas partes de nossa população, tentando subjugar aquelas mesmas pessoas que encontram na Constituição a base jurídica para lutar civilizadamente pela afirmação prática de sua dignidade.
Neste contexto de fragilidade há luta, não há entrega. As forças políticas que conquistaram por seu próprio esforço um significativo protagonismo em contexto mundial e local extremamente desfavoráveis, como revela-se o quadro atual, encontram no que ainda sobra do acordo constitucional de 88 algumas das energias capazes de lhes assegurar as condições para frear o ímpeto conservador e reacionário.
Grande parte dessa energia é minada pela criminalização dos movimentos sociais e populares, pela limitação e eliminação de direitos sociais, pelo negligenciamento de demandas urgentes em várias áreas vitais e, se não bastasse, por um aparente desprezo aos que militam no campo da educação e saúde pública, que hoje compõem, com outros importantes grupos, o conjunto de forças que se opõem francamente ao projeto de golpe de estado em andamento.
Estas forças são conscientemente críticas do atual governo, não se iludem e se dividem entre os que, de dentro, forçam o governo à esquerda, e os que, de fora, lhe fazem oposição à esquerda.
Apesar disso, estas mulheres e homens de todas as idades e classes sociais também estão bastante conscientes de que os golpes dissimulados e indiretos ao projeto constitucional de 88 já não mais saciam o apetite de parte de nossas elites. Para elas é necessário ir mais longe. Para fração dos mais favorecidos, a Constituição sempre significou um entrave, um estorvo, sentimento claramente visível quando grupos e classes sociais vulneráveis dobraram, eleição após eleição, pelo voto, a espinha dorsal dos capitães do mato contemporâneos e de seus mandantes pós-modernos.
A mídia internacional denuncia, juristas revelam sem necessidade de grandes e complexos raciocínios, e hoje, pelas desmandos e arbítrio de certas autoridades, muita gente já se deu conta de que não há base constitucional para o atual processo de impeachment, inscrito, lamentavelmente, em um roteiro experimentado inúmeras vezes, na América Latina, nas duas últimas décadas, como sucessor por excelência dos golpes de estado militares. Nossas oligarquias sequer são originais.
A novidade no Brejo da Cruz é que não se pretende mais, simplesmente, emendar a Constituição, contornar o significado claro de suas normas ou mesmo ignorar a Carta. Estes setores decidiram em suprema ousadia agredir a Constituição, confrontá-la em seu ponto mais importante e, pois, naquilo que é a cidadela que protege todos os demais direitos e garantias: a soberania do sufrágio universal, livre e direto.
A ironia das comparações com tempos obscuros parecia recomendar, para a execução do ataque à Constituição, a figura simbólica do Deputado Eduardo Cunha, investigado e acusado, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, da prática de crimes comuns, destes que são atribuídos a toda a gente, como se costuma dizer em Portugal.
Se não bastasse, a tentativa de golpe fatal ocorre em um abril, mês simbólico do último golpe de estado, mas, principalmente, fragmento do tempo anual que remete à memória de Tiradentes e Silvério dos Reis. Claro que o vice-presidente Temer representa bem um papel nesta história.
O que há de diferente hoje é a reação daqueles grupos e classes sociais para os quais a Defesa da Constituição constitui imperativo ético, aprovando ou não o atual governo. São as forças que sabem que a estabilidade das regras do jogo democrático são essenciais tanto à preservação do que já foi conquistado como à criação das condições para a recuperação do que se perdeu em tempo recente e do muito que ainda há por conquistar.
Estas forças estão hoje, em todo o País, nas ruas, em vigília cívica, em grupos maiores ou menores, espalhados e concentrados, organizados, para fazer deste sábado e deste domingo os dias de demonstração aos Deputados Federais de que cada um dos 54 milhões de votos que definiram que Dilma Rousseff é e será Presidente da República neste mandato não podem ser cassados, como no passado os capitães do mato caçavam escravos.
Impedir o golpe é coisa simples. Basta aos senhores e senhoras Deputados e Deputadas Federais mirarem-se no exemplo de um líder do PMDB, não de um chefe de grupo como Eduardo Cunha. Mas de um verdadeiro líder. Foi ele quem deu a chave para a Defesa da Constituição. Eduardo Cunha tem seu lugar na história do Brasil, mas certamente não ao lado de Ulysses Guimarães.
Não custa lembrar o velho Ulysses e terminar com sua advertência:
“A Nação nos mandou executar um serviço. Nós o fizemos com amor, aplicação e sem medo. A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa, ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca. Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito: rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio, o cemitério”
Premonitório, Ulysses parecia conhecer muito bem Eduardo Cunha e Michel Temer. Afrontar a Constituição, nunca. Traidor da Constituição é traidor da Pátria.
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Geraldo Prado é Professor Titular de Direito Processual Penal na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).