Guarani e Kaiowá manifestam-se em Dourados e exigem do presidente da Funai a demarcação de suas terras

Por Tiago Miotto, do Cimi

Cerca de 200 indígenas Guarani e Kaiowá manifestaram-se nesta terça (28) em frente à sede do Ministério Público Federal (MPF) de Dourados, no Mato Grosso do Sul, durante reunião do presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Antônio Costa, com procuradores federais e lideranças indígenas para discutir a demarcação das terras Guarani e Kaiowá no estado.

Conselheiros da Aty Guasu, a Grande Assembleia Guarani e Kaiowá, participaram da reunião e entregaram uma carta ao presidente da Funai, na qual exigem que o Estado “pare o extermínio que pratica contra nosso povo através da negligência” e afirmam que “o movimento pela reconquista de nossos Tekoha não é negociável e nem poderá ser usado como condição para que o Estado cumpra com as obrigações que são constitucionais”.

O presidente da Funai foi a Dourados para discutir o Termo de Ajustamento de Condutas (TAC) assinado entre a Funai e o MPF no ano de 2007. O acordo, tentativa de superar a morosidade nas demarcações no Mato Grosso do Sul e de diminuir a crescente violência contra os indígenas, determinava que diversas terras tivessem seus relatórios publicados até o ano de 2009, sob pena de multa de mil reais por dia de atraso.

Além dos Guarani e Kaiowá e dos estudantes indígenas da Universidade Federal da Grande Dourados, apoiaram a manifestação o movimento estudantil local, movimentos sindicais e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

Em dez anos, apenas três das terras indígenas previstas pelo TAC tiveram o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID) – primeira etapa do processo de demarcação – concluído pela Funai, que já acumula uma multa milionária em função do descumprimento do termo. Em junho de 2014, a multa acumulada já era de R$ 1,716 milhão, segundo o MPF, e segue contando.

A situação se agrava porque, como indicam os Guarani e Kaiowá na carta, muitas terras indígenas e muitos tekoha – lugar onde se é – ficaram de fora do TAC, que previa originalmente a demarcação de 39 tekoha reunidos em sete terras indígenas nomeadas conforme as bacias dos rios da região – chamadas, em Guarani, de pegua.

Uma das demarcações que saíram neste período – a da Terra Indígena (TI) Ypo’i/Triunfo, publicada em 19 de abril de 2016 – é um desmembramento da proposta dos pegua, o que significa que outros tekoha previstos pelo TAC para a mesma bacia desta TI continuam sem providência.

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Vídeo: Rafael de Abreu

Marcas da violência

Nas últimas páginas do TAC assinado em 2007, constam as assinaturas – e impressões digitais, no caso dos não letrados – das autoridades e lideranças que participaram do fechamento do acordo. Dentre elas, estão os nomes de Nísio Gomes e Ambrósio Vilhalva, duas das diversas lideranças Guarani e Kaiowá que foram assassinadas, desde o estabelecimento do termo, sem ver suas terras demarcadas.

“Queremos lembrar que desde que o TAC foi assinado, e pelo motivo dele nunca ter sido cumprido, mais de dez lideranças foram assassinadas”, destaca a carta da Aty Guasu. “Essas pessoas não estão mais aqui para ver suas terras serem demarcadas e nem poderão pisar, dançar, cantar e rezar sobre elas no futuro”.

Os Guarani e Kaiowá exigiram do MPF a cobrança da multa da Funai e dos responsáveis diretos pela morosidade e, se necessário, a reversão do valor da multa para a contratação de antropólogos com a finalidade de garantir a conclusão das demarcações paralisadas.

Os indígenas também solicitaram ao MPF que “o Ministro da Justiça e o presidente da Funai sejam processados pelos crimes de negligência contra nosso povo”.

Além da TI Ypo’i/Triunfo, outras duas terras do TAC tiveram seu relatório publicado desde 2007: a TI Iguatemipegua I, em 2013, e a TI Dourados-Amambaipegua I, em 2016, dentro de cujos limites ocorreu o massacre de Caarapó, em junho do ano passado, vitimando o indígena Clodiodi Aquileu de Souza.

Além das terras contempladas pelo TAC, apenas uma outra, Panambi/Lagoa Rica, teve seu RCID publicado neste período, no ano de em 2012. Até hoje, nenhuma destas teve as contestações respondidas pela Funai, o que também foi cobrado pelos indígenas.

Retorno em maio

Como resultado da reunião, o presidente da Funai, Antônio Costa, firmou o compromisso de retornar a Dourados na segunda quinzena de maio, trazendo um diagnóstico técnico das demarcações de terras Guarani e Kaiowá no Mato Grosso do Sul, com a finalidade de retomar os trabalhos paralisados, inclusive os não abarcados pelo TAC original.

Em depoimento à mídia local, o presidente da autarquia afirmou que foram firmados compromissos quanto à “criação de grupos de trabalho e de uma força-tarefa para não deixar mais parado que precisa ser feito no Estado com relação as terras Guarani e Kaiowá”.

Os indígenas também cobraram o presidente da Funai quanto ao recente corte de cargos no órgão, que teve 87 cargos comissionados de Direção e Assessoramento Superiores (DAS) extintos por decreto do governo federal publicado na última sexta (24).

Costa respondeu aos indígenas que a Funai espera reverter a situação com a convocação de parte dos 200 servidores técnicos aprovados em concurso realizado no ano passado.

Sem terra, a fome

O corte de cargos ocorreu poucas semanas depois do ministro da Justiça, o ruralista Osmar Serraglio (PMDB-PR), ter afirmado que “terra não enche barriga” e que os indígenas deviam deixar de lado a luta pela demarcação de seus territórios.

A afirmação do ministro ruralista contradiz um estudo técnico realizado pela Fian Brasil em parceria com o Cimi, em 2016, e a posição de especialistas do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), órgão ligado à Presidência da República, que evidenciam a relação direta entre a morosidade na demarcação de terras e a fome entre os Guarani e Kaiowá, agravada na enorme quantidade de acampamentos em que muitos dos indígenas vivem.

Os três tekoha analisados no estudo da Fian com o Cimi – Guaiviry, Ypo’i e Kurusu Ambá – foram contemplados pelo TAC de 2007 e ainda aguardam a demarcação, com os indígenas vivendo em pequenas áreas de acampamento. Nos três, foi verificado um índice de insegurança alimentar e nutricional de 100%, com quase metade das crianças menores de cinco anos sofrendo de desnutrição crônica.

“Nossa luta é uma luta de todos: Nhanderu, Nhandecy, Anciões, Homens, Mulheres, crianças… O Estado deve ter pressa de parar o extermínio que pratica contra nosso povo através da negligência. Até lá continuaremos morrendo se for preciso, na luta pelos nossos Tekoha”, afirma o documento da Aty Guasu.

***

Leia a íntegra da carta da Aty Guasu:

CARTA DO GRANDE CONSELHO DA ATY GUASU GUARANI E KAIOWA SOBRE NOSSA POSIÇÃO EM RELAÇÃO AO TAC\2007 E O COMPROMISSO DO ESTADO COM A DEMARCAÇÃO DE NOSSAS TERRAS

Senhor Procurador da República;

Senhor Presidente da Funai;

Nós, do Grande Conselho Guarani e Kaiowa, escrevemos esta carta para que os senhores saibam qual é nossa posição definitiva em relação a reconquista de nossos Tekoha e sobre o compromisso já assumido pelo Estado brasileiro com o reconhecimento e a demarcação de nossos territórios.

Em primeiro lugar, afirmamos aqui que o movimento pela reconquista de nossos Tekoha NÃO É NEGOCIAVEL e nem poderá ser usado como condição para que o Estado cumpra com as obrigações que são constitucionais e ja foram inclusive reconhecidas pela FUNAI no TAC de 2007. Nossa luta é uma luta de todos: Nhanderu, Nhandecy, Anciões, Homens, Mulheres, crianças… O Estado deve ter pressa de parar o esterminio que pratica contra nosso povo através da negligencia. Até lá continuaremos morrendo se for preciso, na luta pelos nossos Tekoha.

Ja estamos cansados de reuniões com a FUNAI. Os termos do TAC estão bem claros e a FUNAI ja sabe o que fazer. Desde que o TAC foi assinado ja fizemos mais de 100 reuniões com inumeros presidentes e nada andou. O que dizemos é que não abriremos mão do que ja foi acordado e esperamos que a FUNAI cumpra o prometido.

Queremos lembrar que desde que o TAC foi assinado, e pelo motivo dele nunca ter sido cumprido, mais de dez lideranças foram assassinadas. Essas pessoas não estão mais aqui para ver suas terras serem demarcadas e nem poderão pisar, dançar, cantar e rezar sobre elas no futuro. Em memória delas citamos seus nomes: Xurite Lopes, Ortiz Lopes, Oswaldo Lopes, Rolindo Vera, Genivaldo Vera, Teodoro Ricarte, Nisio Gomes, Denilson Barbosa, Clodiodi Aquileu, Simião Vilhalva, Ambrosio Vilhalva.

Veja senhor presidente da FUNAI que entre elas estão Nísio e Ambrósio que assinaram o TAC em 2007 e que tiveram esperança de que o Estado garantiria seus direitos antes de serem assassinados. Portanto não estamos lutando por dinheiro, mas sim pelo direito a vida de nosso povo, nada mais.

A FUNAI tinha o prazo de até 2009 identificar e delimitar os territórios previstos no TAC. Não o fez e dezenas de acampamentos ainda esperam em situação desumana por providencias do órgão.

A FUNAI tinha o prazo de até 2010 para repassar ao Ministro da Justiça os relatórios destas terras para que fossem publicadas. Tambem não o fez. Lagoa Rica espera que sejam respondidas as contestações desde 2012. Pyellito\Mbaraka’i (Iguatemipegua I) desde 2013. Ypo’i e Dourados-Amambai Pegua I tambem ja estão atrasados pois foram publicadas no ano passado e sabemos que o prazo para que analise das contestações é de 03 meses após a publicação.

Se o senhor, presidente da FUNAI, olhar as noticias verá que esta demora causou e causa muita dor para as familias destas áreas, inclusive situações de Tortura. Enquanto a FUNAI espera confortável os juizes entram com ações para suspender a publicação de nossas áreas aplicando sobre elas a tese criminosa do Marco Temporal.

Mencionamos aqui que o TAC ainda nõ consegue sanar todos os problemas que nosso povo tem renfrentado e que muitas terras ficaram desobertas como é o caso de Apyka’i (que inclusive sofreu despejo) Laranjal, Cerro’i entre outros. Exigimos que estas Terras sejam contempladas e somadas ao acordo, sendo identificadas pela FUNAI para que as familias de lá parem de sofrer na beira das rodovias e sem conseguir acesso a politicas básicas.

Ainda manifestamos nossa indignação e exigimos explicação com a suspensão do DouradosPegua. Desde que foi suspenso e a FUNAI abandonou os estudos muitas comunidades sofreram despejo e a situação destas Tekoha ficaram cada vez mkais precárias. Exigimos que seja imediatamente retomado a identificação destes Tekoha.

Frente a tudo isso, o que a FUNAI espera ? O que mais quer negociar ? Quantas vidas mais de nossos lideres querem para cumprir com o que necessitam.

Nós como Conselheiros da Aty Guasu não podemos mais ter esta paciencia e exigimos que o presidente da FUNAI seja processado por prevaricação pela não publicação dos relatórios de nossos Tekoha.

Queremos tambem a imediata remoção de OSMAR SERRAGLIO do cargo de Ministro da Justiça, pois quem se posta como relator do principal instrumento de desmonte de nossos direitos, a PEC 215 não pode conduzir um órgão tão importante para a garantia dos direitos originários. Independente de quem ocupar tal cargo, queremos tambem que o Ministro da Justiça seja igualmente processado por não Publicação de nossas portarias declaratórias.

Solicitamos ao Procurador Marco Antonio e a todo o MPF, que ajude nosso povo a ter seus direitos garantidos e que cobre nos termos do TAC e na justiça que o mesmo seja cumprido como escrevemos abaixo:

Queremos:

  • Que o MPF use todos os seus esforços e possibilidades para cobrar toda a multa que a FUNAI deve a nosso povo desde 2007 e que este recurso seja revertido para a demarcação de nossos territórios, inclusive para contratar os antropologos se for preciso.
  • Que o MPF cobre multas pessoais dos responsaveis diretos pelo cumprimento destes termos, no caso o presidente da FUNAI e os chefes de setores, pois estamos sem esperança que apenas multando o orgão conseguiremos algum avanço de nossos direitos.
  • Que a FUNAI recomesse imediatamente a identificação de todos os territórios previstos no TAC de 2007 e que finalise imediatamente as contestações das Tekoha ja identificadas que continuam esperando sem terem sido repassadas para o Ministro da Justiça.
  • Que DouradosPegua seja imediatamente reestabelecido pela FUNAI.
  • Que as áreas que ficaram fora do TAC em 2007 sejam inclusas imediatamente e que sejam identificadas.
  • Que o Ministro da Justiça e o presidente da FUNAI sejam processados pelos crimes de negligencia contra nosso povo, em relação a não publicação das Portarias Declaratórias e dos Relatórios Circustanciados respectivamente.

28 de março de 2017

Do lado de fora, indígenas cercam presidente da Funai em Dourados. Foto: Egon Heck/Cimi

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