Falar de fascismo no Brasil. Por Vladimir Safatle

Há uma fenda global que parece crescer, por onde passaria a emergência de novas formas de governo com traços claramente fascistas

No El País

Há o medo de certas palavras. Esse medo vem na maneira com que tentamos, até o limite, não utilizá-las. Porque seu uso acende alertas vermelhos, nos quebra a letargia de sentir que, por mais que nossa situação atual seja complicada, a vida corre. E corre com um correr de quem acaba por acertar seu passo, abaixar os gritos. Bem, não há palavra que nos leve mais a temer seu uso do que “fascismo”. No entanto, é ela que se ouve de forma cada vez mais insistente quando se é questão da situação brasileira atual. Coloquemos então, de maneira direita e simples, uma questão que vários de nós já colocou a si mesmo: Estaria o Brasil caminhando para o fascismo?

Esta questão não se ouve apenas no Brasil. Ela se ouve na Itália, na Hungria, na Polônia, nas Filipinas. Esta confluência de semblantes perplexos a fazer o tour do mundo não é mero acaso. Ela indica uma fenda global que parece paulatinamente crescer, fenda por onde passaria a emergência de novas formas de governo com traços claramente fascistas.

Mas não seriam tais governos simplesmente “populistas”? Não é assim que se diz hoje, “governos populistas de direita”? Sim, é assim que se diz. Mas e se este uso extensivo do termo “populismo” fosse, na verdade, uma forma de não chamar de gato um gato? Pois talvez os chamamos de “populistas” para não dizer o que eles realmente são: governos nos quais uma certa concepção de ‘estado total’, uma forma explícita de implosão de qualquer possibilidade de solidariedade social com grupos historicamente vulneráveis, uma noção paranoica de nação e o culto da violência são a verdadeira tônica. Mas seria isto exatamente “fascismo”? E por que não falar em “populismo”, neste caso?

Lembremos como o uso extensivo da noção de “populismo” voltou. Há pelo menos dez anos havia ficado claro que a política mundial tendia a se deslocar para os extremos. A incapacidade de responder ao processo de degradação social provocado pela crise econômica de 2008, ou seja, a inanidade das políticas neoliberais diante da crise e sua partilha, em maior ou menor grau, por todos os principais atores políticos, provocara uma desidentificação tal com o poder instituído, uma frustração tal daqueles que um dia acreditaram nas sereias da globalização, que o fortalecimento dos extremos era uma tendência irresistível. A democracia liberal havia tocado seu limite. Pois o problema não era apenas econômico, ele era principalmente político. Não havia espaço no campo político para ações e discursos de ruptura clara com a ordem econômica responsável pela pauperização de camadas cada vez maiores da população.

Diante de um desejo de recusa forte dos limites de nossa vida institucional, criou-se essa palavra mágica que faz tudo o que coloca em questão os sistemas de paralisias e acordos da democracia liberal parlamentar parecer “irracional”, “emotivo”, “fruto de frustrações”, “convite a regressões atávicas”, ou seja, “populista”. Ainda de quebra, o termo permitia juntar os extremos, falar de um populismo de direita e de um populismo de esquerda, anulando com isto os dois polos, fazendo-os operar em uma balança de equivalências. Como se, no fundo, existisse apenas a “democracia” que conhecemos e os “populismos”.

Mas era claro que as diferenças entre os polos eram profundas. À direita, via-se uma crítica à pauperização social que colocava a conta da catástrofe nas costas dos mais desfavorecidos, a saber, os imigrantes espoliados por relações de trabalhos sub-humanas, os refugiados vítimas das consequências das intervenções imperialistas em regiões de conflito perene, como o Oriente Médio. Quando não havia grandes levas de imigrantes, via-se a mobilização das clivagens originárias de raça e de gênero, em uma reedição de estratégias cuja ressonância fascista era evidente. À direita, via-se ainda todo o imaginário a respeito da fronteira, da imunidade do corpo social, da invasão, do contágio retornar diretamente dos discursos mais inflamados de Goebbels.

Ou seja, não havia proximidade alguma entre os polos. Mas estávamos diante de uma prática de “normalização” da extrema-direita e recuperar a tópica do “populismo” vinha mesmo a calhar. Porque recusar sua normalização acabaria por levar toda a força anti-institucional ao outro polo e com isto produzir uma ruptura sem negociação com a ordem econômica atual.

Mas nada disto respondeu à pergunta colocada no início deste artigo, a saber, estaria o Brasil caminhando para o fascismo? Talvez fosse o caso de levantar alguns traços que têm a força de falar por si mesmos.

Quando o jurista nazista Carl Schmitt procurou explicar o que era o Estado total fascista, ele tomou o cuidado de estabelecer uma distinção. Segundo ele, nós conheceríamos uma forma de Estado total no interior das democracias parlamentares. Trata-se desse Estado que ouve todos os lados da sociedade, que está presente em todos os conflitos sociais e que produz estruturas de mediação e de legislação em todas as esferas da vida social. Ele procura dar conta dos conflitos trabalhistas, dos problemas de desigualdade, da violência específica contra grupos vulneráveis, entre outros. O Estado está assim, em todos os lugares. Ele não pode pairar acima da sociedade e decidir, pois é apenas a emulação dos conflitos sociais. Contra isto, dirá Schmitt, precisamos de outro Estado total. Mas sua função será diferente: ele deverá usar toda sua força para despolitizar a sociedade, impedir que as escolas sejam focos de sedição e formação, impedir que os trabalhadores pressionem seus patrões através de obrigações legais, usar a força policial para impedir greves, paralisias, ocupações. Assim, pode-se garantir a única liberdade real, a saber, a “liberdade de empreender” (que é sempre uma liberdade para alguns, ou melhor, para os de sempre). Este era o Estado total fascista.

Por outro lado, nesse Estado, um dos poucos princípios liberais que qualquer democracia real deveria preservar, a saber, a possibilidade de que indivíduos sempre terão, independente de quem são ou do que fizeram, de se defenderem do Estado quando julgados, não existia. Pois essa possibilidade exige inviolabilidade do sistema de defesa (em bom português, meu advogado de defesa não pode ser grampeado pelo juiz), exige desinteresse da parte dos julgadores (mais uma vez, em bom português, se sou candidato a presidente, o juiz que julga meu caso não pode me prender porque tem um projeto pessoal de poder e quer ser ele o próprio presidente).

Por fim, e esta era uma compreensão precisa de Franz Neumann, o Estado nazista não governa. Ele é uma associação instável entre grupos que estão em conflito contínuo. Mas esse conflito é uma forma de perpetuar o “movimento”, já que ele permite ao governo entrar em conflito contínuo com o Estado, dizer sempre que nosso grande projeto não está a ser implementado porque forças obscuras estão agindo dentro do Estado para impedir nossa grande redenção. O estado nazista é uma crise permanente elevada à condição de governo. A única coisa que tenho a dizer é: junte os pontos e diga se a cena não lhe parece demasiado familiar.

Um cartaz antifascista exposto na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Foto: Marcelo Saya / EFE

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