A democracia como proposta de convivência civilizada

por Cândido Grzybowski*

Continuo no esforço de apontar pistas e esboçar questões incontornáveis para a disputa de hegemonia com perspectiva democrática ecossocial de longo prazo. A poucos dias de se instalar um novo governo legitimado pelo voto, pode parecer que não estou dando atenção para a conjuntura imediata. Na verdade, diante da tempestade política anunciada, a única coisa prática a fazer é olhar para a capacidade de reconstrução da resiliência cidadã. Sempre digo que o melhor de tudo é a garantia da terra girar e os dias se sucederem, pois a história não acaba aqui. O que vem nos próximos meses e anos ainda está por ser feito, na disputa. Na adversidade conjuntural do momento, o jeito é pensar estrategicamente o depois de amanhã.

Por mais difícil que seja, precisamos olhar prioritariamente para a sociedade civil. Afinal, foi aí que se construiu a hegemonia da extrema direita liberal-autoritária. É aí que poderemos derrotá-la com persistente trabalho cultural, educacional e político ou penaremos por mais de uma geração. Tarefa inadiável, mesmo se a tempestade próxima e seu estrago forem maiores do que imaginamos. Resistir é preciso, mas é totalmente insuficiente.

Para completar um primeiro apanhado de questões que venho tratando, gostaria de chamar a atenção aqui ao sensível campo das expressões culturais, festas, religiosidades e vivências populares. Parece que esquecemos que cultura em sua amplitude é, sobretudo, modo compartido de criar significados, emoções e se comunicar.  É uma especificidade que nos caracteriza como humanidade, como a parte consciente e produtora de conhecimento na natureza. Claro, isso a gente faz, todos fazemos, em íntima relação com a biosfera, nas condições naturais e históricas que nos cabe viver.

Fazer política democrática com perspectiva ecossocial é entrar em sintonia com as cidadanias concretas em seus cotidianos, como vivem e pensam, nos seus territórios. Destaco aqui o que condensa a maior complexidade de um ponto de vista de filosofia ativa: as múltiplas tradições religiosas e as extremamente diversas formas de religiosidade. Claro, existem fundamentalismos que excluem em quase todas as correntes religiosas. Mas existe, também, o desejo e a possibilidade de convivência entre elas. O fato é que elas estão presentes e tem fundamental importância na vida humana, mesmo nas formas de ateísmo, que se apresentam como a sua negação. Estamos diante de produção de sentidos profundos e eles nos moldam mais do que nossa racionalidade abstrata admite. Como fazer? O princípio pedagógico, cultural e político é ver, ouvir, procurar entender e, sobretudo, respeitar.

Esta questão me leva às propostas de “escola sem partido”, que surgiram junto com a construção da hegemonia do extremado liberalismo autoritário que explorou a moralidade de forma escandalosa e de total desrespeito à diversidade que carregamos em nosso seio. Mas ela revela a dimensão do que estou tentando aqui destacar. Não é demais lembrar que o sistema educacional, as universidades, as instituições de cultura, os institutos científicos e políticos, as editoras e bibliotecas, as mídias, as igrejas, as organizações de cidadania ativa, enfim, tudo o que a sociedade construiu para se pensar e significar é lócus de disputa permanente de hegemonia. Lutar pela mais radical liberdade em todo este campo é radicalizar a democracia como proposta possível histórica de convivência civilizada em nossa diversidade.

O espaço público da comunicação e do debate que se dá no interior da sociedade civil é particularmente estratégico. Mudanças profundas estão em curso nesse espaço. Predomina o negócio da comunicação, acima do bem público, mesmo nas mídias sociais das novas TICs. Mas é um campo de disputa por excelência e nele precisamos estar e saber nos posicionar. Afinal, o que conta é conseguir criar mensagens inspiradas na realidade das vivências e significados da multiplicidade cultural que se pratica e desenvolve em territórios de segregação territorial, social, racial e institucional. A emancipação social cidadã é um ato de elaboração libertadora de tais vivências e de construção de poderosos imaginários coletivos por direitos humanos e direitos da natureza em sua totalidade, para todas e todos.

Para tal, precisamos ter pés nos territórios de cidadania e na comunicação. Fazer educação popular libertadora é uma tarefa que nunca deveríamos ter abandonado como prioritária. É uma tarefa de formiguinha essencial na construção de cidadania ativa engajada por democracia ecossocial. É nos territórios e nas vivências locais onde pode se perceber e fortalecer a simbiose entre direitos humanos e direitos da natureza, como base de uma democracia ecossocial. Aí são vivência e cultura real, talvez não pensada como tal, mas que pode ser elaborada pedagogicamente como a inspiração libertadora. Sabemos que nós mesmos mudamos ao fazer educação popular, pois todo ato de educação só é libertador como aprendizado e novo conhecimento se houver troca entre os participantes do processo. Educação popular é, por isso, produção de novo saber significante para o grupo como um todo e para uma nova sociedade. Os conhecimentos assim produzidos são a base de uma teia que tece a filosofia ativa capaz de inspirar e alimentar novos imaginários na disputa de hegemonia política e cultural de um outro Brasil e um outro mundo.

Seria enfadonho lembrar os vários aspectos e campos a que precisamos dar atenção no sentido de construir resiliência cidadã democrática e transformadora de situações e processos. Para mim a tarefa esta clara, mas será longa e paciente. Tenho baseado as minhas análises de grandes movimentos nas sociedades que são de ciclos de vinte a trinta anos. No entanto, precisamos acelerar os “tempos históricos”, pois a barbárie social de um mundo para muito poucos e de destruição planetária está muito próxima e não sei se temos vinte a trinta anos pela frente. O certo é que não dá para esperar em nossas trincheiras para ver o que acontecerá.

*Sociólogo, presidente do Ibase.

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