‘Omissão mata mais que bala porque é muito lucrativo para a política’, diz jornalista indígena

Por Catarina Teixeira, em Fanzine Resistência na MÍDI@

Mulheres comunicadoras estão dominando o cenário midiático contra o racismo, a violência e pela defesa do bem viver. São mães, guerreiras, ativistas, escritoras, poetas, educadoras, jornalistas e artistas.

A jornalista indígena conhecida como Renata Tupinambá é hoje um dos muitos nomes da comunicação indígena no Brasil, co-fundadora da Rádio Yandê, primeira web rádio indígena brasileira. Prometeu na adolescência para sua avô materna ir em busca dos parentes. Seus familiares foram vítimas de abusos, assassinatos e violências que marcaram sua história.

Aos 16 anos já trabalhava com comunicação denunciando crimes ambientais e divulgando a cultura indígena. Quando iniciou o curso acadêmico de jornalismo sabia que queria fazer a diferença. Seu trabalho em etnojornalismo iniciado aos 18 anos como voluntária na Rede Índios Online do Nordeste, ensinou sobre as narrativas de resistência cultural. Participou em projetos de valorização da História Indígena sempre aprendendo com os mais velhos; um deles foi Índio Educa desenvolvido em Ilhéus na Bahia.

Fanzine Resistência na MÍDI@ – O que significa ser Tupinambá ?

Renata: É renascer das cinzas, de um solo vermelho, um dos troncos mais antigos e primeiros povos de contato. Sentir no sangue, corpo e guardar no espírito a memória das gerações, conhecer quem é sua família neste grande tronco, o sonho dos antigos. E na fé e espiritualidade alimentar fortalecer a identidade. Escutar milhões de gritos e possuir na personalidade uma antropofágica fome de saber. Reconhecer nas árvores os livros verdadeiros da cultura, ter coragem, ousar lutar, não aceitar nenhuma forma opressão, nunca abaixar a cabeça. Caminhar em busca de autonomia saindo dos cabrestos coloniais que nunca foram capazes de dominar as mentes de nossas verdadeiras lideranças.

Por muito tempo pessoas se esconderam por causa da violência contra o povo, foram apelidadas de caboclos, bugres, negros da terra, mestiços. No caso de Olivença e Pau Brasil na Bahia, indígenas Tupinambá sobreviventes da família Tupi-Guarani foram reconhecidos pela Fundação Nacional do índio (FUNAI), uma conquista da força do matriarcado de famílias antigas. O Pará é outro lugar de forte presença da etnia. Em diferentes estados começou a tornar-se visível em comunidades e ambiente urbano.

Ser Tupinambá é estar sempre pronto ao enfrentamento, e combate do preconceito de muitas pessoas que desconhecem nossas historias de vida, acreditando em livros de histórias que ignoraram completamente narrativas indígenas. É possuir uma raiz forte! Somos aqueles que voltaram e outros estão retornando também para romper o silêncio. Nosso levante é por respeito aos nossos ancestrais.

Fanzine Resistência na MÍDI@ – Qual o maior desafio para indígenxs urbanos ?

Renata: Sem dúvida é o reconhecimento não apenas de outros parentes, mas da própria sociedade brasileira que nega por meio do discurso colonizador a identidade para muitos. A limpeza étnica e pensamento que apenas nas aldeias podemos viver, invisibiliza muitas famílias que saíram de seu território ou tiveram ele transformado em cidades. A racialização e fantasia indianista literária fortalece esteriótipos sobre o que é ser indígena, em busca de pureza racial que não existe, e o personagem índio fruto deste olhar romantizado. Não viemos da Índia, somos nossos povos, mas o discurso colonial permanece, começam assim os conflitos de identidades, sem referências familiares ou das comunidades muitos se perdem. Sem apoio e politicas públicas próprias acabam negando a origem ou rompendo laços com suas culturas. Cada demanda precisa de sua própria politica pública em assuntos referentes ao estado; na aldeia se vive uma realidade e na cidade outra.Todos têm seu próprio espaço de fala. Por isso é importante a descolonização do pensamento. Enquanto estivermos presos ao estigma de sermos o que não somos, generalizando quem somos por meio de certas palavras, será difícil romper as gaiolas. É muita pluralidade sendo homogeneizada de forma estrutural provocando racismo e preconceitos até entre nós mesmos.

Eu cresci em ambiente periférico, cercado pela violência de milícias e do tráfico. Ainda menina conheci a realidade de viver em um local abandonado pelo que chamam de poder público entregue aos poderes paralelos. Chamado de ‘buraco’, as pessoas perguntavam como é viver em um buraco. É ver pessoas vindas de todos lugares do Brasil trabalhando com dignidade por uma vida melhor, sendo oprimidas constantemente por uma chuva de balas. A gente sai de ‘buracos’ mas eles não saem de nós. Você se joga no chão com medo, escuta sons de granada, fuzil, vê corpos cheios de sangue, pessoas implorar por suas vidas. Reconhece feridas sem cicatrização na humanidade do que os homens fazem uns aos outros, em todos lugares do mundo marcados por diferentes guerras que não têm fim. Conhecidos morrem, somem, alguns nunca chegam aos 16 anos de idade. A omissão mata mais que bala porque é muito lucrativo para a política.

Quando vai para aldeia percebe que em ambiente urbano ou rural essa violência persegue a vida das pessoas que vivem principalmente em comunidade. A gente sente impotência diante de tudo. É um processo sistêmico de desigualdades e disputa de poderes. Não é apenas um problema social ou de conflitos territoriais. Vemos constantemente o extermínio da população indígena, negra e de qualquer grupo que nomeiam como minorias estrategicamente. Integração forçada, invasão de territórios em nome de um desenvolvimento que fortalece os que possuem poder econômico, não o povo brasileiro. Omissões acontecem todos os dias e influenciam a vida de milhares. Elas vêm acompanhadas dos constantes assassinatos. A gente se pergunta o que faz com tudo que vive, encontra na escrita, audiovisual, internet e comunicação em geral uma forma de trazer visibilidade. Nossas gargantas não podem ser mais cortadas. Mostremos nossos sentimentos, diferenças, histórias, e tudo que um dia alguém colocou em um ‘buraco’ para que ninguém pudesse ver.

Fanzine Resistência na Mídi@ – O que você deseja na Rádio Yandê?

Renata: Que cada aldeia no Brasil e povo possar ter seu espaço de comunicação, seja uma rádio ou outro meio. Não sendo dependente de outros grupos ou até mesmo da gente como mídia indígena. Autonomia é extremamente importante, sem ela é impossível haver real protagonismo e empoderamento. Existem pessoas que precisam de apoio, e a mídia não chega até eles, não consegue dar conta de todas regiões, mas quando cada um sabe ser sua própria mídia muda tudo, não fica mais sujeito à invisibilidade. A gente busca fomentar comunicação e oferece espaço para ajudar divulgar os conteúdos de cada comunicador indígena. Não é haver apenas um grupo A ou B como mídia, mas todos possuírem o direito de fazer suas mídias.

Realizamos oficinas de etnomídia, palestras, produzimos conteúdos, divulgamos também trabalhos de indígenas do Brasil e outros países. Por isso é a Rádio de Todos. Além de fortalecer o cenário da comunicação pensamos também em músicos e cantores indígenas que não encontram espaço de divulgar suas músicas. Rompemos as fronteiras geográficas; elas não existem para os povos indígenas. Com o acesso de mais de 70 países ao nosso site, compreendemos que é possível fazer muita coisa sendo independente, mesmo sem patrocínio ou recursos. Mas buscamos apoio para conseguir produzir mais conteúdo e valorizar o trabalho de profissionais indígenas, como qualquer profissional de outros veículos de comunicação.

Pensando nisso, estamos tentando organizar um encontro de comunicadores indígenas com todos os grupos da área para avançar nas discussões em torno do direito à comunicação indígena ignorado no Brasil. Não é apenas uma questão de indígenas se apropriando de tecnologias, mas uma luta maior, minha, do  Anápuáka Muniz Tupinambá, Denilson Baniwa e muitos outros por todo país. Existem coletivos, cineastas, jornalistas, mídias indígenas, escritores, educadores, artistas, cada um lutando como pode.

Fanzine Resistência na MÍDI@ – O que é etnomídia indígena ?

Renata: Comunicar buscando expressar a perspectiva indígena com a identidade do comunicador e convergência de mídias. Diferente de mídias não indígenas, desconstruímos o padrão imposto em busca de descolonizar os meios. Para compreender é preciso saber que a comunicação indígena não está presa apenas à produção jornalistica de noticias, é muito ampla. O comunicador indígena comunica com toda a sua cultura.

Fanzine Resistência na MÍDI@ – Qual mensagem você gostaria de deixar para juventude indígena?

Renata: Busquem autonomia e nunca deixem de escutar o conselho dos anciões. Estamos de passagem pela vida, não devemos esquecer as coisas que realmente são importantes, como a garantia do território e respeito às nossas culturas. Pensar sempre nas próximas gerações e aprender com as anteriores. Educação indígena é a base de tudo, devemos lutar pelo nosso espaço próprio em qualquer área. Nossa saúde é nossa cultura, sejamos quem somos, não tenham vergonha de ser quem são, respeitem suas diferenças. Valorizem suas raízes. Grandes meios de comunicação de massa, influenciam na formação da opinião pública para pensarem como desejam que pensem sobre muitos temas. Mídias livres são poucas porque a politica partidária se apropria de muitos espaços. Fica como jogo de xadrez que cada um movimenta as peças de acordo com seus próprios interesses. É um desafio todos que buscam fugir desta ordem das coisas, mas ousem ser diferentes e encontrar novos caminhos que aproximam as pessoas sem segregar ou dividir, com a consciência que estamos todos na mesma canoa, o que acontece com um influencia todos os outros. Existem pessoas lutando muito nas bases e que não são conhecidas pela mídia, nem fazem questão de serem; admiro muito os guerreiros anônimos. A revolução em nossas vidas, realmente não vai ser televisionada ou midiatizada pelos grandes meios.

FONTE – Fanzine Resistência na Mídi@, Edição nº 002 – Julho, 2018. São Paulo – SP

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