Cândido Grzybowski, do Ibase
A violência é uma possibilidade no convívio humano. Ela pode ser contida pela repressão e força do Estado, segundo direitos e responsabilidades definidos em lei. A paz social, porém, depende de uma cultura cidadã impregnada no tecido social, baseada em sólidos princípios e valores éticos de reconhecimento mútuo dos mesmos direitos. Sem tal cimento unificador da sociedade, de opostos e diferentes em permanente disputa, as rupturas, a violência descontrolada, as mortes, as chacinas e até as guerras civis podem prevalecer.
O Brasil carrega em seu DNA uma cultura de violência profundamente enraizada devido a heranças da conquista, colonização, extermínio de povos indígenas, escravidão, destruição do patrimônio natural. O Estado entre nós nasceu antes e acima da sociedade e da economia, o forte militar do colonizador antes da cidade, as capitanias e as sesmarias como estratégia de conquista, a casa grande e a senzala como base da sociedade, os bandeirantes e seus jagunços como forma de expansão territorial, os coronéis montados no latifúndio e seus exércitos particulares de capangas, os grileiros armados precursores do latifúndio, as milícias e os comandos armados nas periferias e favelas das grandes cidades. Com toda esta carga machista e racista, além de fortemente armada e assentada nos privilégios dos “donos de gado e gente”, não é de estranhar que chegamos tão tardiamente aos primeiros ensaios de reconhecimento de cidadania e a começar edificar as leis e instituições democráticas.
Nossa melhor Constituição iria fazer apenas 30 anos em 2018. Ela continha um embrião de democracia social, apontando um rumo de combate às enormes injustiças e desigualdades. Mesmo assim, os “donos” de sempre voltaram a mostrar sua verdadeira truculência de classe com um novo golpe na democracia, através do artifício do impeachment. Seu ataque central é nas conquistas democráticas da cidadania brasileira. Agora, com o toma lá e dá cá da política subjugada a interesses privados, estão desmontando os direitos constitucionais que, ao menos, apontavam uma intencionalidade de construir um Brasil mais cidadão e justo. A violência nas relações sociais, estruturas e processos – para voltar ao meu ponto de partida – continuou presente entre nós, mas contida de algum modo e, sobretudo, havia se tornado uma questão a enfrentar politicamente. Agora, a violência volta a se expandir quase de forma incontida, com brutalidade, mortalidade e intensidade alarmantes. Claro, a violência sempre imperou em áreas de favelas e periferias, como nos conflitos com indígenas e sem terra. Nos presídios, também. Mas agora, a escalada da violência está virando regra do cotidiano em toda parte. Parece até que o desmonte de direitos do governo golpista está sendo um sinal de “liberou geral”. Para os que se sentiam atacados pela democracia em seus privilégios de domínio territorial e setorial, o recurso à violência armada, na certeza de impunidade, voltou com força total. A prática “coercitiva” do juiz Moro mostra que a democracia pode ser violentada. Estamos em marcha forçada para a prática da coerção de quem tem poder. Até onde e até quando?
Não tenho dados e análises consolidadas sobre a violência. Estou escrevendo a partir da percepção que estamos em fase de significativas rupturas no tecido social e nos imaginários. Os valores de solidariedade e convívio social estão sendo corroídos pelo endêmico câncer da violência de uma sociedade extremamente desigual. O aumento de rebeliões, chacinas e tiroteios, em diferentes situações, é o mais claro sinal de que entramos numa democracia sem substância, beirando o fascismo. Tudo é atribuído à crise fiscal que limita os recursos para segurança. Será mesmo? Penso que, no esforço de criar o tal clima favorável aos investimentos, o Governo Temer está criando o clima favorável à barbárie entre nós.
Com uma orientação política de priorizar os interesses privados e o livre mercado dos investidores, antes e acima de direitos iguais de cidadania, o governo deu um sinal para forças ocultas darem a cara. Fantasmas saíram do baú e estão virando gente real a pregar valores autoritários, racistas, machistas, homofóbicos, com defesa inclusive de fazer justiça pelas próprias mãos. O que alarma é o clima de intolerância com os outros, os pobres e excluídos, clima de desprezo da política, dos direitos e da democracia. Onde vamos parar?
Rupturas e destruições políticas só se combatem com reconstrução democrática. O problema são as perdas. Perdas de vida, perdas de princípios e valores e perdas de direitos. A ruptura e a destruição que as acompanham são um ato, a reconstrução um processo. Sobre isto tenho pensado muito por aí, nas silenciosas trincheiras da cidadania. O que precisamos fazer mais e melhor do que estamos fazendo? Vejo que a resistência ao desmonte praticado pelo governo começa a entrar em sintonia com aquele sentimento difuso de mal estar no seio da sociedade. Mas como transformar isto em movimento irresistível num contexto tão esgarçado social e politicamente como vivemos? Parece que uma agenda fundamental seja a reforma da política, ou melhor, o resgate da política como bem público fundamental para enfrentar os grandes problemas e desafios na nossa frente. Isto passa por profunda mudança no modo de fazer política democrática (partidos, eleições, democracia direta e democracia representativa, etc), na remodelagem das instituições estatais, sem esquecer a necessidade de transformação democrática do antidemocrático poder judiciário, e na desprivatização do soft power da mídia e do debate público. O problema é como fazer isto sem uma Constituinte soberana. Cadê o movimento irresistível para tanto? Bem, tudo tem um começo…