Sobre arte, artesanato indígena e visões racistas de estética

Por: Raial Orotu Puri – Crônicas Indigenistas

A partir do dia 31 de março de 2017 passa a ser obrigatório a todos os comerciantes e agentes de leilão que negociam antiguidades, obras de arte, manuscritos e livros antigos ou raros o cadastramento em uma plataforma virtual, o CNART. A partir dessa data, aqueles que não seguirem procederem ao cadastramento ou não informarem aos órgãos competentes transações consideradas suspeitas estarão passíveis de multas. A fiscalização do setor estará a cargo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN. Trata-se, em realidade, da regulamentação de uma nova-velha atribuição do Iphan, visto que esta atribuição já se encontrava prevista desde a criação desse órgão em 1937.

O objetivo principal da regulamentação do setor é a prevenção da lavagem de dinheiro, bem como a identificação de objetos passíveis de reconhecimento como integrantes do patrimônio histórico e artístico nacional.

Travar conhecimento com as regras acerca do tema do comércio de obras de arte – as que existem há oitenta anos, e aquelas que foram publicadas em temos mais recentes* – me fizeram refletir um pouco sobre alguns detalhes mais próximos do patrimônio cultural indígena, e das implicações da hierarquização existente entre aquilo que é ou não considerado ‘arte’ em nosso país.

Neste texto, gostaria de conversar um pouco sobre isso.

Como é sabido, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN atua desde sua criação na proteção do patrimônio cultural brasileiro, no entanto, desde sua criação é possível vislumbrar uma certa tendência específica a propósito daquilo que seria ou não  considerado arte, patrimônio e cultura no país. É certo que, dentre os precursores do movimento de criação do Instituto figuraram pessoas que eram certamente entusiastas do que chamavam ‘cultura brasileira’, e que buscavam com isso encontrar alguma diferenciação da arte que se fazia no Brasil daquela de tradição europeia. No entanto, é inegável também que, a despeito desse esforço, houve uma maior ênfase em valorizar elementos que ainda remetiam à herança europeia, em detrimento da cultura de face indígena e afro-brasileira. Isso, é claro, deve ser dito, levando em consideração também os processos de mudança de paradigmas ao longo dos oitenta anos de história do IPHAN, possibilitando, por exemplo, a inserção do registro do patrimônio imaterial, o que tornou possível, dentre outras coisas, que a política de patrimonialização e salvaguarda alcançasse bens culturais indígenas dentro de seu arcabouço.

Obviamente, reconhecendo isso, é também preciso ter em mente que estes avanços são tímidos e tem se dado a passos lentos, tanto pela dificuldade institucional de pensar sobre esses temas, quanto por dificuldades bem menos abstratas e materiais, tais como os infindáveis cortes orçamentários, crises, et all.

Nada isso chega a ser novidade, e não levar tais questões em consideração seria fazer bastante desonesto.  Mas ocorre que mesmo neste aspecto é possível ver um recorte muito severo, que se tornou palpável exatamente na discussão acerca da regulamentação do mercado de arte, e veio a ecoar algumas outras reflexões derivadas de conversas das quais recentemente tomei parte, acerca de obras de arte e artesanato indígena.

Em síntese: existe uma separação muito clara entre aquilo que os indígenas fazem, e o que é considerado arte no Brasil. O que os indígenas fazem é, em geral, indistintamente designado artesanato, não importa o quão elaborada, única, e sublime seja a peça produzida. É claro que isto também obedece a um critério ligado ao fato de ser ‘feito em série’, em larga escala, como é o caso das pulseiras e tecidos com kenê produzidos pelas ainbu kenaya Huni Kui: porque fazem várias peças idênticas, embora, na minha opinião, sejam certamente verdadeiras obras de arte, essas peças são comumente designadas como artesanato. Da mesma maneira que são classificadas as inigualáveis panelas wauja, e os quase inacreditáveis adornos de penas produzidos pelos ‘ourives das peças plumárias’ Ukubu-Kaapor.

Mas é interessante chamar a atenção para algo que, aparentemente, devia ser óbvio: os indígenas não produzem ‘apenas’ artesanato, mas também peças de arte. Aqui mesmo no Acre podemos reportar vários exemplos, a começar por Ibã Huni Kui, que vem se consolidando como um dos mais renomados artistas indígenas do Acre, cujos belíssimos quadros há muito tempo deixaram as fronteiras do estado para encantar outros apreciadores. Além de Ibã, e do coletivo MAHKU – Movimento dos Artistas Huni Kuin por ele criado, também valem citar as telas pintadas por Benki Piyãko, Nixiwaka Yawanawá. Isso só para citar alguns, e pensando apenas no Acre… Essas peças certamente possuem uma característica muito interessante, de ser, ao mesmo tempo, criações individuais e ecos da memória cultural dos povos aos quais pertencem, visto que nelas são possíveis vislumbrar os kenê e as histórias ancestrais.

Importa, a essa altura do texto, trazer ainda uma outra questão… se por um lado talvez não seja tão difícil na atualidade reconhecer o valor artístico de um artista indígena, pelo fato dele utilizar de um mesmo tipo de suporte que o branco usa para expressão de sua arte, no caso uma tela, por outro lado parece haver uma dificuldade enorme em compreender o restante da produção indígena como sendo arte também, bela também, única também e necessária de proteção também.

Acredito que isso tem a ver com o tema que sempre volta nas minhas reflexões: as dificuldades inerentes a valores e noções de mundo que são distintas e nem sempre coincidentes, e também à súbita preguiça pela qual são tomados os raion na hora em que se exige deles um esforço simples como tentar entender uma lógica diferente da dele.

Pois bem, é preciso que se compreenda que os indígenas produzem arte sim, e muita! A diferença está no fato de que nem sempre essa arte seja meramente contemplativa, como acontece com a arte branca, que se faz em quadros e esculturas, que são colocadas em paredes. (Deixei enfatizado o nem sempre por daqui a pouco quero retornar sobre isso!) No caso da produção indígena, ela não é só para contemplar ela também se presta a adornar a própria vida, os corpos, o cotidiano, os laços de afeto e parentesco.

O que também pode dar alguma diferenciação é a efemeridade de alguns produtos da arte indígena, como, por exemplo, as pinturas corporais. Desde quando, porém, é o tempo que define o valor de uma arte? Quem já quedou-se um tempo a observar uma mulher indígena traçando os desenhos sobre um corpo, o apuro, cuidado de cada traço, e quem já sentiu o ar de solenidade e afeto que se inscreve nesses momentos, sabe do que me refiro. É certo dizer que cada linha traçada não é uma linha em si mesmo, mas fala de ancestralidade, tradição, cultura ancestral. É certo dizer também que o significado em si dessas linhas suplanta o desenho, visto que tem a ver com uma dimensão de cuidado, e de fazer belo o corpo, e de torná-lo coerente com os significados do mundo à sua volta. É certo dizer, ainda, que a pintura ali inserida têm conexão com elementos outros, como a própria construção da sociedade e do parentesco indígena, que é sempre dinâmico. Nada disso que digo deixa de ser verdade pelo simples fato de tratar-se de uma pintura de jenipapo que vai desaparecer após alguns banhos, não é mesmo?

E assim ocorre que não ser feita apenas para se olhar – ainda que seja muito bonita de se ver! – essa arte do cotidiano deixa de ser considerada arte, e passa à categoria de mero artesanato, que por isso, não recebe tratamento equivalente às obras de arte. E nesse ponto do texto, escuto já os ecos impacientes daqueles que pensam só dentro das ‘caixinhas’: “sim, moça, mas acontece que são peças feitas em série, e derivadas de um conhecimento coletivo, onde não é possível identificar a autoria”. Sei disso, e não sou uma especialista em arte para refutar esse argumento, embora possa recomendar a leitura de Els Lagrou, antropóloga com formação em arte que pesquisou junto aos Huni Kui, e ao tratar dos kene propõe uma resposta argumentativa muito pertinente a respeito da possibilidade de individualizar a autoria de peças derivadas de um saber coletivo.

Ocorre, no entanto, que há a necessidade de fazer ainda mais uma observação sobre o tema do dito artesanato indígena, e é justo o que me angustia mais seriamente: o que me parece realmente preocupante é a amplitude da classificação ‘artesanato indígena’, que abarca uma diversidade de coisas, desde uma flecha a um Manto – O Manto – Tupinambá; ou desde uma panelinha de cerâmica zoomorfa Wauja a uma de suas máscaras Apapaatai. E deixando de considerar que, nos dois casos, não se está falando ‘só’ dos objetos em si mesmos, mas daquilo que eles representam em termos de valor e cultura para esses povos. E muitas vezes  deixa de levar em consideração que não raro alguns desses povos sequer possuem condições materiais de continuarem a produzir algumas dessas peças, e adivinha só de quem é a culpa!!  É o caso, por exemplo, do povo Xetá do Paraná, historicamente o de mais recente ‘contato’, e que, tão logo ‘contatado’, passou a seguir por um processo que quase conseguiu levá-los ao extermínio total – Desde uma primeira aproximação realizada por um pequeno grupo Xetá em 1954 que, cansados de fugir da expansão dos colonos sobre seus territórios ancestrais, que ‘por azar’ ficam em uma das regiões de maior interesse agrícola do país, os aldeamentos Xetá foram mais tarde oficialmente localizados por uma expedição chefiada por Loureiro Fernandes O que se segue a seguir em sua história é um espetáculo de atrocidades, que envolvem a entrega de ‘presentes’ tais como arroz envenenado, roupas contaminadas de varíola e rapto de crianças, e ainda um veto oficial do então governador do Paraná Moysés Lion à possibilidade de demarcação de terras, sob a alegação de que ‘o Paraná não dispunha de terras para dar para índios’.

Tudo isso somado levou a uma redução populacional atroz: dos cerca de 400 indivíduos que foram reportados no início de 1950, em poucos anos restavam apenas 08; atualmente o censo oficial da SESAI de 2014 atesta a existência de 69. Diante dessa violência, obviamente muito quase se perdeu, inclusive a língua.  A despeito de terem até hoje resistido a essa violência, esse povo que até hoje não tem ainda uma terra demarcada, e algumas das peças únicas que compunham sua cultura material só podem ser vistas nos museus. Uma delas, por exemplo, é o Tembetá, um adorno labial feito de âmbar (resina solidificada).

Havia um Tembetá desses no MAE-UFPR, aonde trabalhei durante alguns anos. Nunca tive dúvidas sobre o valor incalculável daquela peça, tanto em valores do mundo raion, quanto em valores do mundo Xetá, tão duramente ameaçado e atacado. Trata-se em si mesmo de uma peça pequena. Cerca de cinco centímetros correspondentes à base de madeira que é colocada na boca, e mais a haste de âmbar, que deve medir outros cinco centímetros, e que fica para fora da boca.  Cinco centímetros e maior que o mundo inteiro. Ao lado do Tembetá, na mesma estante, havia uma figura feita de cera de abelha, representando Moiëu, que na cultura Xetá seria uma representação de uma ‘divindade’ criadora do universo.  As peças de cera produzidas pelos Xetá eram feitas para retratar animais que compunham o seu mundo, e para ensinar sobre esse mundo às crianças. O Moiëu é fisicamente também uma figura pequena: talvez no máximo 10 cm… e maior que o universo, por seu poder de criá-lo. E, no entanto, isso, para o mundo dos brancos é lido como ‘artesanato’!  A vida de um povo, a sua cultura imaterial, a sua língua, a sua noção de estética, as suas técnicas únicas que possuíam na produção destes e de outras peças, as histórias de como o Universo e eles próprios foram criados, tudo isso… e mais o fato de que hoje essas peças só existem em contextos museais… e isso tudo é mesmo ‘só’ artesanato?

E isso tudo que eu digo, se presta também a chamar a atenção sobre um detalhe que considero crucial nessa discussão:  Existe, como comentei no início do texto, todo um conjunto legal que se propõe a prevenir o uso do mercado de arte para a lavagem de dinheiro, assim como também pretende proteger o patrimônio cultural brasileiro de ser indiscriminadamente levado para fora do país. Há muito tempo que existem, inclusive, iniciativas no sentido de trazer de volta para o Brasil obras que foram inadvertidamente levadas para o exterior, sobretudo aquelas que foram produzidas no período do Brasil Colônia e do Império, mas enquanto isso, quando se insiste em achatar toda a produção de arte do cotidiano indígena como artesanato, afastando dessas peças as proteções existentes com relação à arte dita clássica, abre-se a porteira para que essas peças sejam indiscriminadamente levadas para o exterior e deixadas lá.

Em meio a essas peças todas estão Cabeças-troféu Munduruku, e, certamente o mais extremo de todos os exemplos, O Manto Tupinambá. Qualquer pessoa que tenha tido o privilégio –raro, porque essa peça se encontra desde 1644 na Dinamarca e ela só esteve no Brasil durante alguns poucos dias, por ocasião da Mostra do Redescobrimento – de passar alguns minutos diante do estande vedado onde ele é exposto há de ser capaz de compreender sobre o que me refiro. E não falo apenas do fato de se tratar de uma peça de quase dois metros, produzido de milhares de penas vermelhas de guará. Falo do poder espantoso que essa peça evoca, de algo de força e poder que está para além das palavras. De um arrepio que percorre a pele ao contemplá-lo, tendo em mente o que ele é, e quem o podia portar, e das lágrimas que vêm aos olhos quando se olha para ele com olhos de quem pertence a um dos muitos povos que por 517 anos vem sendo espoliado de tudo que é. Da revolta que dá ao saber que não existe, até hoje, nenhum pedido oficial de devolução dessa peça ao Brasil, muito menos aos Tupinambá. E da tristeza que dá de ouvir de um Xetá que ele considera o museu a única casa que ele tem, porque lá no museu, as coisas deles, e eles, ainda existem!

Dia 21 de março – ontem – é dia mundial de luta contra o racismo. Seria bastante salutar que essa luta pudesse englobar o afastamento de certas visões racistas acerca dos saberes, dentre eles, as artes, não é mesmo?

Epílogo:

Por fim, gostaria de retornar à frase que usei muito acima: ‘nem sempre os indígenas produzem peças exclusivamente para fins meramente contemplativos’. Bem, a propósito disso, eu gostaria de indicar às pessoas que visitassem as coleções de arqueologia, onde, por exemplo, podemos encontrar os famosos ‘passarinhos’, feitos de ossos de animais marinhos, ou pedras. Bom, ao contemplá-los, imagine o tempo que esse artista levou para esculpir em pedra uma figura zoomorta, fazendo isso sem nenhum instrumento moderno. Semanas, meses, todos os dias, há milhares de anos. E ele fez isso para que mesmo, a não ser pelo simples intuito de produzir algo belo de se admirar?

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* Este não foi necessariamente um texto jurídico, mas para quem se interessar por entender melhor o assunto:
– O IPHAN foi criado pelo Decreto-Lei nº 25, de 13/01/1937. Neste ano de 2017, esta instituição comemora seus 80 anos.
–  Em 1998 foi promulgada a Lei 9613, que trata do crime de ‘lavagem de dinheiro’, e cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF. Mediante essa nova legislação, o IPHAN passou a ser identificado como ente regulador do mercado, mas ainda faltava uma regulamentação específica, tanto acerca do cadastro, quanto sobre a fiscalização do setor.
– Esta regulamentação veio através da Instrução Normativa nº 01/2007, instituiu-se o Cadastro Especial dos Negociantes de Antiguidades, de Obras de Arte de Qualquer Natureza, de Manuscritos e Livros Antigos ou Raros, posteriormente atualizada pela Instrução Normativa 01/2017 (No Iphan existe uma piada interna sobre o fato de que todas as Instruções Normativas editadas desde 1937 são sempre ‘nº 01’…).  Quanto ao procedimento de fiscalização, este é regulado pela Portaria nº 396/2016, e 80/2017.
(Todas essas legislações, bem como alguns textos explicativos mais sobre o tema podem ser consultados no link: http://portal.iphan.gov.br/cnart )

Comments (2)

  1. Olá, Paula Viana, agradeço o seu retorno positivo ao meu texto. Fico feliz que ele tenha contribuído para a reflexão. É com esse objetivo que eu (Raial Orotu Puri), Jairo Lima, Dedê Maia e outros colaboradores do blog Crônicas Indigenistas escrevemos: mostrar um pouco da beleza e dos desafios do mundo indígena, fazer pensar sobre esse mundo, sobre aquilo que nos move, que nos toca, que nos aflige, e nos eleva, e nos vitima.
    Se tiver vontade, faça-nos uma visita, leia nossos textos, e traga esses comentários tão instigadores. O endereço: http://cronicasindigenistas.blogspot.com.br/
    Abraço e obrigada!
    Raial Orotu Puri (Andréia)

  2. Ao pontuar nesta crônica sobre as diferenças ao se usar noções como artesanato e/ou arte indígena, nos diz algo salutar, posicionar-se politicamente tem haver sim com os termos, mais especificamente, com os conceitos que a gente carrega nesse embate. E saber o que levar é porque levar pode dizer muito de como ou a melhor maneira de proteger. Pois, artesanato só faz sentido com a existência da indústria e, além disso, são classificações carregadas de valor. O que é melhor? Tudo isto, continua dizendo como a gente está organizado, da nossa economia-mundo. Se há mantos tupinambá no exterior, há também cérebros, ossos e escalpos. Itens levados mais recentemente dos povos ditos primitivos, que ainda estão lá. Pontualmente, algo retorna aqui e ali, bem timidamente. Proteger, salvaguardar e guardar tem que estar ligado ao conhecimento e a beleza contida em cada arte(fato) feito-dado. Obrigada pelo texto.

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