POR MAIS QUE Bolsonaro e Sergio Moro finjam que não, a crise no casamento entre bolsonarismo e lavajatismo parece irreversível. Se durante a campanha eleitoral um se alimentou do outro, agora, com Bolsonaro no poder, as duas correntes começam a bater cabeça. Nas últimas semanas, o presidente tem se empenhado em sabotar Moro e controlar as rédeas da Lava Jato. O ex-superministro viu seus poderes sendo esvaziados e tem sido tratado com desprezo pelo presidente. Foram várias declarações, gestos e decisões que contrariam a cartilha lavajatista.
Os procuradores da Lava Jato estão indignados. Para eles, o presidente não está cumprindo a promessa de campanha de proteger a Lava Jato e ser implacável contra a corrupção. Dallagnol afirmou em entrevista: “O presidente Jair Bolsonaro, ao longo da campanha eleitoral, se apropriou de uma pauta anticorrupção. (…) Agora, o que nós vemos é que ele vem se distanciando desta pauta de quando coloca em segundo plano o projeto anticrime do juiz federal Sergio Moro. Ele coloca em segundo plano quando ele faz mudanças no Coaf e desprestigia o auditor da Receita Federal Roberto Leonel, que trabalhou na Lava Jato”.
Ora, quer dizer que os experientes procuradores acreditaram nas promessas de um candidato amigo das milícias que ostenta um vasto currículo no ramo das rachadinhas e do funcionalismo fantasma? É claro que não. Sejamos claros: a Lava Jato topou conscientemente embarcar na candidatura Bolsonaro porque viam nele a grande chance de evitar a vitória do PT. Apenas isso.
Não que Bolsonaro fosse o candidato dos sonhos dos lavajatistas. Alguns procuradores o chamavam de “Bozo” nos chats do Telegram. Mas o ódio aos petistas — confirmado pelo deboche com que os procuradores tratavam as mortes de parentes de Lula — era muito maior que a rejeição a Bolsonaro. Foi o antipetismo que selou a união entre o lavajatismo e o bolsonarismo, e não a preservação do combate à corrupção. O antipetismo era a cola que unia o bolsonarismo e a Lava Jato.
Numa das conversas no Telegram durante a campanha eleitoral, uma procuradora se disse “muito preocupada com uma possível volta do PT” e que rezaria muito para que isso não acontecesse. Dallagnol respondeu “Reza sim. Precisamos como país”. O candidato mais bem posicionado nas pesquisas era Bolsonaro.
Essa semana, o procurador Carlos Fernando Lima confessou que Bolsonaro era o candidato preferido entre os procuradores da Lava Jato e se mostrou decepcionado com a escolha:
“Existem lavajatistas que são a favor do Bolsonaro, evidente. Muito difícil seria ser a favor de um candidato (Haddad) que vinha de um partido que tinha o objetivo claro de destruir a Lava Jato.”
“Fernando Haddad representava justamente tudo aquilo que nós estávamos tentando evitar, que era o fim da operação. Agora, infelizmente, o Bolsonaro está conseguindo fazer”
Ou seja, o procurador usou o medo do PT para justificar o apoio a Bolsonaro. Curioso lembrar que há três anos, às vésperas do impeachment, o mesmo Carlos Fernando elogiou o modo como os governos do PT deram autonomia e condições técnicas para a Lava Jato trabalhar:
“Aqui temos um ponto positivo que os governos investigados do PT têm a seu favor. Boa parte da independência atual do Ministério Público, da capacidade técnica da Polícia Federal decorre de uma não intervenção do poder político, fato que tem que ser reconhecido”.
Um ano antes dessa declaração, Dilma havia reconduzido Janot, um parceiro da Lava Jato, à PGR, enfrentando a pressão de Eduardo Cunha e do PMDB para que indicasse outro nome. Nessa época, grandes líderes do PT já estavam presos e outros tantos prestes a ser condenados. O fato agravou a crise entre Dilma e Cunha e o MDB, o que acabaria culminando com o impeachment. O temor alegado por Carlos Fernando, portanto, não se justifica.
Os governos do PT tiveram problemas de sobra, mas obstruir a Lava Jato não foi um deles, como atestado pelo próprio procurador. Fica claro que a adesão ao bolsonarismo não foi por autopreservação como ele hoje quer dar a entender.
Bolsonaro pegou carona na popularidade da Lava Jato. O fato dele não ter aparecido nas investigações (Paulo Guedes apareceu, mas foi poupado) da operação foi o seu maior trunfo eleitoral. Ele pôde se apropriar da narrativa anticorrupção e se apresentar como o homem que nos salvaria da velha política. Agora, no poder, a Lava Jato já não interessa mais. Além da fritura lenta à qual Moro está sendo submetido, Dallagnol agora é chamado de “esquerdista estilo PSOL” em texto compartilhado pelo presidente.
O tiozão desbocado que vociferava contra a velha política não era apenas o candidato escolhido pelos procuradores da Lava Jato, mas um produto construído por eles ao longo dos anos. Se em boa parte do tempo essa construção se deu de forma inconsciente, a partir das eleições se tomou a decisão política de apoiá-lo, ainda que de forma subterrânea. A força-tarefa não apenas pavimentou o caminho, como é co-autora da chegada do bolsonarismo ao poder.
Com o apoio da imprensa, a Lava Jato arrasou a classe política brasileira, minou os partidos e preparou o terreno para o picareta do baixo clero surgir reluzente em meio aos escombros.
O antipetismo era a cola que unia o bolsonarismo e a Lava Jato. Com Lula preso e o PT enfraquecido no jogo do poder, o antipetismo virou uma alegoria que só serve pra atiçar a manada das redes sociais. Na vida real da política, usar o espantalho do PT já não tem mais tanta serventia. Se antes a união entre as duas correntes era interessante para as duas, agora já não é mais. As máscaras caíram, e a realidade se impôs: nem a Lava Jato é imparcial, nem Bolsonaro é implacável contra a corrupção.
Dallagnol planejava criar um monumento para homenagear a Lava Jato. Nos seus sonhos, a escultura seria formada por dois pilares caídos e um em pé. O em pé simbolizaria a Lava Jato, enquanto os caídos representariam o sistema político e o de justiça. Ficou faltando um outro pilar em pé: o do bolsonarismo.
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Imagem: Outras Palavras