O compromisso da Defensoria com os mecanismos de combate à tortura no Brasil

Por Hugo Fernandes Matias, Conjur

O Brasil é signatário do Protocolo Facultativo à Convenção das Nações Unidas Contra a Tortura (OPCAT)[1], razão pela qual deve estabelecer “um ou mais mecanismos preventivos nacionais independentes para a prevenção da tortura em nível doméstico”, art. 17, sem prejuízo da possibilidade de estabelecer mecanismos em unidades descentralizadas, o que, em nossa federação abarca Estados e o Distrito Federal.

Em 2013, foi promulgada a lei 12.847 que instituiu o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (SNPCT), bem como criou o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT) e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT).

O MNPCT, protagonista na prevenção e combate à tortura no país, tem como principais atribuições: realizar visitas periódicas a locais de privação de liberdade; articular-se com o Subcomitê de Prevenção da Tortura (SPT) da Organização das Nações Unidas (ONU); requerer a instauração de procedimento criminal e administrativo em caso de constatação de tortura; elaborar relatórios de cada visita e remetê-los às autoridades competentes; elaborar relatório anual de atividades; confeccionar recomendações; publicar seus relatórios; e sugerir propostas e observações acerca da legislação, tudo conforme art. 9º, da referida lei.

De acordo com o art. 2º, §2º, da lei 12.847, o Sistema Nacional de Prevenção à Tortura pode ser composto por diversos órgãos, ganhando relevo para nosso objeto a menção aos comitês e mecanismos estaduais, bem como à Defensoria Pública (DP). Aliás, os artigos 6º, VII e 8º, § 5º, da lei expressamente dispõem sobre a possibilidade de criação de comitês e mecanismos estaduais de prevenção e combate à tortura.

Segundo dados do governo federal[2], até julho de 2019 o Brasil contava com 22 comitês estaduais criados, excepcionando-se, assim, os Estados de Roraima, Mato Grosso, Tocantins, São Paulo[3] e o Distrito Federal. Em relação aos mecanismos estaduais o avanço foi mais tímido, sendo estes verificados em apenas 10 Estados, quais sejam, Amapá, Maranhão, Espírito Santo[4], Alagoas, Sergipe, Mato Grosso do Sul, Paraíba, Pernambuco, Rio de Janeiro e Rondônia. Ocorre que somente os mecanismos dos 04 últimos se encontram em efetivo funcionamento[5].

Disso se extraem pelo menos 03 dificuldades: a primeira é que muitas unidades da federação ainda não criaram órgãos específicos para a prevenção e combate à tortura. A segunda, é que há uma aparente resistência em relação aos mecanismos estaduais, talvez, em parte, pelo receio de uma eventual exposição de práticas ligadas à tortura, tratamentos desumanos ou degradantes em âmbito local. E a terceira aponta para os casos de órgãos criados mas que não se encontram em funcionamento efetivo.

Os mecanismos estaduais têm um papel relevante na prevenção e proteção contra a tortura de pessoas privadas de liberdade, embora, outros órgãos, como o Ministério Público, Defensoria Pública, Poder Judiciário e Conselho Penitenciário, também tenham atribuição legal de efetuar inspeções em locais de privação de liberdade, como se extrai, por exemplo, da lei 7.210/84 (LEP).

Ocorre que os mecanismos têm algumas especificidades, dentre as quais destacam-se o fato de que eles são focados na prevenção à tortura, tratamentos cruéis ou degradantes; são formados por equipes multidisciplinares com membros escolhidos através de processo aberto, levando-se em consideração a busca por equilíbrio de gênero e representação adequada de grupos étnicos e minorias; possuem poderes e prerrogativas específicas para o desempenho de suas atividades[6].

Por isso, muito embora a inspeção de locais de privação de liberdade não seja exclusividade dos mecanismos, é possível dizer que eles atuam tendo como pauta principal a questão da prevenção e combate à tortura, o que, aliado à composição de suas equipes, lhes diferencia dos demais órgãos.

Anote-se que o mecanismo nacional se encontra hoje sub judice, funcionando através de liminar concedida pela justiça federal da 2a região em ação civil pública da Defensoria Pública da União (DPU)[7]. Além disso, a Procuradoria-Geral da República (PGR) ingressou com ADPF[8] no Supremo para discutir alterações do governo federal na estrutura do órgão nacional[9], valendo registrar a entrada de diversas Defensorias Públicas Estaduais como amici curiae no feito[10].

Um grande desafio para as Defensorias é se inserir nas lutas pela efetiva implantação e funcionamento dos mecanismos estaduais de prevenção e combate à tortura em suas respectivas unidades federativas, a fim de que o Estado brasileiro cumpra com seus compromissos internacionais[11].

Com a sedimentação da legitimidade da Defensoria Pública para demandas coletivas, em muitos casos versando sobre políticas públicas, cabe à Instituição se articular com a sociedade civil e Poder Público para a criação de comitês e mecanismos nas unidades da federação que ainda não contam com tais equipamentos. E mais, naquelas que já contam com esses órgãos, a Defensoria Pública deve atuar para efetivar e fortalecer seu funcionamento.

Isso porque, é importante lembrar, o país possui a 3a maior população carcerária do mundo[12] e tem apenas 11 peritos no mecanismo nacional, conforme art. 8º, § 1º, da lei 12.847. Além disso, grande parcela de adolescentes, jovens e adultos privados de liberdade[13] não tem condições de custear os serviços de advogados, sendo, portanto, considerados necessitados econômicos para fins de atuação da Defensoria Pública.

Agora um detalhe: a tortura, os tratamentos desumanos ou degradantes, quando inseridos num contexto de prática de estado atingem coletividades, independentemente do eventual patrocínio por advogado privado ou Defensoria Pública, reforçando, assim, uma vulnerabilidade inerente ao cárcere. E mais, muitos dos processos internacionais contra o Estado brasileiro no sistema interamericano de direitos humanos versam direta ou indiretamente sobre o tema[14], alguns inclusive com participação ativa da Defensoria[15].

Assim sendo, implementar e fortalecer políticas locais de prevenção e combate à tortura, em especial com a efetivação de mecanismos independentes, e com autonomia financeira e estrutural[16], deve se tornar uma das prioridades da Defensoria Pública brasileira, inclusive para fins de se potencializar o sistema nacional. Aliás, é a própria LC 80/94 que em seu 4º, XVIII, traz a temática da proteção das pessoas contra a tortura para o rol de funções institucionais da Defensoria Pública; faz parte do nosso DNA[17].

Por último, sublinhe-se que o compromisso da Instituição com as políticas locais de prevenção e combate à tortura é essencial para que possamos avançar na luta contra esse flagelo que infelizmente ainda se encontra presente em nosso país[18] e que tem impedido a construção de uma sociedade mais justa e solidária, tal como visava a Constituição após a redemocratização, em 1988.

[1] Listagem de países que contam com mecanismos nacionais de prevenção à tortura disponível em: https://apt.ch/en/opcat-database/ Acesso em 30 dez. 2019.

[2] Conferir em: https://www.mdh.gov.br/prevencao-e-combate-a-tortura/comites-e-mecanismos-estaduais-de-prevencao-e-combate-a-tortura. Acesso em 22 dez. 2019.

[3] Em janeiro de 2019, foi vetado projeto de lei que instituiria Comitê e Mecanismo do Estado de São Paulo: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2019/01/17/doria-veta-criacao-de-comite-contra-tortura-em-sao-paulo.ghtml. Acesso em 22 dez. 2019.

[4] Recentemente foi aprovada emenda parlamentar no projeto de Plano Plurianual (PPA 2020/23) destinada à implementação e aparelhamento do mecanismo estadual do Espírito Santo: https://seculodiario.com.br/public/jornal/materia/emenda-viabiliza-recursos-para-prevencao-e-combate-a-tortura-no-estado. Acesso em 22 dez. 2019.

[5] Conferir em: https://www.conectas.org/noticias/entenda-a-importancia-do-mecanismo-de-combate-a-tortura. Acesso em 03 jan. 2020.

[6] Brasil. Presidência da República. Secretaria de Direitos Humanos. Questões fundamentais para prevenção à tortura no Brasil/Coordenação Geral de Combate à Tortura (ORG) – 1a ed. – Brasília. Secretaria de Direitos Humanos, 2015.

[7] Conferir em: https://www10.trf2.jus.br/portal/trf2-mantem-liminar-garantindo-cargos-de-peritos-do-mecanismo-nacional-de-prevencao-e-combate-tortura/. Acesso em 22 dez. 2019.

[8] Conferir em: http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/pgr-propoe-adpf-contra-decreto-que-esvazia-mecanismo-de-prevencao-e-combate-a-tortura. Acesso em 22 dez. 2019.

[9] Em parecer tornado publico em sua 39a sessão, em novembro de 2019, o SPT entendeu que o Decreto Presidencial nº 9.831/19 enfraqueceu a política de prevenção à tortura no Brasil. E por isso opinou por sua revogação a fim de que o mecanismo nacional brasileiro possa funcionar de forma independente, com autonomia estrutural e financeira. Documento disponível em: https://www.ohchr.org/Documents/HRBodies/OPCAT/NPM/Views_NPM_Brazil.pdf. Acesso em 03 jan. 2020.

[10] Conferir em: . Acesso em 22 dez. 2019.

[11] O tema já foi apresentado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos em audiência pública celebrada no seu 167º período de sessões, em 01.03.2018: “Situación de derechos humanos de las personas privadas de libertad en Brasil”: http://www.oas.org/es/cidh/prensa/comunicados/2018/041A.asp. E também no 173º período de sessões, em 27.09.2019: “Combate a la tortura en Brasil”: http://www.oas.org/es/cidh/prensa/comunicados/2019/248A.pdf. Acesso em 22 dez. 2019.

[12] Conferir em: . Acesso em 03 jan. 2020.

[13] A atuação no combate e prevenção à tortura também abarca privação de liberdade em instituições não ligadas ao aparelho criminal do Estado, como por exemplo as chamadas comunidades terapêuticas: http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/publicacoes/saude-mental/relatorio-da-inspecao-nacional-em-comunidades-terapeuticas-2017. Acesso em 28 dez. 2019.

[14] Conferir notícia sobre o chamado super caso contra o Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos em:https://www.conectas.org/noticias/prisoes-brasil-tera-de-se-explicar-a-oea. Acesso em 22 dez. 2019

[15] Conferir Resolução 40/19, MC 379/19 – Penitenciária Evaristo de Moraes, Brasil, disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/decisiones/pdf/2019/40-19MC379-19-BR.pdf; Resolução 43/16, MC 302/15 – Adolescentes privados de liberdade no Centro de Atenção Socioeducativo do Adolescente (CASA), Brasil, disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/decisiones/pdf/2016/MC302-15-ES.pdf; e por fim: https://emporiododireito.com.br/leitura/defensoria-publica-solicitou-seu-ingresso-como-amicus-curiae-em-caso-tramitando-na-corte-interamericana-de-direitos-humanos-caso-unis-1508244638. Acesso em 22 dez. 2019.

[16] Ver artigos 17 e 18, itens 1 e 3, do protocolo facultativo.

[17] Nesse sentido: http://www.defensoria.go.def.br/depego/index.php?option=com_content&view=article&id=1777:condege-emite-nota-sobre-alteracao-no-funcionamento-e-composicao-do-mecanismo-nacional-de-prevencao-e-combate-a-tortura&catid=8&Itemid=180. Acesso em 22 dez. 2019.

[18] Conferir relatório do SPT sobre visita ao Brasil em 2011, disponível em: http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/publicacoes/tortura/relatorio_visita_ao_Brasil_subcomite_prevencao_tortura_jun2012. Ainda: http://acnudh.org/pt-br/prevencao-da-tortura-no-brasil-serios-desafios-continuam-mas-e-possivel-avancar-peritos-da-onu-concluem/. Acesso em 22 dez. 2019.

Imagem: Creative Commons. Das Wortgewand en Pixabay

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