Secundaristas

Por Lincoln Secco* – Blog da Boitempo

“Onde há partidos políticos, cada um encontra o fundamento de qualquer mal no fato de que não ele, mas o seu partido adversário, acha-se ao leme do Estado. Até os políticos radicais e revolucionários já não procuram o fundamento do mal na essência do Estado, mas numa determinada forma de Estado, no lugar da qual eles querem colocar uma outra forma de Estado”.
– KARL MARX, GLOSAS, 1844.

Desde junho de 2013 os governos descobriram-se perante movimentos sociais imprevisíveis. Eles não têm uma só forma ou conteúdo. Quando se julga derrotá-los, eis que reaparecem com outra demanda e outra tática.

Não tem unidade nacional, mas demonstram união. Vistos de longe, compõem um belo desenho. De perto, são pontos. Não têm um autor, são antes uma escultura social. As passeatas não têm rumo pré-estabelecido, são decididas em assembleia. Para contê-las, a Polícia Militar passou a cercar os manifestantes. Usou o caldeirão, o cassetete, as bombas e os tiros de borracha. Para criminalizá-los, garrafas de plástico se tornaram molotovs e a água transmutou-se não em vinho, mas em periculoso líquido inflamável.

E eis que de repente, o governo se viu diante das ocupações de escolas públicas.

Quem estava por trás delas? Bastou um simples levante secundarista e o Governo retrocedeu em sua intenção de fechar escolas. A tecnologia do protesto havia mudado. Quais as características das novas ações?

  1. Estrutura. Os movimentos não têm líderes, embora tenham direção. Decerto, alguns se destacam porque se dedicam mais. O Estado não encontra um “parceiro” (a burocracia permanente) para negociar.
  2. Linguagem e objetivos. A juventude militante se coloca numa frequência inaudível para os partidos: não há ganhos parciais. Se se diz estar interessado no fim da máfia da merenda, é exatamente isso o que se quer. A revolta é em si mesma parcial e total. Não se trata de querer alguma mudança geral. Mas a focalização total num só ponto coloca em cheque o todo.
  3. Temporalidade. Não há um tempo para conciliar. Não há um movimento que seja fixo para acumular expectativas de reconhecimento público ou de carreira eleitoral. Quando se começa a detectar a vanguarda, o movimento a abandona. Seus múltiplos ritmos de tempo parecem em hibernação e quando menos se espera, a toupeira emerge do subterrâneo num tempo curto, apaixonante e explosivo.

Os jovens estão abaixo dos partidos porque não disputam o poder; e acima porque não reconhecem os limites da ação institucional. Não se pode sequer censurá-los por não publicarem as famosas análises de conjuntura dos partidos. Depois do golpe de abril de 2016, é compreensível que fiquem à margem de uma disputa que se dá no campo da Ordem. Dizer (como a esquerda) que foi um Golpe de Estado lhes é indiferente. Dizer (como a Direita) que não foi, também. Sua demanda não pode ser aprisionada na revolta política.

Lembrando o jovem Marx, por mais colossal que esta pareça ser, seu espírito é estreito. E por mais local que a revolta social seja, sua alma é universal. A luta política visa mudar o conteúdo do Estado e, eventualmente, sua forma. Mas não coloca em cheque o próprio Estado.

Decerto, permanece um teorema insolúvel: sem autoatividade, liberta de “representantes”, não há emancipação. Mas o poder estatal continuará existindo e sem o ato puramente político da sua destruição não há transformação. Mas impedir que o “ato político” destrutivo crie uma nova opressão não é mais um tema acadêmico para eles e elas.

Antes, se podia pensar na sua forma de integração posterior à institucionalidade. Afinal, movimentos juvenis se iniciam radicais para ocupar um espaço legítimo na sociedade civil. Pode-se argumentar que, numa sociedade em que a dinâmica do capital invadiu todas as esferas da existência e comanda a vigília e o sono, o prazer e a morte, o trabalho e o sexo, não há que se esperar que secundaristas permaneçam solidários depois de ingressarem no mercado de trabalho. Mas isso também não vale para a política, transformada em mercado eleitoral?

A maioria desses jovens já suporta a vida competitiva antes da entrada no mundo do trabalho. Além disso eles não têm futuro algum: subempregos, precarização e desemprego permanente serão as suas opções.

Quem viu algumas de suas manifestações esquece aquela ladainha de que são filhos e filhas da classe média. Na Rua da Consolação desciam meninas dotadas de forte consciência social em sua performance e “palavras de ordem” que eram cantos; meninos negros; jovens de vestes radicais e comportamento “reprovável”; com camisetas vermelhas ou pretas e sem preocupação de “disputar” o verde e amarelo nacional; com orientações sexuais as mais diversas em comunidade. Estavam fora da escola aprendendo política e poesia, direito e dança, artes visuais e matemática. Claro, com a história nas mãos.

Um movimento assim só pode ser mal educado…

***

Lincoln Secco é professor de História Contemporânea na USP.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

two × five =