Bonde do Saara: a alma do bairro de Santa Teresa sobre ataque

Maristela Grynberg* – RioOnWatch

No dia 27 de agosto de 2011 houve um grave acidente com o bondinho de Santa Teresa, bairro situado na Zona Central do Rio, que resultou em mutilações e mortes, inclusive a do condutor do bonde, Nelson, que há décadas trabalhava como motorneiro, era muito amado por todos os moradores e como se não bastasse ter dado a vida pelos bondes, ainda foi responsabilizado como culpado pelo acidente, pelo então secretário de Transportes, deputado Júlio Lopes. Essa tragédia só ocorreu por conta do sucateamento do sistema, que não recebia investimentos governamentais, dispunha de uma oficina precária e absoluta carência de peças. Funcionários eram obrigados a improvisarem peças para o funcionamento não ser interrompido, movidos pelo amor ao bonde.

No final de 2011, a obra foi iniciada, sendo interrompida por mais de um ano após um mês de obras e menos de 100 metros avançados. Mesmo com uma decisão judicial, determinando a restauração imediata do sistema, tal ritmo se manteve ao longo destes cinco anos de agonia. Os trechos já concluídos são intermitentes, ou seja, não há continuidade na linha; são trechos esparsos, alguns sem trilho entre um canteiro e outro, inviabilizando propositalmente a circulação.

O mesmo ex-secretário de Transporte, Julio Lopes, decretou que bens inservíveis deveriam ser doados para a ONG Rio Solidário–por coincidência, pertencente a Adriana Ancelmo, mulher do ex-governador Sergio Cabral–que na época do acidente era o governador do Estado–herdeira do sistema rodoviário por ser filha de Jacob Barata, o maior empresário do ramo de transporte no Estado e advogada do Metrô-Rio. Nossos bondes centenários foram doados como sucata e o governo, nada disse a respeito.

Bondes para Quem?

Atualmente, os bondes seguem apenas até o Largo dos Guimarães, gratuitamente, apenas entre 11:00 e 16:00 exatamente para evitar a ida e volta dos moradores que trabalham e estudam fora do bairro.

O bonde como está não chega onde tem favela. Custando pouco, óbvio que seria, como sempre foi, o meio de transporte preferido pela maioria e não sobraria tanto espaço para os visitantes. Nossos trilhos servem apenas como marketing promocional, um chamariz turístico. Onde o morador se encaixa?… Espremido dentro de algum ônibus, claro… No bonde, junto com turista é que não seria! Pontos de parada? Ora, o trecho Dois Irmãos é o que concentra a maioria das favelas do bairro [Coroa, Fallet, Fogueteiro, Prazeres, Julio Otoni, entre outras] e nossos gestores não governam para pobres.

Na prática, nenhum discurso “politicamente correto” apaga esta evidência. O ramal Dois Irmãos é turisticamente cobiçado devido a pretendida conexão com os bondes do Corcovado e já fomos informados dos planos do Estado. Segundo nossos gestores, esta, deveria ser uma linha sem paradas, que sairia da estação da Carioca até o Corcovado, levando e trazendo turistas.

Não existe uma fila exclusiva para moradores e os turistas formam filas imensas, chegando a centenas em alguns dias. Não temos acesso ao nosso maior patrimônio. Fomos expurgados e impossibilitados de usufruir do nosso transporte, que passou a ser a diversão dos turistas e uma mera decoração na paisagem.

Quem espera sempre alcança… Será mesmo?

A declaração oficial inicial informava que a conclusão da restauração de todo o sistema levaria seis meses e se daria antes da Copa do Mundo. As Olimpíadas chegaram e nada aconteceu.

Uma obra orçada inicialmente em menos de R$58,6 milhões, passou para o valor de R$87,1 milhões, já tendo ultrapassado R$125 milhões. Em abril de 2016, a Secretaria de Estado de Transporte aprovou a liberação de mais R$27 milhões a título de viabilizar a conclusão, porém em junho as obras novamente foram interrompidas, sob a alegação de falta de verbas.

Após cinco anos e depois do dobro da verba prevista inicialmente ser desperdiçada, há mais de um mês convivemos com a nova paralisação. Não concluíram o trecho, simplesmente interromperam, deixando buracos e entulhos para nós, como o tão esperado legado Olímpico.

Não podemos atravessar a rua, não temos como chegar com compras, receber o socorro de uma ambulância, andar com carrinhos de bebês, nem levar nossos idosos para um banho de sol. Estamos confinados como recheio de um sanduíche pela obra inacabada do Estado e pelo curral improvisado, montado pela Prefeitura, que instalou telas, obstruindo o caminho restante. Não temos garagens e somos multados se estacionarmos os carros onde a Prefeitura arbitrariamente proibiu o acesso–sem ouvir os moradores. Diariamente, motociclistas se acidentam e nenhuma providência é tomada.

Atenção: Mulheres trabalhando!

Cansadas de esperar por milagre, no dia 23 de julho, três moradoras decidiram por a mão na massa, literalmente, para impedir que alguma morte ocorra e também, para garantir o mínimo acesso da vizinhança aos dois lados da rua. Compramos cimento e areia, e com pás e enxadas, resolvemos tapar os buracos por conta própria, ao menos em frente a nossa casa. Carregamos dormentes, brita, trabalhamos muito e conseguimos atenuar o desconforto.

Confiantes de que o compromisso do Governo não dispõe do empenho deste para ser executado, aproveitamos e carregamos terra também, para criarmos uma horta nos trilhos, afinal, certamente chegaremos a colheita dos temperos no que depender da celeridade do serviço estatal. Assim a espera, ainda que simbólica e indiretamente, nos trará frutos.

A representante da Prefeitura, que não anda pela rua para nos ouvir, mas circula para monitorar, coibir e impor sua determinação, ao nos ver trabalhando, nos chamou de “espíritos de porco” por não reconhecermos que o curral erguido por eles foi feito por amor. É um insulto para os administradores não aceitarmos a ideia de sermos uma manada cercada e mansa. Pois não somos e não aceitamos mesmo.

Apesar dos pesados pesares, nós amamos o bonde e esse amor transcende, ultrapassa limites geográficos. Somos santateresianos e ratificamos esse amor. Todos nós, os daqui do entorno, os moradores de outras ruas, os que moram nas favelas e os visitantes que vieram de outros lugares, juntos, carregamos terra, trouxemos mudas, sujamos as mãos e lavamos a alma. Faremos desses escombros, jardins e hortas, onde plantaremos também, ideias e força. Nossa vizinhança embarcou nessa loucura, decidimos nos unir mais. Se há males que vêm pra bem, o bem maior é a redescoberta de que a união faz a força. Essa foi apenas a primeira semente da nossa trilhorta nos trilhos da vergonha, e que a cidadania floresça.

Antes da Colheita, Porém

Alguns dias após a horta ser plantada, no dia 27 de julho e antes do RioOnWatch clicar ‘publicar’ na matéria acima, a colheita da trilhorta foi o aparente incômodo causado no consórcio ‘ELMO AZVI’, fruto que, aliás, não mata a fome por respeito da população.

Provocados pela intervenção dos moradores, os gestores locais levantaram do berço esplendido e decretaram o fim da horta. Rapidamente montes de pedras e areia foram despejados nos buracos. Ao invés do prosseguimento da obra, o maquinário tapou buracos como se tapasse bocas. Esconderam os trilhos já feitos com brita solta, misturada com poeira, expondo os moradores e transeuntes a uma nova gama de riscos e emoções, tais como ataques dos nervos, crises respiratórias, problemas de visão, gargantas secas e derrapagens. Como se não bastasse, já declararam que tudo isso foi em vão, já que os bondes sequer chegarão aqui: Novos rumos. “Bonde? Apenas até o Vista Alegre! E o restante já feito…? Ah, e daí; deixa pra lá.”

Como “des’legados olimpíadisticos”, das janelas não se avista a obra pela qual se pagou tanto, nem as verduras que ao menos cresciam. Bem vindos ao deserto da Alexandrino; de oásis a sertão.

Talvez, cactos sejam mais aptos ao ambiente. Ao invés de asfalto, areia; no lugar de bondes, camelos… Não importa se como santateresianos ou como tuaregues, a vida prossegue com a luta.

*Moradora de Santa Teresa, é estudante de direito, ativista dos direitos humanos, e estuda auto gestão social e sustentabilidade.

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