“Nenhum Papa foi tão longe na condenação ao capitalismo como Francisco”

Por Gabriel Brito, Correio da Cidadania

O papado de Francisco continua a alvoroçar o catolicismo e a opinião pública mundiais, num pontificado que, ao lado da promessa de fomento à “opção pelos pobres”, tem ousado fazer críticas às engrenagens de um capitalismo em crise em níveis bem acima do esperado. Para discutir o papel daquele que muitos consideram o maior líder político da atualidade, o Correio da Cidadania entrevistou o filósofo franco-brasileiro Michael Löwy, estudioso da Teologia da Libertação.

“Obviamente, ele pretende levar a sério o compromisso da Igreja com os pobres, suprimir os vínculos dos bancos do Vaticano com a máfia e tentar reduzir o poder conservador da Cúria Romana. Sua tentativa de elaborar uma concepção um pouco mais aberta da família e da sexualidade foi diluída pelo Sínodo dos Cardeais… Há muitas resistências. Parece que os setores mais reacionários da Igreja têm uma prece especial sobre Bergoglio: ‘Nosso Pai que está no Céu, ilumine-o ou… Elimine-o’”, pontuou.

Ao mesmo tempo em que reconhece o papel e importância do novo papado, Löwy contrabalança parte da visão otimista que existe hoje relativamente às posturas de Francisco. Não por conta da polêmica em relação à ditadura argentina, mas por ponderar que a crítica ao capitalismo e aos modos de acumulação fazem parte da tradição da Igreja. O filósofo faz questão, de toda forma, de ressaltar, que “a esquerda deve tratar com respeito as convicções religiosas e considerar os militantes cristãos de esquerda como parte essencial do movimento de emancipação dos oprimidos. A teologia da libertação nos ensina também a importância da ética no processo de conscientização e a prioridade do trabalho de base”.

Na entrevista, Löwy também comenta o encontro do Papa em Havana com o patriarca Kiril, líder da Igreja Ortodoxa russa, e avalia a possibilidade de união entre as três grandes religiões monoteístas frente ao capitalismo, entre outras observações que podem ser lidas na íntegra a seguir.

Correio da Cidadania: Quem é Papa Francisco? O que pretende?

Michael Löwy: Gostaria, antes de responder sua pergunta, de homenagear a memória do fundador do Correio da Cidadania, meu querido amigo e companheiro de lutas Plínio de Arruda Sampaio, um cristão socialista comprometido com a luta do povo brasileiro por sua emancipação, um adversário intransigente da ditadura militar, do latifúndio, do imperialismo e do perverso sistema capitalista. Sua vida foi um exemplo de coerência ética e política, de dignidade e de coragem.

Jorge Mario Bergoglio, o Papa Francisco, não era considerado um homem de esquerda. Seu comportamento durante a ditadura militar argentina é um exemplo de “pecado por omissão”: não apoiou e tampouco se opôs ao regime. Não é, portanto, surpreendente que tenha sido eleito Pontifex Maximum pelo mesmo conclave que havia eleito Ratzinger – Bento XVI – pouco tempo antes.

Entretanto, apenas eleito, surpreendeu por uma sucessão de iniciativas corajosas, a começar pela visita à Lampedusa, para denunciar o tratamento dado pela Europa aos refugiados (muçulmanos em sua maioria). Em relação à teologia da libertação, sua atitude é radicalmente distinta da dos dois pontífices anteriores: Gustavo Gutierrez foi convidado ao Vaticano e o processo de canonização de Monsenhor Romero, aberto. Se lemos atentamente as Encíclicas de Bergoglio, percebe-se a influência de uma corrente importante do catolicismo da Argentina: a teologia da libertação não-marxista, representada por pensadores como Juan Carlos Scannone.

Obviamente, ele pretende levar a sério o compromisso da Igreja com os pobres, suprimir os vínculos dos bancos do Vaticano com a máfia e tentar reduzir o poder conservador da Cúria Romana. Será que conseguirá? Sua tentativa de elaborar uma concepção um pouco mais aberta da família e da sexualidade foi diluída pelo Sínodo dos Cardeais… Há muitas resistências. Parece que os setores mais reacionários da Igreja têm uma prece especial sobre Bergoglio: “Nosso Pai que está no Céu, ilumine-o ou… Elimine-o”.

Correio da Cidadania: A encíclica Laudato Si ataca frontalmente o sistema capitalista. O que isto significa vindo de um Papa?

Michael Löwy: Bergoglio não é marxista e a palavra “capitalismo” não aparece na Encíclica. Mas fica muito claro que para ele os dramáticos problemas ecológicos de nossa época resultam das “engrenagens da atual economia globalizada”, engrenagens que constituem um sistema global, “um sistema de relações comerciais e de propriedade estruturalmente perverso”.

Quais são, para Francisco, estas características “estruturalmente perversas”? Antes de tudo, é um sistema no qual predominam “os interesses ilimitados das empresas” e “uma discutível racionalidade econômica”, uma racionalidade instrumental que tem por único objetivo aumentar o lucro. Para o Papa, esta perversidade não é própria de um país ou outro, mas de “um sistema mundial, onde predominam a especulação e o princípio de maximização do lucro, e uma busca de rentabilidade financeira que tende a ignorar todo o contexto e os efeitos sobre a dignidade humana e o meio ambiente. Assim, se manifesta a íntima relação entre degradação ambiental e degradação humana e ética”.

A obsessão do crescimento ilimitado, o consumismo, a tecnocracia, o domínio absoluto da finança e a divinização do mercado são outras características perversas do sistema. Em sua lógica destrutiva, tudo se reduz ao mercado e ao “cálculo financeiro de custos e benefícios”. Mas sabemos que “o meio ambiente é um desses bens que os mecanismos de mercado não são capazes de defender ou de promover adequadamente”.  O mercado é incapaz de levar em conta valores qualitativos, éticos, sociais, humanos ou naturais, isto é, “valores que excedem cálculos”.

O poder “absoluto” do capital financeiro especulativo é um aspecto essencial do sistema, como revelou a recente crise bancária. O comentário da Encíclica é contundente: “a salvação dos bancos a todo custo, fazendo a população pagar o preço, confirma o domínio absoluto das finanças que não têm futuro e só pode gerar novas crises, depois de uma longa, custosa e aparente cura”.

Sempre associando a questão ecológica e a questão social, Francisco constata: “a mesma lógica que dificulta tomar medidas drásticas para inverter a tendência ao aquecimento global é a que não permite cumprir com o objetivo de erradicar a pobreza”.

Existe uma longa tradição de crítica do capitalismo liberal, ou dos “excessos ” do capital na Igreja Católica. Mas nenhum Papa foi tão longe nesta condenação como Francisco.

Correio da Cidadania: Em 12 de fevereiro, Papa Francisco e o e o Patriarca Kirill, encontraram-se em nome de suas igrejas quase 1.000 anos após o cisma, em Cuba, e assinaram um documento que contém este texto:

“O nosso encontro fraterno teve lugar em Cuba, encruzilhada entre Norte e Sul, entre Leste e Oeste. A partir desta ilha, símbolo das esperanças do “Novo Mundo” e dos acontecimentos dramáticos da história do século XX, dirigimos a nossa palavra a todos os povos da América Latina e dos outros continentes”.

Um “Novo Mundo” na visão dos dois líderes religiosos é um mundo socialista?

Michael Löwy: Francamente, não atribuo tanta importância a este encontro, que tem mais a ver com a diplomacia das relações inter-religosas do que com a revolução cubana… O “Novo Mundo” de que falam não é o “mundo socialista”, mas simplesmente o continente americano, designado há séculos como “Novo Mundo”. O conceito de “socialismo” não faz parte do vocabulário de nenhum do dois líderes religiosos.

Correio da Cidadania: O que a Teologia da Libertação tem a ensinar para a esquerda mundial, considerando suas diferentes correntes de pensamento?

Michael Löwy: Em primeiro lugar, ela nos ensina que a religião pode ser outra coisa, diferente de simples “ópio do povo”. Aliás, Marx e Engels já haviam previsto a possibilidade de movimentos religiosos com uma dinâmica anticapitalista. A esquerda deve tratar com respeito as convicções religiosas e considerar os militantes cristãos de esquerda como parte essencial do movimento de emancipação dos oprimidos. A teologia da libertação nos ensina também a importância da ética no processo de conscientização e a prioridade do trabalho de base, junto às classes populares, em seus bairros, igrejas, comunidades rurais e escolas.

Correio da Cidadania: Uma unidade política de caráter anticapitalista e anti-imperialista entre as grandes religiões monoteístas (Cristã, Judaica e Islã) é possível no ponto de vista de alguns teólogos e mais, fundamental para superar o capitalismo em escala global. O que pensa sobre isso? É possível superar o capitalismo sem esta unidade?

Michael Löwy: Não acredito em unidade anticapitalista das “grandes religiões monoteístas”… O que pode existir é uma convergência ecumênica entre correntes progressistas, anticapitalistas, anti-imperialistas, ecologicamente conscientes, em todas as religiões, não só as três que menciona. Por exemplo, o budismo, o hinduísmo, religiões africanas, umbanda, candomblé, religiões indígenas das Américas etc.

Já existem redes progressistas, como a Associação de Teólogos do Terceiro Mundo, que é ecumênica. Não sei se superar o capitalismo sem esta convergência é possível ou não, mas ela é uma contribuição importante para a conscientização de amplas camadas populares.
Correio da Cidadania: A igreja católica no Brasil está alinhada ao Papa Francisco?

Michael Löwy: Boa parte dos bispos da CNBB está alinhada com Francisco. Alguns até gostariam que ele fosse mais longe. Outros, pelo contrário, acham que ele está colocando em perigo a doutrina da fé e tentam colocar obstáculos para suas propostas. Mas a Igreja brasileira, apesar de seus limites, em particular no que concerne ao direito das mulheres sobre seu corpo – divórcio, contracepção, aborto – é uma das mais progressistas do mundo católico.

Correio da Cidadania: Objetivamente, Papa Francisco tem condições de criar uma unidade internacional de caráter progressista para enfrentamento ao capitalismo?

Michael Löwy: Não! Nem objetivamente, nem subjetivamente. O Papa não se coloca tarefas deste tipo! Para enfrentar o capitalismo necessitamos da unidade internacional dos trabalhadores, da juventude, das mulheres, dos indígenas, dos explorados e oprimidos, que são a esmagadora maioria da humanidade. O Papa poderá, eventualmente, contribuir para uma tomada de consciência social e ecológica de um amplo setor dos fieis católicos. Já é muito!

Correio da Cidadania: A “Opção Preferencial pelo Pobre”, conjunto de ideias e ações práticas contrárias à lógica da acumulação e retenção de capital do atual sistema político e econômico, se colocadas plenamente em prática resultará em confrontos violentos. Como se posicionará o Papa neste cenário, em sua avaliação?

Michael Löwy: A Igreja, tradicionalmente, busca “evitar” os confrontos violentos. Mas na Conferência de Medellín dos bispos latino-americanos, em 1968, foi adotada uma resolução importante que reconhece o direito de insurreição do povo contra tiranias e estruturas opressivas. Como sabemos, alguns membros do clero levaram sua opção libertária e seu compromisso com a luta dos pobres até as últimas consequências, participando de movimentos armados de emancipação.

Foi o caso de Camilo Torres na Colômbia, que resolveu aderir ao Exército de Libertação Nacional e foi morto em combate em 1966. Poucos anos depois, um grupo de jovens dominicanos deu seu apoio à ALN, dirigida por Carlos Marighella, no combate contra a ditadura militar. E nos anos 1970, os irmãos Cardenal e vários outros religiosos participaram da Frente Nacional de Libertação da Nicarágua.

É difícil prever, no momento atual, que tipo de “confrontos violentos” se darão contra o sistema capitalista, e menos ainda qual será a posição do Papa Francisco frente a uma situação deste tipo.

Correio da Cidadania: Mudando de assunto, mas para não deixar escapar a oportunidade, como você enxerga o atual momento político brasileiro? Que desfecho gostaria que a crise política, econômica, social e ética tivesse?

Michael Löwy: Vejo a conjuntura brasileira atual com muita preocupação. Tenho muitas críticas ao governo de Dilma Rousseff, fez demasiadas concessões ao capital financeiro, aos bancos, aos latifundiários e tomou várias medidas opostas aos interesses das classes populares. Por outro lado, não posso deixar de manifestar um repúdio categórico à aprovação do processo de impeachment que afastou a presidente, um verdadeiro golpe de Estado pseudo-legal.

É uma verdadeira farsa tragicômica o que acaba de se passar no Congresso: uma quadrilha de gângsteres políticos, comprometida com os escândalos de corrupção, derruba a presidenta democraticamente eleita – um dos poucos políticos não acusados de corrupção, – por supostas “irregularidades administrativas”. Tudo isso em nome de “Deus”, da “Pátria”, da “Família”, se escondendo atrás da bandeira nacional. Sem falar nos adeptos da ditadura militar e dos métodos de tortura do coronel Ustra. Uma vergonha!

É triste ver como o Partido dos Trabalhadores, que em sua origem tinha uma grande coerência ética e política, acabou sendo envolvido no escândalo da Petrobras. Mas ele está longe de ser o único! É absurdo pretender, como o faz a média conservadora, que o PT tem o monopólio da corrupção: os principais dirigentes da oposição, a começar pelo famigerado Eduardo Cunha – e dezenas de outros, do PSDB, do PMDB, do PP etc. – estão comprometidos com o “assunto”.

Minha esperança é que a Frente Brasil Popular, que inclui partidos de esquerda e movimentos sociais, consiga seus objetivos: ao mesmo tempo impedir o golpe e obrigar o governo de Dilma a romper com as políticas neoliberais. Só uma ampla mobilização do povo brasileiro, dos trabalhadores, da juventude, das mulheres, dos negros, de todos os explorados e oprimidos, poderá por um fim à tentativa da oligarquia reacionária de tomar o poder e acabar com a democracia no Brasil.

Minhas simpatias vão ao Partido do Socialismo e da Liberdade (PSOL), um dos poucos a não estar comprometido com Lava Jatos e outras ignomínias; ele é, a meu ver, o digno herdeiro do que de melhor havia no PT das origens, quando ainda se propunha a acabar com o grande inimigo dos trabalhadores e da democracia: o sistema capitalista.

*Gabriel Brito é jornalista do Correio da Cidadania.

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