Reinventar-nos como cidadania ativa, por Cândido Grzybowski

No Ibase

Volto à minha proposta de refletir para além da conjuntura imediata, buscando uma direção estratégica do caminho a fazer no longo prazo. Na onda de democratização que se esgotou foi possível mudar muito, especialmente no seio da sociedade civil, com novos sujeitos e identidades coletivas demandando direitos de cidadania.  O Brasil foi um grande laboratório social e político de movimentos sociais que promoveram experiências de ação e participação inovadoras, capazes de  tensionar e dar vitalidade à democracia e, sobretudo, levantar agendas novas e fincar as raízes de uma cultura cidadã e democrática transformadora.

Mas isto se revelou insuficiente para mudar substantivamente a correlação de forças, o poder político e as estruturas sociais em que assenta o desenvolvimento capitalista entre nós, num contexto mundial de total domínio do neoliberalismo e das estratégias de globalização. Cada país tem as suas especificidades, mas os “golpes” para o enquadramento da democracia nos parâmetros de políticas neoliberais é um fenômeno regional e mundial na atualidade.

Diante das frustrações e descréditos em relação à democracia, como as últimas eleições municipais demonstraram com uma maioria de não votantes e votos brancos e nulos, cabe enfrentar o desafio de reinventar a democracia como projeto. Para isto, penso que a cidadania ativa é um conceito teórico e uma proposta política essencial. Penso a cidadania a partir de uma concepção política onde ter cidadania é “ter o direito a ter direitos”. A esta definição central acrescento o ter direitos iguais com respeito à diversidade. Falar de cidadania é falar de uma relação política de reconhecimento onde todas e todos se reconhecem com iguais direitos em sua diversidade de gênero, etnia e visões, opções e propostas. A diversidade não pode justificar a desigualdade, nem a igualdade negar a diversidade. Portanto, cidadania é uma relação compartilhada, onde negar cidadania a alguém é afetar a cidadania de todos. Nesta concepção de cidadania, como relação política compartilhada, ela vira uma bandeira fundamental na luta democrática contra as estruturas e processos geradores de desigualdade e pelo respeito à diversidade, sem discriminações e domínios.

Decorrente desta concepção da cidadania, tenho trabalhado com o conceito de cidadania ativa. Penso que para as democracias serem propostas transformadoras é essencial considerar a cidadania como a única força instituinte e constituinte em sua diversidade de sujeitos coletivos cidadãos em disputa. Afinal, a democracia como proposta e processo se inscreve no contexto de luta de classes e de busca de sociedades mais igualitárias, participativas e de bem viver. Trata-se de uma forma de luta de classes no espaço público da política, com respeito aos mesmos direitos de todos. Mas a cidadania só é instituinte e constituinte como cidadania ativa, como a prática histórica demonstra. As grandes transformações e revoluções nunca foram feitas pelo alto, mas sempre por movimentos vindo de baixo, da base.

A partir disto e diante da conjuntura é que proponho o desafio dos nos reinventar como cidadania ativa. É claro que cada luta, cada movimento, cada iniciativa local, cada rede e cada fórum são essenciais. Mas a cidadania ativa como força instituinte e constituinte é um constructo teórico, social, político e cultural. A cidadania ativa se faz e se renova na luta, esta é uma condição necessária, porém insuficiente. Como conceito e visão estratégica para a democracia dos nossos sonhos e desejos precisa de muita reflexão e sistematização como base para uma disputa contra-hegemônica.

Aqui lembro as muito oportunas reflexões e propostas do amigo e grande pensador Boaventura de Sousa Santos, condensadas no seu último livro publicado em português, A difícil democracia: reinventar as esquerdas. Boaventura sublinha “…a necessidade de conceber a democracia como  uma nova gramática social que rompa com o autoritarismo, o patrimonialismo, o monolitismo cultural, o não reconhecimento da diferença…”. E acrescenta “Nas sociedades contemporâneas estruturadas pelos três grandes tipos de dominação moderna – capitalismo, colonialismo e patriarcado – a democracia contra-hegemônica deve ter uma intencionalidade anticapitalista, anticolonialista e antipatriarcal”*. Na minha avaliação faltou acrescentar os “racismos” como forma de dominação extremamente moderna e estruturante das sociedades em sua forma mais violenta, onde ser antirracista é ser cidadania ativa contra-hegemônica. Também, é necessário acrescentar o outro lado desta história de dominação, a destruição da base natural da vida, onde ser contra o modelo de desenvolvimento baseada na exploração dos recursos sem limites é ser a favor da vida e a sustentabilidade socioambiental, portanto, contra a cidadania ativa e a democracia.

Na verdade, Boaventura nos lembra de forma clara e radical que sem um pensamento anticapitalista, anticolonialista, antipatriarcal e (como lembro) antirracista e antidestruição ambiental não temos como renovar a cidadania ativa e ter um projeto de democracia contra-hegemônica. A questão desafiante é fazer isto agregando, articulando, somando as lutas locais, as resistências, insurgências e emergências como parte de uma proposta de um imaginário mobilizador e como força impulsora de movimentos de cidadania ativa irreversíveis para uma democracia transformadora de estruturas e processos geradores de desigualdades sociais e insustentabilidade.

 Rio de Janeiro, 08/01/17.

* Santos, Boaventura de Souza. A difícil democracia: reinventar as esquerdas. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 18-19.

Foto: Severino Silva, O Dia

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