EM 1995, FERNANDO HENRIQUE CARDOSO nomeou Geraldo Brindeiro como Procurador Geral da República. A escolha contrariou a Associação Nacional de Procuradores, a ANPR, mas o então presidente a justificou dizendo que queria um Ministério Público mais técnico, “menos politizado”. A atuação de Brindeiro foi marcada pelo completo alinhamento aos interesses do governo, o que fez o ex-presidente reconduzi-lo ao cargo outras três vezes.
O apreço pelo seu trabalho era tanto que FHC o renomeou mesmo após Brindeiro ser pego usando jatinho da FAB para viajar de férias com a família em Fernando de Noronha. Brindeiro engavetou o inquérito do escândalo da pasta rosa, engavetou a denúncia da compra de votos da emenda da reeleição e mais uma infinidade de corrupções foram foram para a gaveta. O histórico de arquivamento o fez ganhar a justa alcunha de “engavetador-geral da República”.
Insatisfeitos com a atuação de Brindeiro, procuradores passaram a realizar uma eleição interna para escolher uma lista com nomes para apresentar ao presidente da República. A primeira eleição foi em 2001, ainda durante o governo FHC, e Brindeiro apareceu apenas em 7º lugar. FHC, beneficiado pelo engavetamento em série, o reconduziu ao cargo mesmo assim. A partir de então, todos os presidentes passaram a levar em conta as sugestões do Ministério Público. O presidente não é obrigado a escolher um nome da lista, mas escolher um dos três primeiros colocados virou uma importante tradição republicana. É um rito que indica o respeito do governante à autonomia da instituição.Você sabe o que um Bolsonaro quer dizer com “sem viés ideológico”. Significa: “com o meu viés ideológico”.
Bolsonaro, que não cumpre nem as obrigações do cargo, rejeitou essa tradição. Não se esperaria nada de diferente de quem tem transformado o estado em uma empresa da família. O presidente tem usado o poder do cargo para se vingar de críticos, fazer estatais romperem contratos com desafetos, ameaçar jornalistas e nomear parentes para cargos importantes. O desprezo pela eleição da ANPR está dentro do padrão bolsonarista de destruição da democracia. A escolha do próximo PGR, portanto, atenderá unicamente aos critérios particulares da família que se apossou do Brasil.
A tradição da lista tríplice não é uma mera firula democrática, mas um meio importante para, entre outras coisas, combater a corrupção na política de forma independente. Isso não seria bom para quem tem um vasto currículo no ramo da “rachadinha” e do funcionalismo fantasma. Esse é um dos objetivo óbvios para a escolha de um PGR alinhado ao bolsonarismo. Afinal de contas, é preciso blindar aqueles que sugaram R$ 65 milhões dos cofres públicos desde 1991 — distribuindo empregos para amigos, familiares, e até para parentes de chefe do crime organizado do Rio de Janeiro.
O senador Flávio Bolsonaro, cheio de denúncias de corrupção nas costas, nem disfarçou ao anunciar que a PGR será aparelhada:
“Acho que essa vai ser uma decisão das mais importantes que o presidente vai tomar porque o Ministério Público, como fiscal da lei, pode interferir em diversas áreas que, para nós, são importantes que não sejam dominadas por pessoas que ideologicamente são contra o que a gente pensa. (…) A gente vai ter no Ministério Público pessoas que vão compreender não o resultado da eleição apenas, vão agir dentro da lei, vão agir sem o viés ideológico.”
Você sabe o que um Bolsonaro quer dizer com “sem viés ideológico”. Significa: “com o meu viés ideológico”. Não bastará ser um procurador de direita, mas um de extrema direita disposto a proteger o projeto de dilapidação da democracia. A família Bolsonaro quer um engavetador-geral de estimação.
Desde a semana passada, o presidente já recebeu quatro candidatos à sucessão de Raquel Dodge, mas fez questão de deixar de fora os três eleitos pelos procuradores. Ele tem conversado apenas com candidatos indicados por bolsonaristas. Quem desponta como favorito na imprensa é Augusto Aras, um subprocurador que, no passado, apoiou o ex-presidente Lula, defendeu ideias progressistas, já fez críticas à Lava Jato e há três anos acusou a direita radical de explorar a “doutrina do medo”. O nome contraria o discurso de Flávio Bolsonaro e fez a militância bolsonarista iniciar campanha contra sua indicação nas redes sociais. Como bom bolsominion que é, Sergio Moro também não gostou do nome e fez chegar o seu incômodo aos ouvidos do presidente.
Aras foi indicado por um amigo que ele tem em comum com o presidente, o deputado Alberto Fraga (DEM-DF). O ex-coronel, que é da bancada da bala e está envolvido em denúncias de corrupção, é bastante próximo de Bolsonaro e desfruta da sua confiança. O compadrio é o grande trunfo de Aras, e o seu suposto perfil progressista não parece ser tão sólido assim.
A ex-procuradora, ex-líder do Revoltados Online e atual deputada federal de extrema direita do PSL do Distrito Federal Bia Kicis tem feito campanha pelo nome do subprocurador-geral Paulo Gonet, que foi sócio de ninguém menos que Gilmar Mendes (o nêmesis da Lava Jato no Supremo) no Instituto Brasiliense de Direito Público, o IDP. Kicis, que sugeriu que Bolsonaro poderia ordenar uma intervenção militar no STF, tem participado das reuniões do seu indicado com o presidente. Segundo a deputada, Gonet “prometeu que não irá atrapalhar” o governo. A promessa era pra ser um escândalo, mas como estamos no Brasil em 2019, Bia Kicis contou à imprensa como se fosse algo corriqueiro. Quantos casos envolvendo políticos bolsonaristas terão um desfecho justo nas mãos de um PGR que foi escolhido apenas por ser bolsonarista?
Ailton Benedito, o procurador que espalha fake news e reacionarismo nas redes sociais, também está entre os cotados, mas publicamente tem feito campanha para Gonet. Ele está desanimado porque teve seu nome vetado pelo MPF para um cadeira na Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos.
Outro candidato forte é o procurador regional Lauro Cardoso, que conta com apoio dos militares e da bancada do PSL. Antes de se tornar procurador, Cardoso foi capitão do Exército e delegado de polícia. Após a Vaza Jato, Cardoso ignorou todas as ilegalidades cometidas por seus colegas da Lava Jato. Segundo ele, “o que foi obtido é prova ilícita” e não “pode ser usada contra os colegas”, que “merecem todo apoio institucional do Ministério Público Federal”. Ou seja, esse candidato a chefe do MP aprova integralmente que procuradores atuem como foras da lei.
A independência é a razão de ser do MP. O órgão existe para fiscalizar o poder, e por isso não tem vínculos com Judiciário, Executivo e Legislativo. Subordinar o órgão é torná-lo inútil. Quantos casos envolvendo políticos bolsonaristas terão um desfecho justo nas mãos de um PGR que foi escolhido apenas por ser bolsonarista?
A indicação do presidente deverá ser anunciada nesta semana e ainda precisa ser aprovada pelo Senado. Será um bom teste para avaliar o quanto a casa está disposta a enfrentar o aparelhamento das instituições promovido pela extrema direita. Por enquanto, a única certeza que se tem é a de que Bolsonaro pretende transformar a PGR em uma extensão do governo federal, um puxadinho da Advocacia-Geral da União.
Se FHC tinha o seu “engavetador”, Bolsonaro agora pretende ter o seu Coveiro-Geral da República.
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Bosch: fragmento do Jardim das Delícias