PM ministra pouquíssimas aulas de Direitos Humanos. Humilha e expõe soldados a rígida hierarquia. Ensina que inimigos têm classe e cor e pune pensamento crítico – mas, cinicamente, atribui atos violentos a casos isolados
por Almir Felitte, em Outras Palavras
Nesta semana da Consciência Negra, reproduzo, abaixo, capítulo de artigo que originalmente publiquei na Revista Brasileira de Ciências Criminais1, abordando a relação entre o militarismo, o preconceito e o racismo nas polícias do Brasil:
O isolacionismo, a rigidez hierárquica e a pretensa superioridade em relação ao restante da sociedade civil, traços já elencados como característicos do militarismo, criam um ambiente propício a comportamentos preconceituosos, muitas vezes pautados em questões classicistas e raciais, e a práticas que, por vezes, violam os Direitos Humanos.
Parte desses traços comportamentais negativos se deve, ainda, à carência do ensino referente aos Direitos Humanos na formação dos policiais militares. No Curso de Formação de Oficiais da Academia do Barro Branco, em São Paulo, por exemplo, a disciplina somente surgiu em 1994, denominada Direito Internacional Humanitário, passando a ser chamada de Direitos Humanos a partir de 2000. Nesse período, porém, a disciplina pouco evoluiu na Academia, já que em 1994 ela ocupava 1,01% da carga horária total do curso, enquanto em 2013 ela ocupou somente 1,47% da mesma.
Porém, ainda que a Academia do Barro Branco demonstre uma enorme carência curricular no que se refere à matéria de Direitos Humanos, ela ocupa posição de destaque se comparada a outras Academias do país. A disciplina integra parcelas ainda menores do currículo dos cursos de formação de oficiais de outros estados, como Santa Catarina (1,07%) e Paraná (0,68%).
Diante de tal quadro, não é surpresa o resultado de uma pesquisa realizada em 2000 pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) com integrantes da PM mineira que, ao afirmar que “os direitos humanos atrapalham e dificultam o trabalho de controle do crime no Brasil”, obteve a concordância de 47% dos oficiais e de 68% dos praças entrevistados. Quanto à afirmação de que “o policial militar, hoje, encontra-se impossibilitado de realizar bem seu trabalho, já que existem muitas leis que garantem direitos aos criminosos”, 42% dos oficiais e aproximadamente 70% dos praças concordaram com a mesma2.
Acerca do tema, ao encontro do exposto pela pesquisa, Benevides3 explica que há uma manipulação voluntária, por parte das elites, sobre a opinião pública, no sentido de que os Direitos Humanos estariam relacionados à “bandidagem” ou à “criminalidade”. Tal manipulação é motivada pela grande desigualdade social característica da sociedade brasileira, já que o estigma criado sobre os Direitos Humanos seria uma forma de criminalizar as classes mais pobres, associando-as à criminalidade e ao banditismo. Desse modo, circunscreve-se a violência apenas aos marginalizados, o que justifica o rigor da polícia com os mesmos.
No contexto da formação policial, o pequeno espaço ocupado pela disciplina de Direitos Humanos tem como consequência uma série de deficiências no conteúdo da matéria ministrada. Conforme aponta Adilson Paes de Souza4, no Curso de Formação de Oficiais em São Paulo, por exemplo, na disciplina de Direitos Humanos, quanto aos documentos internacionais, há referência expressa somente ao Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e ao Pacto Internacional de Direitos Econômicos e Sociais. Documentos como a Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica, a Declaração e o Programa de Ação de Viena ou, ainda, uma série de outros tratados e convenções internacionais que versam sobre os direitos das minorias e a coibição da tortura, não são mencionados no curso.
A ausência de menção a tais documentos internacionais denota uma carência na grade curricular no que tange os Direitos Humanos, principalmente no concernente à relação da polícia com as minorias e à prática da tortura. Esta insuficiência, acompanhada da rigidez na formação militar, pautada no isolamento e na estrutura hierárquica, tem como consequência um crescente preconceito dentro da instituição da polícia militar, bem como uma série de casos de violações dos Direitos Humanos e uso excessivo de força contra grupos considerados minorias na sociedade.
Sobre a rigidez da formação militar e sua relação com as práticas abusivas de policiais, interessante analisar o conceito elaborado por Adorno. Para o autor, a ideia de que a virilidade consiste na máxima capacidade de suportar dor converteu-se em fachada de um masoquismo que se identifica facilmente com o sadismo. Assim, uma educação cujo objetivo seja ‘ser duro’ significa indiferença contra a dor em geral, pouco se diferenciando a dor do outro e a de si próprio. Ou seja, “quem é severo consigo mesmo, adquire o direito de ser severo também com os outros, vingando-se da dor cujas manifestações precisou ocultar e reprimir.” Diante de tal análise, o autor conclui que é necessário “a promoção de uma educação que não premie a dor e a capacidade de suportá-la”5.
Quando analisadas as ações policiais no combate ao crime, é possível perceber as práticas abusivas e violentas dos agentes da instituição como consequência da rígida formação militar. Isso porque, conforme ensina Candido, a polícia é um agente que viola a personalidade, tomando do homem seus recursos de equilíbrio através da brutalidade profissional, utilizando-se do medo, que para ele é um ‘ingrediente de alta eficácia’ para a realização das atividades policiais. Desse modo, a força da polícia “consiste em opor o ‘outro’ ao ‘eu’, até que seja absorvido por aquele, e, deste modo, esteja pronto para o que se espera dele: colaboração, submissão, omissão, silêncio”6.
Nesse sentido, a tortura praticada pelo policial militar não seria somente fruto do sadismo, mas também de uma política estatal de repressão aos dissidentes que se utiliza da brutalidade física e psicológica para conseguir informações ou confissões forçadas. Causando o sentimento de que o torturador tem o absoluto controle, a resistência da vítima é minada, o que lhe causa a confusão mental e o desespero, levando-a, até mesmo, a assumir atitudes que não fez7. Importante ressaltar que o conceito de “dissidentes”, porém, é pautado em critérios altamente subjetivos e de caráter extremamente preconceituoso, levando-se em conta, muitas vezes, aspectos do indivíduo que dizem respeito à cor da sua pele ou sua classe social.
Esse conceito resta claro através da análise de um estudo realizado pelo Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos (GEVAC) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)8. Tal estudo, em parceria com a Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo, coletou dados sobre mortes provocadas por policiais militares entre 2009 e 2011, totalizando 734 casos envolvendo 939 vítimas, trazendo um enfoque na idade e na cor/etnia destas.
Este estudo concluiu que, do total de vítimas da letalidade policial no Estado de São Paulo, 61% eram negras, enquanto 39% eram brancas. Através destes dados, tomando como base o ano de 2011, o relatório concluiu, ainda, que a letalidade policial é maior sobre a população negra, já que as taxas de mortos por 100 mil habitantes, dentro de cada grupo de cor/raça, é de 1,4 entre os negros e de 0,5 entre os brancos.
Estes números, porém, não se justificam apenas pela insuficiência da disciplina de Direitos Humanos na formação dos militares. É preciso que se faça uma análise que demonstre o militarismo como uma ideologia que acolhe tais preconceitos e cria ambientes férteis para o crescimento destes, não podendo ser considerados, desse modo, os atos violentos motivados por preconceitos como casos isolados ou de cunho individual.
Tal procedimento equivocado, aliás, é comumente praticado nas polícias militares, conforme aponta Paes de Souza9. O autor afirma ser corriqueiro, toda vez que um policial militar apresenta um comportamento de elevada reprovação social, o Comando da Corporação alegar que se trata de um fato isolado que diz respeito exclusivamente à pessoa do policial envolvido. O equívoco consiste no fato de que o preconceito é um fenômeno individual e social, não devendo ser atribuída somente ao indivíduo a responsabilidade pela prática de determinado ato, vez que a análise do ambiente em que o mesmo convive e dos valores professados pelo grupo a que pertence ficaria excluída.
Nessa mesma linha, Bobbio10 define o preconceito como uma opinião ou, até mesmo, uma doutrina completa, acolhida de forma acrítica e passiva através da tradição, do costume ou de uma autoridade de quem aceitamos ordens sem discussão. Esta aceitação se dá por inércia, respeito ou temor, resistindo a qualquer refutação racional feita com base em argumentos racionais.
Portanto, o preconceito é um fenômeno que extrapola a esfera individual, tem raízes sociais e está intimamente relacionado ao ambiente que cerca cada indivíduo. Diante disso, o que se intenta demonstrar aqui é a relação entre o preconceito e o militarismo, evitando-se a individualização de tal comportamento, caracterizando-o como um traço desta ideologia. Além disso, importante ressaltar que o preconceito deve ser analisado, principalmente, a partir da figura de quem o pratica ativamente, e não de quem o sofre passivamente.
Nesse sentido, Crochik11 faz uma interessante análise sobre o tema. O autor afirma que a tendência que o indivíduo preconceituoso tem de desenvolver preconceitos em relação a diversos objetos indica que sua forma de atuação independe das características dos objetos alvos, pois estes são distintos entre si. Desse modo, “o preconceito diz mais respeito às necessidades do preconceituoso do que às características de seus objetos, pois cada um deles é imaginariamente dotado de aspectos distintos daquilo que eles são”.
Ao tomar a instituição da Polícia Militar como o sujeito ativo no que tange ao preconceito, devem-se levar em conta seus aspectos para que se determine tal comportamento como traço característico da corporação. Nesse sentido, o ambiente de formação do militar na forma em que se apresenta constitui-se em um terreno fértil para o crescimento de ideias fundadas em preconceitos.
Isso porque tal ambiente isola o indivíduo do restante da sociedade civil para que este rompa os laços com seus antigos valores, facilitando, dessa maneira, uma nova educação do indivíduo baseada em novos valores, puramente militares e, muitas vezes, conflitantes com os civis. Este ambiente isolado, porém, tem como característica a rigidez hierárquica e a ação vinculada a um comando externo, o que retira de seus integrantes a capacidade e a possibilidade de experimentar e refletir sobre si mesmo e sobre os outros nas relações sociais. Para Crochik12, é essa impossibilidade que leva o indivíduo a desenvolver preconceitos.
Paes de Souza13 contextualiza este conceito, aduzindo que, numa instituição fechada como a Polícia Militar, na qual existem regras rígidas que visam o controle de todos seus integrantes, a manifestação do pensamento crítico e de questionamentos é inibida, fazendo com que seus membros percam sua autonomia. Assim, em uma organização em que as ações de seus integrantes estão condicionadas a um comando externo que os reprime, o resultado é a “constituição de indivíduos frágeis com uma insegurança constante, que suscita o preconceito para afirmar uma identidade que não possui”.
Analisando o que o autor chama de componente cognitivo do preconceito, referente ao estereótipo, tem-se que este se associa ao estabelecimento de “soluções padrão” e ao “mecanismo de rotulamento”, através do qual “se atribui um rótulo às pessoas” que será sempre utilizado, independente da individualidade de cada situação. Esta prática é muito comum na Polícia Militar, que frequentemente rotula pessoas como suspeitas baseadas em conceitos de classe social, região em que habita ou cor de pele.
O uso de estereótipos pelos policias militares evita o questionamento das condições sociais que contribuíram para um crime, pois o uso de dicotomias como ‘bom/mau’, ‘certo/errado’ e ‘saudável/ não saudável’ exclui a análise crítica do que teria levado um indivíduo a praticar um delito. Assim, o preconceito enraizado na instituição serve como justificativa para o próprio policial militar e, muitas vezes, até mesmo para parte da população, para um ato violento e ilegal praticado por ele.
A constatação e conceituação deste traço comportamental da Polícia Militar são de suma importância para a análise do traço militarista que, hoje, chamamos de “ideologia do inimigo”.
1 FELITTE, Almir Valente; PONZILACQUA, Marcio Henrique Pereira. O impacto social da organização militar da polícia. Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 132. ano 25. p. 193-217. São Paulo: Ed. RT, jun. 2017.
2 LINS, B. J. R. L. Breves reflexões sobre segurança pública e permanências autoritárias na Constituição Federal de 1988. Revista de Direito Brasileira, v. 1, jul. 2011. p. 173.
3 BENEVIDES, M. V. M. Cidadania e Direitos Humanos. In: CARVALHO, José Sérgio. (Org.). Educação, Cidadania e Direitos Humanos. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 43-65.
4 SOUZA, A. P. O Guardião da Cidade: reflexões sobre casos de violência praticados por policiais militares. São Paulo: Escrituras Editora, 2013.
5 ADORNO, T. Educação após Auschwitz. Disponível em: <http://adorno.planetaclix.pt/tadorno10.htm>. Acesso em: 02 ago. 2014.
6 CANDIDO, A. A Verdade da Repressão. Revista USP, n. 9, 1991. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/25544>. Acesso em: 01 ago. 2014. p. 28.
7 SOUZA, op. cit.
8 SINHORETTO, J. et. al. Desigualdade Racial e Segurança Pública em São Paulo: letalidade policial e prisões em flagrante. Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos da UFSCar. Disponível em: <http://www.ufscar.br/gevac/wp-content/uploads/A1rio-Executivo_Desigualdade-racial-e-seguran%C3%A7a-p%C3%BAblica-em-SP.pdf>. Acesso em: 01 ago. 2014.
9 SOUZA, op. cit., p. 120.
10 BOBBIO, N. Elogio da serenidade e outros escritos morais. São Paulo: Editora Unesp, 2002. p. 103.
11 CROCHIK, J. L. Preconceito, Indivíduo e Cultura. 3. ed. São Paulo: Editora Casa do Psicólogo, 2006.
12 Ibidem.
13 SOUZA, op. cit., p. 126.