A insanidade dos 400 dias de governo Bolsonaro

400 dias de governo Bolsonaro que pareceram um retrocesso de 400 anos como o da Inquisição.

Por Leonardo Ferreira Pillon, no Justificando

São descasos com a educação e a saúde públicas, são projetos de leis que empobrecem o Brasil, são estímulos a condutas lesivas à Natureza, são postagens e discursos nazistas em cargos de chefia que vão desde racismo, xenofobia, classismo, mentiras, discriminações, ofensas com uso de linguagem deplorável em entrevistas, censura de meios de comunicação de oposição ao governo. Nossa reflexão busca sair do olho do furacão um pouco, sem apontar o dedo ao outro como o maior problema, afinal culpar somente o outro é a forma mais evasiva de lavar as mãos.

Pensamos que as declarações de Bolsonaro nada mais são do que o lado de desumanidade, de sombra, de preconceitos e ódios que nós, enquanto seres humanos, ainda não superamos. A sua posição de poder como Presidente permite atrair a atenção e dessa atenção é que se retroalimentam seus micropoderes, os micropoderes das relações interpessoais e mesmo das relações mais introspectivas de cada ser individuado com seus próprios pensamentos e vontades. As manifestações do espírito regurgitando discursos de ódio são tão íntimas quanto públicas e cada postagem desse fascismo global denuncia mesmo a nossa desumanidade, a nossa incapacidade de lidar com o diferente, de transitar uma vida entre civilizações e povos com um estatuto de igualdade preservado.

Quando Bolsonaro ou Trump destilam suas loucuras na internet, há milhares de reações. Essas reações variam desde o aplauso de uma plateia que finalmente vê o seu lado mais íntimo sendo livremente declarado aos quatro ventos, justamente aquele lado que não podia mais ser dito e nem por isso deixou de existir e crescer. Esse lado, a nosso ver, é o calcanhar de Aquiles dos direitos humanos, a incapacidade dessa categoria de ter humanizado a geopolítica entre Estados, as relações entre povos, as relações interpessoais e a consciência da humanidade.

Há também aqueles que insistem em argumentar com a loucura, conferindo-lhe uma presunção de razão, outorgando intrinsecamente um respeito ao desrespeito, um raciocínio ao irracional, uma inteligência à ignorância. Essa é a conclusão lógica subentendida com a argumentação pela razão frente à loucura. Diante dessa insanidade, só mesmo podemos buscar impedir o louco de causar danos, não há como oferecer o tratamento sanitário da loucura com a razão. Com a loucura convive-se, rimos com ela, gargalhamos das suas lógicas simplificadoras, mas não a isolamos, nem a condenamos como se fosse capaz de raciocinar logicamente sobre o que está declarando. A loucura não raciocina logicamente, apenas é a externação da relativa desordem.

Onde reina a desordem, o louco é capitão, e quem não o segue, decapitado. Pois o remédio é rir do louco que perderá sua autoridade, é melhorar a comunicação com as diferenças reais na vida cotidiana entre o que é o nosso projeto de sociedade e o que não é o projeto do louco, é falar menos a partir do intelecto e a razão que se mostraram incapazes diante da sociedade em certos períodos como o ocorrido com Sócrates ou Galileu nos ensinam. Falar com as multidões é também fascinar e a razão per si não fascina, pode impressionar, mas não fascina. O sentimento, a grandeza, os arquétipos da verdade absoluta, do amor incondicional, da justiça implacável podem fascinar assim como a destruição, a guerra, a luta contra o inimigo, a submissão do ser para redenção qualquer que seja o seu custo humano, social, mental, familiar.  O poder do louco e, por extensão de quem o sustenta emprestando à farda ou ao terno uma serventia declaradamente fascista, é a condução das multidões ao êxtase pela destruição. 

Manter a euforia coletiva é uma estratégia de dominação, domesticação, que funcionaliza muito além de uma cortina de fumaça: o seu efeito é a hipnose coletiva, imobiliza o gado e orienta a reação da plateia durante seu espetáculo de horrores. Por gado, entendemos os 30% de apoio incondicional ao governo insano; por plateia, a esquerda reagindo de acordo com o foco esperado a cada declaração e medida sem nexo com a realidade. É um mecanismo eficiente para “tornar palatáveis” as medidas reais colocando o insano e o real no mesmo nível e mantido pelo fluxo de comunicação via manipulação de massas através de publicidade baseada em dados sensíveis de perfis pessoais.

Há profetas – tendo a profecia como alegoria de lideranças sobre multidões – de diferentes posições sociais e matrizes (religiosas, acadêmicas, políticas, jurídicas, etc) que não concordam com isso, mas enquanto a multidão estiver em êxtase suas falas não terão muito a ganhar se enfrentar o poder posto, colocando à prova a fidelidade da multidão convertida à outra liderança ainda que esta liderança transitória esteja completamente em desordem mental. Desordem mental afinal defender violência, perseguir a ciência, humilhar as pessoas pobres, proferir declarações fora da realidade é a mais pura expressão insanidade.

Um problema que persiste sem solução é: vencida essa etapa da loucura, virá a seguir uma sobriedade com dois polos em disputa, um do judiciário e outro dos militares, ambos poderes que estão em sustentação parcial e relativa dessa loucura. Repito, parcial e relativa: se havia algo de podre no reino da Dinamarca, é nesse podre que reside o problema, uma questão de não admitir ratos exercendo um poder que não lhes pertence. Como tornar sua responsabilidade [do podre] evidente por esse estado de coisas insano? Se ao louco não podemos responsabilizar, apenas rir dele e impedir de causar danos, outro deve ser o tratamento de quem ostenta a ordem mental em dia e está compartilhando dessa destruição. Ao louco, as gargalhadas; aos com sanidade mental, as responsabilidades do acerto de contas pela omissão, pelo abuso de poder, pela não resistência às ordens manifestamente ilegais.

Essas responsabilidades não podem ser feitas como em Nuremberg, uma fachada de julgamento ad hoc. Elas hão de se fazer existir num processo de construção coletiva desde agora permanentemente cobradas, minunciosamente depuradas, nominalmente apontadas e, como condição sine qua non, através e com as multidões num novo êxtase conduzido pela justiça implacável e pela verdade absoluta. Talvez essas sejam as maiores limitações que enfrentamos: a de não desejar ambas. Foi com a relativização de ambas que entregamos a democracia à insânia. Foi também mediante um processo injusto, porém isso pouco importa quando multidões fazem linchamentos físicos ou simbólicos, o êxtase destrutivo ignora seus efeitos colaterais. Se a vida imita a arte e vice-versa, todo cuidado com o fascismo é pouco e o seu processo de negação e esquecimento coletivo funcionaliza a sua repetição.

Eu presto atenção no que eles dizem, mas eles não dizem nada
Toda forma de poder é uma forma de morrer por nada
Toda forma de conduta se transforma numa luta armada
Se tudo passa, talvez você passe por aqui

E o fascismo é fascinante deixa a gente ignorante e fascinada
É tão fácil ir adiante e se esquecer que a coisa toda tá errada
A história se repete mas a força deixa a história mal contada
Se tudo passa, talvez você passe por aqui
E me faça esquecer tudo que eu vi

(Toda forma de poder – Engenheiros do Hawaii, Álbum Longe demais das Capitais, 1986)

Entre fazer esquecer e não omitir, Emicida se considera um sujeito de sorte em AmarElo pela escolha do último programa: “tenho chorado demais, tenho sangrado para cachorro, ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”. No entanto, esse rap ensina que nossas cicratizes não possuem voz própria, nem precisamos atribuir a elas a incumbência de narrar a história, qual é o sentido de entregar o trófeu para o nosso algoz?

Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes
Elas são coadjuvantes, não, melhor, figurantes
que nem devia tá aqui
Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes
Tanta dor rouba nossa voz
sabe o que resta de nóiz?
Alvos passeando por aí
Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes
Se isso é sobre vivência
me resumir a sobrevivência
É roubar o pouco de bom que vivi
Por fim, permita que eu
fale, não as minhas cicatrizes
Achar que essas mazelas me definem
é o pior dos crimes
É dar o troféu pro nosso
algoz e fazer nóiz sumir

(AmarElo – Emicida, Álbum AmarElo, 2019)

Por ora, baixar o êxtase coletivo e destrutivo é não o alimentar: ao êxtase, a calmaria, a terapia, a regeneração dos vínculos, a cura coletiva, a redução da atividade, a meditação, pois a liberação da energia acumulada parece não ser o melhor caminho dentro das condições reais de possibilidades que se abririam; também ouvir e permitir falar as pessoas reais, as histórias narradas por quem as vive desde a questão estruturante sobre o que de bom foi vivido nos últimos 3 anos? E nos últimos 10? A reflexão sobre o que se almeja e não ao que se está em submissão e constante dominação para conquista. Há também de não fazer crescer a nossa atenção ao êxtase destrutivo, cada atenção dedicada a isso o torna maior, o jornalismo tem uma técnica específica para não estimular novas condutas lesivas ao narrar fatos negativos, tudo sem deixar de tomar as providências legalmente cabíveis para viabilizar a responsabilização dos não loucos desse governo.

A nossa capacidade de fazer responsáveis é que fará a diferença entre evoluir o quadro social para o que ocorreu com o nazismo ou aprender com suas lições como a do dever de todo funcionário público e membro de poder de resistir às ordens manifestamente ilegais, do dever de anulação de atos ilegais, do dever de proteção suficiente do direito à vida e à igualdade de tratamento perante o Estado, do dever do Judiciário e do Legislativo de controlar os abusos de poder do Executivo e fiscalizar para que sua atuação seja conforme a lei e não à margem da lei e do efetivo respeito à soberania do povo ante os abusos de vontade de loucos e irresponsáveis. Adaptando o célebre e Imortal Machado de Assis: aos loucos, as gargalhadas; aos irresponsáveis, a legalidade.

*Leonardo Ferreira Pillon é Mestre em Direitos Emergentes na Sociedade Global pela Universidade Federal de Santa Maria. Conselheiro suplente no Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável do Estado do Rio Grande do Sul. Membro da RENAP/RS. Advogado no território do Rio Grande do Sul.

Referências:

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Trad. José Rubens Siqueira. 14ªreimp. Companhia das Letras: São Paulo, 1999. 

CASTELLS, Manuel. A Era da Informação: economia, sociedade e cultura. Volume I, A sociedade em rede. 5ª Ed., São Paulo: Paz e Terra, 2001.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Org. Roberto Machado. 10ª Ed. Rio de Janeiro, Edições Santo Graal, 1992.

_____. Nascimento da Biopolítica: curso dado no Collège de Frace (1978-1979). Ed. Michel Senellart. Dir. François Ewald; Alessandro Fontana. Trad. Eduardo Brandão. Ver. Claudia Berliner. São Paulo, Martins Fontes, 2008. 

GOSWAMI, Amit; REED, Richard. E.; GOSWAMI, Maggie. O Universo autoconsciente: como a consciência cria o mundo material. Trad. Ruy Jungman, 2ª ed. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1998. 

LEVI, Eliphas. O Livro dos Sábios – Capítulo I. s/d.

Privacidade hackeada. (Documentário). Netflix, 114 min, julho/2019. 

REICH, Wilhelm. (s.d.). Psicologia de massas do fascismo. (M. G. M. Macedo, trad.). São Paulo: Martins Fontes. (Original publicado em 1946).

Imagem: A Loucura: A Extração da Pedra da Loucura, Hieronymus Bosch

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