O Brasil hoje é um grande desvio de finalidade

Por Marcelo Semer, no Justificando

Passado pouco mais de um ano da fatídica votação que autorizou a abertura do processo de impeachment, não há quem consiga sustentar que uma presidenta da República, eleita pelo voto popular, foi deposta pela prática de pedaladas fiscais. Nem corrupção, nem conjunto da obra. Dilma saiu para que o caminho ficasse aberto à desconstrução do modelo democrático.

O dispositivo desconstituinte foi rapidamente colocado em prática: em um momento agudo de turbulência política e descrédito dos representantes eleitos, o Congresso conseguiu aprovar uma proposta de emenda constitucional que, por intermédio do congelamento de gastos, inabilita o estado social, e está prestes a romper dois grandes cânones dessa estrutura: a previdência pública e a legislação trabalhista.

Tudo isso era perceptível desde os primeiros movimentos do jogo político. Não faltaram alertas. Brasil em Fúria, livro dos colunistas desta ContraCorrentes, lançado quinta-feira última, tem diversos avisos ao longo do ano.

Teóricos do direito administrativo poderiam muito bem caracterizar a deposição da presidenta como um desvio de finalidade: “quando o agente pratica o ato, visando fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência (art. 2º, §único, Lei 4717/65)”.

Para uns, estancar a sangria que os ameaçava; para outros, abrir a janela de oportunidades que um governo não eleito pelo voto popular podia ensejar. Ao fim das contas, peças foram mudadas, a corrupção se mostrou mais evidente, e um pequeno grande detalhe político-eleitoral marcou o Planalto: o projeto que perdeu a eleição presidencial passou a governar o país.

Segundo pesquisas recentes, 64% dos brasileiros acreditam que a reforma trabalhista vem para beneficiar os empresários; 71% é contra a reforma da previdência. Pouco importa, ambas as reformas correm a pleno vapor, praticamente sem oposição parlamentar, e com um enorme incentivo da mídia que instrumentaliza a desinformação como mecanismo de convencimento.

Uma reforma previdenciária que penaliza os mais humildes, obrigados a iniciar o trabalho mais cedo, e que se pauta, sobretudo, pela agenda das agências de previdência privada. Uma reforma trabalhista que abriu mão de pudores e escrúpulos, para se impor como o Código do Patrão. Tudo rapidamente montado na pinguela institucional que se abriu com o governo mais impopular da história, mas suportado pelas instituições financeiras, pelos capitães da indústria (aqueles que levaram muitos a cultuar um pato) e, sobretudo, pela grande mídia, cúmplice das mesmas pretensões empresariais dispostos diuturnamente como “interesse público”.

Não é possível diferenciar os departamentos institucionais da Odebrecht comprando licitações ou medidas provisórias, pautando decisões públicas com base em interesses empresariais, do que ocorre hoje no Congresso, à revelia e com a corrupção da vontade popular. Os mesmos agentes estão reescrevendo leis à sua imagem e semelhança. Uma democracia em que se pratica o ato, visado a fim diverso daquele previsto.

E como as instituições estão, como se costuma dizer, funcionando normalmente, o Supremo Tribunal Federal aproveita para fazer a sua parte, reescrevendo a Constituição, com políticas no lugar dos princípios. Seria ruim se fosse apenas mais um esqueçam o que eu escrevi –mas o texto da nossa Carta Magna foi escrita por representantes do povo, que bem compreenderam as necessidades do Estado e da sociedade ao sair da ditadura.

É verdade que muitos se arrependeram desse texto depois, mas Constituição não é uma noitada que se pode apagar facilmente da memória.

Na Corte, no último ato, o ministro Luiz Edson Fachin utilizou norma regimental para remeter o julgamento de um Habeas Corpus ao Plenário, justamente quando sua posição restara – e restaria de novo – derrotada perante a Turma que funciona como juiz natural do processo.

Pode até ser que se venha a dizer que a valorização do plenário engrandece o tribunal ou, inclusive, que aumenta a repartição das responsabilidades. Mas no meio desse contexto e logo depois da crônica dos votos vencidos anunciados, quem não se sentirá autorizado a questionar se não está aí um perfeito exemplo de desvio de finalidade?

Marcelo Semer é Juiz de Direito em SP e membro da Associação Juízes para Democracia. Junto a Rubens Casara, Márcio Sotelo Felippe, Patrick Mariano e Giane Ambrósio Álvares participa da coluna Contra Correntes, que escreve todo sábado para o Justificando.

Destaque: Protesto da CNBB em frente ao Congresso contra as doações empresariais em campanhas políticas.

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