Trabalhadores resgatados dão voz aos frios números da escravidão contemporânea

Em evento do MPF e da Conatrae, procuradora-geral da República pede união entre instituições e sociedade civil no combate ao trabalho escravo

MPF

Histórias de vida marcadas por trabalho desumano, exploração e violência psicológica emocionaram o público que compareceu ao evento “Vozes da Escravidão Contemporânea: correntes invisíveis, marcas evidentes”, promovido nesta terça-feira (6) pelo Ministério Público Federal (MPF) e pela Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae). Os trabalhadores Ismauir de Sousa, João Batista da Cunha e Kleyne Aparecida compartilharam dores e desalentos de terem sido submetidos ao crime do trabalho escravo. A mediação da conversa foi feita pelo jornalista Leonardo Sakamoto.

Comovida, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, ressaltou que a missão de combater o trabalho escravo tem sido muito difícil, com avanços e retrocessos, mas pediu união entre as instituições e a sociedade civil para enfrentar as mazelas deste crime contra a dignidade humana. “Este é o momento de reativarmos nossa disposição de lutar contra esse mal. É um mal gravíssimo. Nesses próximos dois anos essa é uma prioridade do Ministério Público Federal”, afirmou a PGR.

O relato dos trabalhadores deu voz aos números que demonstram a presença de trabalho escravo no Brasil tanto na zona rural, quanto urbana. “Muita gente pensa que o trabalho escravo não existe, mas o que a gente viu acontecer é uma coisa muito triste”, contou João Batista, que foi um dos 102 trabalhadores resgatados na Fazenda Salto Grande, em Jauru (MT). Na propriedade, onde trabalhou entre 2004 e 2008, fazia a roçagem do pasto para pecuária, mas trabalhava basicamente para pagar “dívidas” cobradas pelo patrão, que sequer fornecia moradia digna aos funcionários. Atualmente, João Batista, 48, é formado e atua como operador de escavadeira hidráulica.

Kleyne Aparecida Batista, que também trabalhou em condições análogas à escravidão, relatou que vivia de forma sub-humana com seus filhos na Fazenda Rancho Alegre, em Barra do Bugres (MT), de onde foi resgatada em 2008. Não havia moradia digna, tampouco água potável para ela, o marido e as crianças. Eles eram impedidos de sair da propriedade e nunca usaram equipamento de proteção para extração do látex – o que acarretou a perda de 40% do pulmão esquerdo de Kleyne, marca que carregará pelo resto da vida. Hoje em dia, ela sonha em abrir um restaurante e promete: “Depois do resgate, nunca mais vou passar nem permitir que meus filhos passem pelo que eu passei”.

Impunidade – Um dos grandes entraves para o combate ao trabalho escravo é a impunidade, que foi tema central do painel de discussão sobre os desafios de combater o crime. Para Raquel Dodge, o trabalho escravo é um crime do colarinho branco, porque requer grande investimento para agenciar os funcionários, dissimulação por parte do patrão, além de ser um crime de prova difícil, por ocorrer em locais distantes e com práticas controladas pelos infratores. “Do ponto de vista jurídico, temos enfrentado inúmeras dificuldades também para levarmos testemunhas a juízo e para evitar que as penas imputadas aos autores sejam convertidas em medidas alternativas”, disse a PGR.

A coordenadora da Câmara Criminal do MPF (2CCR), subprocuradora-geral da República Luiza Cristina Frischeisen, lembrou que, apesar de a quantidade de trabalhadores resgatados estar diminuindo, isso não implica um avanço efetivo no combate a este crime. “A redução do número de trabalhadores resgatados, que vem caindo desde 2014, não significa que o trabalho escravo tem diminuído. Talvez seja o reflexo da escassez de orçamento que está atrapalhando a atuação dos auditores fiscais do trabalho”, afirmou a subprocuradora geral, ressaltando que a questão já é objeto de um procedimento específico do MPF.

As dificuldades para imputar o crime aos verdadeiros culpados também foi apontada pelo presidente do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait), Carlos Fernando da Silva Filho, e pelo coordenador da Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo, João Francisco Araújo Maria. Também participou do evento o vice-procurador-geral da República, Luciano Mariz Maia.

O trabalhador Ismauir de Sousa Silva é um exemplo vivo da dificuldade para lutar pelos seus direitos e ver o antigo patrão pagar pelo delito cometido. Ele foi flagrado em condição análoga à escravidão em 2003 pelo Grupo Móvel de Fiscalização do Ministério do Trabalho, mas se sensibilizou com o apelo do empregador e optou por não denunciá-lo para, em troca, receber pelo período trabalhado. A promessa não foi cumprida. Ismauir, no entanto, mesmo depois de trabalhar mais de dois meses sem receber nada, ficou mais de dois anos até ganhar pelas inúmeras horas trabalhadas com uma motosserra derrubando árvores. Atualmente, ele mora em Araguaína (PA), faz bicos e sonha em vir para Brasília tentar trabalhar e mudar de vida.

Coletânea – Durante o evento também foi apresentada a Coletânea de Artigos sobre Escravidão Contemporânea, organizada pela Câmara Criminal do MPF. Na publicação virtual, diversos autores debatem temas como a evolução das normas internacionais e da legislação brasileira; o caso da Fazenda Brasil Verde; o trabalho obrigatório nas prisões norte-americanas; a exploração dos bolivianos nas confecções brasileiras; a desapropriação por exploração de trabalho escravo e a publicação da chamada “Lista Suja”.

Ao final do evento, o jornalista Leonardo Sakamoto perguntou aos trabalhadores: “O que você faria se fosse presidente do Brasil?”. A resposta de cada trabalhador não poderia ser diferente: dar atenção aos brasileiros menos favorecidos.

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