Honremos os mortos pelo crime da Vale e do Estado. Por Gilvander Moreira*

Representando 5,17% da bacia do Rio São Francisco, com 510 quilômetros de extensão e bacia envolvendo 1.318.885 milhões de habitantes[2] em 13.643 Km2, o Rio Paraopeba nasce em Cristiano Otoni, próximo a Conselheiro Lafaiete, e, como um dos principais afluentes do Rio São Francisco, irriga 48 municípios[3] e deságua na barragem da hidrelétrica de Três Marias, MG, no município de Felixlândia.

Lamentavelmente, o crime continuado, anunciado, e a tragédia da Vale e do Estado – genocídio gigante – que iniciou às 12h28 do dia 25 de janeiro de 2019, melhor dizendo, iniciou na tarde do dia 05 de novembro de 2015, no município de Mariana, MG, e durará por muitas gerações – é muito maior do que percebemos. Com o passar dos dias, rastros de morte vão sendo percebidos e se avolumando. O massacre de pessoas humanas – entre elas, trabalhadores e trabalhadoras – pode ultrapassar quatro centenas. Muitos dos golpeados dizem que há muitas pessoas fora da lista de mortos e desaparecidos. Erídio Dias, morador da Ocupação Dandara, em Belo Horizonte, há cinco meses trabalhava na mina de Córrego do Feijão, como trabalhador terceirizado da Vale. Ele era soldador e está entre os desaparecidos. A mãe dele, com 74 anos e adoentada, vive em Sem Peixe, no interior de Minas. Com uma espada de dor transpassando o coração, ela telefona todos os dias para os filhos em Belo Horizonte, perguntando: “Que dia a Vale e o Estado entregarão o corpo do meu filho para ser sepultado aqui em Sem Peixe?”. Uma criança de três anos, que ficou órfã de mãe, pergunta toda hora: “Cadê mamãe? Por que ela está demorando a chegar? Ela deve estar com fome”. Com fome de justiça estamos todos nós.

Uma professora aposentada da UFMG, com a voz embargada disse: “Moro na beiro do Rio Paraopeba, em Brumadinho. Uma das maravilhas que eu assistia todas as manhãs eram as garças, em centenas, fazerem revoada ao amanhecer do dia e pescar o seu alimento no rio Paraopeba. A última vez que vi as garças foi na manhã do dia 25 de janeiro de 2019, dia do crime. Com o assassinato do rio, as garças não voltaram mais. Sem o rio saudável os pássaros estão morrendo também”.

No Acampamento Pátria Livre, com 600 famílias Sem Terra do MST, em São Joaquim de Bicas, às margens do Rio Paraopeba, a jusante de Brumadinho, Manoel desabafa, com lágrimas escorrendo dos olhos: “O Rio Paraopeba era nosso pai. Mataram nosso pai. Todos os dias, uma infinidade de pássaros fazia revoada aqui no rio, em voos rasantes se banhavam no rio. Os pássaros sumiram e os urubus chegaram”. A agente de saúde Suely, Sem Terra do MST em São Joaquim de Bicas: “Além de prestar os primeiros socorros e receitar medicina caseira e das plantas para as 600 famílias aqui do Acampamento Pátria Livre, eu proponho às pessoas depressivas a ir banhar no Rio Paraopeba e meditar às suas margens. Nosso rio já curou muitas pessoas. E agora com o rio morto?

Em regime de agricultura familiar, milhares de pequenos/as produtores/as, que vivem e plantam hortaliças e legumes na mãe terra banhada pelo Rio Paraopeba, estão aflitos, pois as hortas, antes irrigadas com água do Rio Paraopeba, estão morrendo. Tentar irrigar com caminhões pipas será paliativo.  Buscar água onde? Além de palco de intenso processo de mineração, os municípios de Brumadinho, Mário Campos, Sarzedo, Ibirité e região eram regiões produtoras de alimentos para abastecer Belo Horizonte e região metropolitana.

Dezenas de comunidades quilombolas ao longo da bacia do Rio Paraopeba foram golpeadas. Há quilombolas entre os desaparecidos. O pescador Clarindo Pereira, do Movimento Nacional de Pescadores e Pescadoras Artesanais, diz: “Vivendo e pescando no Rio São Francisco, sempre pedimos que chova para irrigar o nosso Pai, mas de agora em diante, toda vez que chover na região metropolitana de Belo Horizonte, ficaremos mais preocupados, porque as enchentes empurrarão mais e mais lama tóxica para o Rio São Francisco que já está na UTI”. Os peixes, água boa e toda a fauna ainda existente nos córregos e rios afluentes do Rio Paraopeba, tais como os rios Águas Claras, Macaúbas, Betim, Camapuã, Manso e o Ribeirão Serra Azul, ao fluírem naturalmente, serão jogados na lama tóxica que invadiu o rio Paraopeba. “Dói muito saber que os peixes desses rios vão cair no Rio Paraopeba para morrer também”, comenta Domingos, Sem Terra em São Joaquim de Bicas. Dona Rejane Moraes, que vive há 30 anos em um sítio de três hectares no Córrego do Feijão, em Brumadinho, alerta: “Já passou da hora de parar a mineração em Minas Gerais e no Brasil. Estamos esperando matar mais centenas e milhares de pessoas, acabar com nossa água e com o meio ambiente? Ninguém vive sem águaÉ hora de parar tudo e fazer uma avaliação séria”.

As águas da bacia do Rio Paraopeba garantiam 50% do abastecimento de Belo Horizonte e região metropolitana, por meio das barragens nos rios Betim e Manso, e no ribeirão Serra Azul, três afluentes do Rio Paraopeba que formam os três reservatórios que compõem o Sistema Paraopeba: Sistema Vargem das Flores, Sistema Rio Manso e Sistema Serra Azul, respectivamente. E agora, onde arrumar água para garantir o abastecimento de cinco milhões de pessoas de Belo Horizonte e região metropolitana? A COPASA[4] investiu 130 milhões de reais para captar água do Rio Paraopeba em uma grande obra inaugurada em dezembro de 2015, prometendo que a obra garantiria o abastecimento de BH e região metropolitana pelos próximos 25 anos. Tudo isso perdido. E agora como garantir o abastecimento de cinco milhões de pessoas de Belo Horizonte e região metropolitana?

Da perspectiva bíblica e teológica, é preciso recordar que toda a criação – os seres humanos, a fauna, a flora e os biomas – é sagrada. “Água, fonte de vida” foi o lema da Campanha da Fraternidade de 2004. “O Espírito de Deus está nas águas”, diz o segundo versículo da Bíblia (Gênesis 1,2). O Espírito vivificador não apenas paira sobre as águas, mas permeia e perpassa as águas. Logo, matar as nascentes, os córregos e os rios é cometer um pecado contra o Espírito Santo, pecado capital que não tem perdão. Integrantes do sistema capitalista, os megaprojetos de mineração são projetos satânicos e diabólicos, que, como o dragão do Apocalipse (Ap 12) cospe fogo e devora tudo o que encontra pela frente. Antes de serem cooptadas pelo Império Romano e pelo imperador Constantino, as Primeiras Comunidades Cristãs se regiam por um Código de Ética que alertava às pessoas cristãs que trabalhar em instituições que reproduzissem o sistema de morte do império romano era algo imoral. Um cristão não podia, por exemplo, ser soldado e nem militar do império romano, pois estaria, na prática, reproduzindo um sistema idólatra. Diante da exaustão e de tanta mortandade que a mineração devastadora vem perpetrando em Minas Gerais, no Pará e em outros estados se torna imperativo ético conquistarmos outras formas de trabalho que interrompa a máquina mortífera das mineradoras que está fazendo guerra contra o povo, contra a mãe natureza, contra todos os animais e toda espécie de ser vivo. Muitos ainda podem se tornar vítimas desta mesma máquina aniquiladora. 

São inaceitáveis somente medidas paliativas e emergenciais, sem medidas radicais – que vão à raiz – que mexam na engrenagem da guerra que as grandes mineradoras, com a cumplicidade do Estado, estão promovendo contra todos e tudo. Justo e necessário é: a) a prisão preventiva imediata do Presidente da VALE, dos Diretores da VALE, das autoridades dos Governos que autorizaram o funcionamento e dos responsáveis pela licença da mina do Córrego do Feijão; b) o confisco dos bens da Vale para aplicar nas áreas sociais e em urgente projeto de reflorestamento; c) suspensão de todas as licenças ambientais por tempo indeterminado da mineração em Minas Gerais e em todo o país até que se faça uma avaliação independente e imparcial que viabilize reabrir apenas as minas que têm garantias idôneas de que não haverá rompimento de barragens de rejeitos de minério.

Após muitos rompimentos de barragens de rejeitos tóxicos da mineração a consciência adormecida de muitos precisa romper também. Não pode continuar “tudo isso acontecendo e eu aqui na praça dando milhos aos pombos”, alerta o grande Zé Geraldo . Quem continuar se omitindo ou defendendo apenas soluções que não afetem a engrenagem de morte dos grandes projetos de mineração entrará para a história como cúmplice da desertificação e da dizimação das condições objetivas de vida em Minas Gerais e no Brasil. Quem tem ouvidos para ouvir ouça! E se ajunte às forças vivas dos movimentos sociais populares que estão na luta por justiça social, justiça agrária, justiça urbana e justiça socioambiental.

Belo Horizonte, MG, 11 de fevereiro de 2019.

Obs.: Os vídeos, abaixo, ilustram o texto, acima.

*Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.

[2] Fonte: IBGE/CENSO 2010.

[3] Belo Vale; Betim; Bonfim; Brumadinho; Cachoeira da Prata; Caetanópolis; Casa Grande; Congonhas; Conselheiro Lafaiete; Contagem; Cristiano Otoni; Crucilândia; Curvelo; Desterro de Entre Rios; Entre Rios de Minas; Esmeraldas; Felixlândia; Florestal; Fortuna de Minas; Ibirité; Igarapé; Inhaúma; Itatiaiuçu; Itaúna; Itaverava; Jeceaba; Juatuba; Lagoa Dourada; Maravilhas; Mario Campos; Mateus Leme; Moeda; Ouro Branco; Ouro Preto; Papagaios; Pará de Minas; Paraopeba; Pequi; Piedade dos Gerais; Pompéu; Queluzito; Resende Costa; Rio Manso; São Brás do Suaçuí; São Joaquim de Bicas; São José da Varginha; Sarzedo; Sete Lagoas.

[4] Companhia de Saneamento de Minas Gerais.

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