Patricia Fachin – IHU On-Line
Ao analisar os dados do Imposto de Renda brasileiro num período que compreende quase um século, entre 1926 e 2013, em sua tese de doutorado intitulada A desigualdade vista do topo: a concentração de renda entre os ricos no Brasil, 1926-2013 (2016), Pedro Ferreira de Souza, doutor em Sociologia, constatou que a concentração de renda no topo combinou estabilidade e mudança. “Por um lado, não houve qualquer tendência secular de aumento ou redução, com a fração do 1% mais rico oscilando entre 20% e 25% durante boa parte do tempo; por outro lado, essa estabilidade não significou pura estagnação, pois houve idas e vindas, por vezes abruptas, que acompanharam os grandes ciclos políticos do Brasil”, diz à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por e-mail.
Segundo ele, os dados demonstram que nos anos 1950 “entramos em uma trajetória moderada de redução da concentração no topo”, mas ela foi “interrompida e revertida pelo golpe de 1964”. Nos últimos anos, resume, “a estabilidade macroeconômica contribuiu para certa redução na concentração no topo, mas desde a virada do século pouca coisa mudou. O quadro atual é sobretudo de estabilidade em um patamar muito elevado — as comparações internacionais mostram o Brasil sempre entre os mais desiguais”.
Além de uma série de fatores históricos que ajudam a explicar as desigualdades no país, Souza frisa que “há uma clara vinculação da desigualdade com a nossa dinâmica política e com a estrutura do Estado brasileiro. De novo, o melhor exemplo remete ao golpe militar de 1964: o programa adotado pela ditadura explicitamente almejava reduzir a participação dos salários na renda nacional, e foram feitas reformas abrangentes para atingir esse objetivo”.
Entre as medidas que podem ser adotadas para reduzir as desigualdades, o sociólogo defende o aumento do escopo e da progressividade do imposto sobre a renda e o patrimônio. Além disso, sugere, seria preciso “limitar o acesso de elites econômicas a benesses concedidas pelo Estado também, assim como combater o corporativismo da própria burocracia pública, que contém muitos grupos que ocupam o topo da distribuição de renda. Por outro lado, o gasto social deve ser bem direcionado. Até hoje não conseguimos lidar com carências históricas em termos de saneamento básico e educação”. E adverte: “O que vemos recorrentemente é o processo de acomodação: benefícios visíveis que chegam às massas, mas que são compensados por gastos às vezes ainda maiores que favorecem as elites. Seja por opção sincera ou por restrições políticas, nenhum dos nossos governantes conseguiu fugir muito disso”. A própria austeridade, assinala, “pode e deve ser discutida; há, digamos, austeridades e austeridades. A despeito de todos os nossos problemas fiscais, lemos diariamente sobre perdão de dívidas, refinanciamentos e afins para grandes grupos empresariais, igrejas e outros lobbies poderosos”.
Pedro Ferreira de Souza é graduado em Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio, mestre em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro e doutor na mesma área pela Universidade de Brasília – UnB. Atualmente é pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – A quais resultados e constatações você chegou ao analisar os dados do Imposto de Renda entre 1926 e 2013, na sua tese de doutorado? A partir da pesquisa, o que foi possível vislumbrar sobre a concentração de renda no Brasil no período analisado?
Pedro Ferreira de Souza – O principal resultado diz respeito à concentração de renda no topo, que combinou estabilidade e mudança: por um lado, não houve qualquer tendência secular de aumento ou redução, com a fração do 1% mais rico oscilando entre 20% e 25% durante boa parte do tempo; por outro lado, essa estabilidade não significou pura estagnação, pois houve idas e vindas, por vezes abruptas, que acompanharam os grandes ciclos políticos do Brasil.
Para citar um exemplo, nos anos 1950 entramos em uma trajetória moderada de redução da concentração no topo, que foi, infelizmente, interrompida e revertida pelo golpe de 1964. Com efeito, nos primeiros anos da ditadura militar a concentração no topo voltou a crescer rapidamente. Outros períodos cruciais de nossa turbulenta história política também coincidiram com inflexões importantes.
No período mais recente, tudo indica que a estabilidade macroeconômica contribuiu para certa redução na concentração no topo, mas, desde a virada do século, pouca coisa mudou. O quadro atual é sobretudo de estabilidade em um patamar muito elevado — as comparações internacionais mostram o Brasil sempre entre os mais desiguais.
De modo geral, os dados brasileiros confirmam alguns achados internacionais: em tempos normais, é muito difícil promover a redistribuição a partir do topo, que tende a mudar só em momentos críticos, como rupturas institucionais, catástrofes e afins. Empiricamente, não há casos bem conhecidos de países que tenham partido de um grau tão alto de concentração de renda e avançado gradualmente, de forma tranquila, até percentuais semelhantes aos vistos hoje em boa parte da Europa. A própria Europa só remodelou sua distribuição de renda, de forma muito traumática, no período entre a Primeira e Segunda Guerras Mundiais.
IHU On-Line – Foi possível identificar se em alguns períodos ao longo desses 90 anos a concentração de renda foi maior ou menor no Brasil? Ainda nesse sentido, o que foi possível constatar em relação tanto às desigualdades quanto ao debate sobre essa questão em períodos específicos, como antes de 1930, depois de 1930 até 1945, durante o governo Getúlio Vargas, e nos governos que o sucederam, até 2013?
Pedro Ferreira de Souza – Grosso modo, a concentração da renda nas mãos do 1% mais rico teve dois picos, durante a Segunda Guerra Mundial e na segunda metade dos anos 1980.
O primeiro caso é mais fácil de entender: estávamos em pleno período ditatorial, com o Estado Novo, a oposição havia sido desmantelada, havia imenso controle estatal sobre sindicatos e perseguição a militantes de esquerda. Com a eclosão da guerra, o caminho de desenvolvimento escolhido alinhou-se ainda mais com o empresariado. Para aproveitar as oportunidades temporárias trazidas pelo conflito, foram tomadas medidas como a suspensão de direitos trabalhistas em “indústrias de guerra”, entre outras.
O segundo caso é um pouco mais complicado, pois a aceleração da inflação torna inclusive a mensuração da renda mais difícil. É provável que parte do aumento da desigualdade no período seja, portanto, artificial. Ainda assim, também foi um período de maior concentração no topo, e a própria escalada da inflação também pode ser interpretada em termos dos conflitos distributivos que vieram à tona com a redemocratização.
Ao que tudo indica, o período de menor desigualdade foi no final dos anos 1950 e início dos anos 1960. Infelizmente, como mencionei, o processo foi abortado e revertido depois do golpe militar de 1964. Hoje estamos mais ou menos na nossa média histórica.
IHU On-Line – Quais são os fenômenos que explicam as desigualdades no Brasil? Ainda sobre essa questão, que conexões estabelece entre o comportamento das desigualdades no país e a dinâmica política nacional?
Pedro Ferreira de Souza – Não é possível culpar um único fator pela alta desigualdade brasileira. Como quase sempre ocorre em ciências sociais, nossa distribuição de renda é resultado do acúmulo histórico de decisões políticas, choques econômicos e afins. Por isso, muitos fatores são pelo menos parcialmente responsáveis: nosso atraso educacional, o passado escravocrata, a concentração fundiária, o sistema tributáriopouco progressivo, entre outros.
Do ponto de vista mais geral, há uma clara vinculação da desigualdade com a nossa dinâmica política e com a estrutura do Estado brasileiro. De novo, o melhor exemplo remete ao golpe militar de 1964: o programa adotado pela ditadura explicitamente almejava reduzir a participação dos salários na renda nacional, e foram feitas reformas abrangentes para atingir esse objetivo.
Em uma democracia, é impossível fazer isso. Mas também parece impossível, ou ao menos muito difícil, fazer o oposto, isto é, promover ou criar condições para a redistribuição de renda a partir do topo. Nosso conflito atual gira bastante em torno disso.
Propostas radicais tendem a ter vida curta, seja pelo medo de criar desorganização econômica, seja pela necessidade da cooperação dos mais ricos para promover crescimento econômico, seja porque, em última instância, os mais ricos são potencialmente os grandes financiadores da classe política. Além disso, a própria complexidade do Estado moderno e o toma-lá-dá-cá típico das democracias criam amplas oportunidades para que os setores abastados consigam reverter ou minimizar perdas — até porque várias decisões que beneficiam os mais ricos são, em geral, bem menos visíveis e muito mais difíceis de entender do que as decisões que afetam a massa da população, por se tratar de questões de refinanciamento de dívidas, regulações, subsídios e afins.
IHU On-Line – Na sua tese você comenta que vários países desenvolvidos distribuíram renda após a Segunda Guerra Mundial. Por que isso foi possível nesses países?
Pedro Ferreira de Souza – O período entre 1914 e 1945 foi crítico em muitos países. Simplificando, pode-se afirmar que a necessidade de mobilização popular para a guerra ensejou um conjunto de reformas e políticas amplamente redistributivas, ao mesmo tempo em que as grandes fortunas também foram corroídas pela inflação, pela Depressão de 1929 e, no limite, pela própria destruição física causada pelas guerras. Com isso, muitos países mudaram radicalmente sua distribuição de renda em pouco tempo.
Na tese, cito dois exemplos. Nos Estados Unidos, as duas guerras provocaram grande expansão e maior progressividade do imposto de renda de pessoas físicas e jurídicas. Além disso, o National War Labor Board impôs uma significativa compressão da estrutura salarial durante a Segunda Guerra. No Japão, as intervenções foram ainda maiores, incluindo regulação de dividendos, redução deliberada dos retornos financeiros de ações, padronização de salários, criação de conselhos de trabalhadores em empresas, limitação aos bônus pagos a executivos, reforma agrária, expansão do imposto de renda, e muitos mais.
IHU On-Line – Que tipo de medidas, sejam elas econômicas, sociais, políticas, adotadas ao longo desses 90 anos foram mais efetivas para contribuir para a redução das desigualdades?
Pedro Ferreira de Souza – É difícil generalizar, pois várias medidas dependem do contexto apropriado. Por exemplo, o efeito do salário mínimo varia muito ao longo do tempo, em função tanto do grau de cobertura quanto do seu valor. A importância da reforma agrária também depende da composição setorial do país.
Ainda assim, algumas medidas gerais podem ser apontadas. Aumentar o escopo e a progressividade dos impostos sobre a renda e o patrimônio parece essencial. Limitar o acesso de elites econômicas a benesses concedidas pelo Estado também, assim como combater o corporativismo da própria burocracia pública, que contém muitos grupos que ocupam o topo da distribuição de renda. Por outro lado, o gasto social deve ser bem direcionado. Até hoje não conseguimos lidar com carências históricas em termos de saneamento básico e educação.
IHU On-Line – Durante os governos Lula e Dilma falou-se dos ganhos relativos à distribuição de renda no país e ao enfrentamento das desigualdades, mas hoje alguns estudos que usam como base a análise dos dados do Imposto de Renda sinalizam que não houve uma redução significativa das desigualdades nos últimos 15 anos. Apesar dos avanços, o que tem dificultado o enfrentamento das desigualdades?
Pedro Ferreira de Souza – O mercado de trabalho realmente ficou menos desigual, mas os rendimentos e ganhos de capitalimpediram a queda da desigualdade como um todo. Houve alguma redistribuição entre os 70% ou 80% mais pobres, sem, no entanto, mudanças na enorme concentração no topo. Ou seja, nossa democracia funcionou bem melhor em termos de inclusão do que de redistribuição: amplas camadas da população ganharam acesso a padrões mínimos de vida, principalmente no que diz respeito a bens de consumo, mas a desigualdade de renda como um todo mudou muito pouco.
Do ponto de vista político, o maior problema é que é quase impossível imaginar uma grande coalizão capaz de tirar do papel um programa de médio ou longo prazo realmente redistributivo. Pelo contrário, há exemplos abundantes de corporações tentando obter vantagens no varejo.
IHU On-Line – Muitos especialistas apostam numa reforma tributária para enfrentar as desigualdades no país. Que aspectos fundamentais deveriam ser incluídos nessa reforma? Ainda nesse sentido, em que consiste sua proposta de mudar a composição da carga tributária?
Pedro Ferreira de Souza – Há muito a ser feito quanto ao nosso sistema tributário. Por enquanto, a maior parte da discussão sobre o tema gira em torno da simplificação da burocracia e do conflito federativo. Infelizmente, a questão distributiva aparece bem mais só nas muitas propostas de cunho mais acadêmico sobre o tema. Seria fundamental que nossas elites políticas abraçassem também esse lado.
Acho que uma reforma poderia partir do diagnóstico de que é preciso mudar a composição da carga tributária, sem alterar seu nível como um todo. Há muitas propostas específicas nesse campo. Grosso modo, o ideal seria aumentarmos sensivelmente a arrecadação e a progressividade dos tributos sobre renda e patrimônio, compensando isso com reduções na tributação sobre o consumo e a cadeia produtiva.
Para o Imposto de Renda, seria importante discutir a criação de alíquotas marginais mais elevadas (acima dos atuais 27,5%), a redução ou mesmo a eliminação de várias deduções (por exemplo, despesas com educação e saúde) e as distorções na tributação dos lucros e dividendos, que são isentos no IRPF.
Ainda no âmbito federal, urge ampliar o escopo do Imposto Territorial Rural, que é o equivalente rural do IPTU. Hoje, a despeito de toda a pujança do agronegócio, o ITR tem arrecadação ínfima.
Nas esferas municipal e estadual, o mais urgente é ampliar a arrecadação e progressividade do IPTU e do imposto sobre heranças e doações. Como pode a arrecadação com o IPTU ser menor do que a do IPVA? Não faz sentido para mim.
IHU On-Line – Recentemente você comentou que no Brasil há uma tendência histórica em “acomodar todas as demandas pelo lado do gasto público até o momento em que não dá mais”, porque isso gera uma crise fiscal. De outro lado, hoje alguns setores da sociedade fazem uma crítica às propostas de austeridade adotadas pelo governo brasileiro. Diante dessa situação, como equacionar, de um lado, o gasto público e, de outro, evitar uma crise fiscal?
Pedro Ferreira de Souza – Abstratamente, é simples: basta fazer escolhas, priorizando os gastos que beneficiam a base da distribuição de renda. Na prática, isso é muito difícil. O que vemos recorrentemente é o processo de acomodação: benefícios visíveis que chegam às massas, mas que são compensados por gastos às vezes ainda maiores que favorecem as elites. Seja por opção sincera ou por restrições políticas, nenhum dos nossos governantes conseguiu fugir muito disso.
A própria austeridade pode e deve ser discutida; há, digamos, austeridades e austeridades. A despeito de todos os nossos problemas fiscais, lemos diariamente sobre perdão de dívidas, refinanciamentos e afins para grandes grupos empresariais, igrejas e outros lobbies poderosos.
IHU On-Line – Hoje volta-se a discutir a possibilidade de o Estado distribuir uma renda mínima para todas as pessoas. Como você vê esse tipo de proposta? Ela ajudaria a enfrentar as desigualdades sociais?
Pedro Ferreira de Souza – Eu acho uma ideia excelente. Não é algo que sairá do papel do dia para a noite, mas tem o poder de reorientar o debate e de ajudar na racionalização das políticas públicas. Hoje temos várias políticas de transferência de renda, do Bolsa Família à dedução do Imposto de Renda para dependentes. Algumas são muito mais visíveis e questionadas do que outras. O simples debate sobre renda mínima ajuda a aclarar as semelhanças entre essas políticas e deixa as injustiças evidentes.
Na prática, as duas maiores críticas à proposta dizem respeito ao custo e à ineficiência no combate à desigualdade. O argumento é que transferências focalizadas são muito mais baratas e, por definição, ajudam mais a reduzir as desigualdades. Matematicamente, é verdade. Mas isso não tira o mérito da ideia, que está principalmente em trazer para a esfera pública o reconhecimento explícito de que vivemos em sociedades ricas o suficiente para assegurar incondicionalmente um padrão mínimo de vida para todos. Além disso, todo o debate ajuda a desestigmatizar a questão das transferências de renda.
Em termos de políticas públicas, o melhor caminho para o Brasil seria justamente o de racionalizar, dar transparência e, preferencialmente, unificar as transferências existentes. Com isso, algumas deficiências ficariam claras. A partir daí, poderíamos começar por uma renda mínima para crianças, um grupo particularmente vulnerável e com índices de pobreza ainda muito altos.
IHU On-Line – Além disso, alguns críticos às propostas redistributivas pelo Estado argumentam que, de um lado, as desigualdades são intrínsecas ao ser humano e, de outro, que é difícil estipular o que seria um critério mínimo de renda, por exemplo, que garantisse a redução das desigualdades, porque mesmo que um mínimo fosse estipulado, ainda assim haveria razões para as pessoas exigirem mais. Como você reage a esse tipo de argumentação?
Pedro Ferreira de Souza – Esse debate nunca vai ter fim, e é muito legítimo. O que é cansativo é que muitas vezes as críticas miram em um espantalho, como se a escolha fosse entre o Brasil de hoje ou a igualdade completa. Ou então como se só valesse a pena discutir o assunto se a redução da desigualdade fosse garantia de felicidade para todos. Mas quem diz isso?
O que está em jogo é se vale a pena ou não reduzirmos as enormes disparidades sociais que temos em nosso país. Ninguém fala em equalização absoluta, nem em engenharia social. A questão é: que tipo de país queremos ser? Há muitos argumentos morais, políticos e mesmo econômicos a favor da redução da desigualdade. Por exemplo, níveis elevados de desigualdade de renda estão associados a fortes desigualdades de oportunidades e prejudicam o funcionamento da democracia em virtude da influência do poder econômico sobre a política.
As evidências dos efeitos deletérios da desigualdade vêm se acumulando nos últimos anos. Mas é preciso reconhecer que, em última instância, nenhum desses argumentos é infalível — assim como quase todos os argumentos em ciências sociais.
No entanto, o mesmo pode ser dito, com muito mais veemência, a respeito dos argumentos a favor da desigualdade. Afinal, qual a evidência que temos que nosso nível de desigualdade atual maximiza os incentivos à produção ou o bem-estar da população? A própria pergunta soa cômica, não?
Quando se fala de desigualdade, é importante não naturalizar o status quo. Sempre temos que nos perguntar: e se invertermos o ônus da prova? E se, ao invés de exigirmos provas de que a desigualdade é “ruim”, passarmos a exigir provas de que ela é “boa”? E se compararmos as evidências nas duas frentes?
Penso que, hoje, há muito mais argumentos contra níveis tão altos de desigualdade do que a favor. Mas entendo que essa conclusão nunca será consensual — inclusive porque todos nós somos sempre muito bons em racionalizar nossa posição social como algo justo e natural, decorrente unicamente do nosso mérito.
IHU On-Line – Que questões centrais deveriam estar presentes num debate social, político e econômico sobre o enfrentamento das desigualdades no Brasil, considerando a nossa história?
Pedro Ferreira de Souza – Temos sempre que partir da perspectiva histórica. Somos um país profundamente marcado pela brutalidade da escravidão e até hoje convivemos com esse legado, que é atualizado e reproduzido ao longo do tempo. Nossa experiência democrática é curta e turbulenta. Não adianta discutir em cima do tudo-ou-nada, porque isso só gera cinismo e decepção.
É preciso enxergar para além da cortina de fumaça da polarização política, inclusive para explicitar os conflitos distributivos em vários casos. Muitas das decisões capazes de ajudar na luta contra a desigualdade têm um componente técnico muito forte, mas são, em última instância, decisões políticas. A questão central é: queremos viver em um país com renda tão concentrada nos mais ricos? É possível ter uma democracia funcional nessas condições? Como o próprio Estado ajuda a reproduzir essa situação?
IHU On-Line – Que teóricos deveriam ser lidos ou relidos nos dias de hoje quando se trata de discutir o enfrentamento das desigualdades sociais?
Pedro Ferreira de Souza – Vários autores fizeram grandes contribuições. No plano abstrato, a teoria de justiça de John Rawls continua sendo uma grande referência — mesmo os críticos acabam tendo que se posicionar em relação a ela. Na parte mais empírica e propositiva, uma grande inspiração é o trabalho do Tony Atkinson, que faleceu recentemente.
Como gostos variam muito, prefiro uma recomendação genérica: sempre vale a pena retomar autores que encararam a questão do ponto de vista histórico. Isso ajuda a desnaturalizar o debate atual, mostrando como o mundo mudou muito desde o século 19 e como sempre há alternativas.
Por exemplo, eu discuto na tese como o sucesso editorial do “Capital” do Piketty tem pelo menos um precedente histórico muito claro em Henry George, que também teve um best-seller (Progress and Poverty, 1879) sobre a concentração das grandes fortunas, inclusive com uma proposta para remediar o problema via tributação.
Essa perspectiva histórica é um bom remédio para a polarização político-partidária do momento e ajuda a colocar a questão em termos mais amplos. Também serve para mostrar como a permeabilidade do meio intelectual e político à questão da desigualdade variou muito ao longo do tempo.