Coronavírus: já tínhamos sido avisados

Há seis meses a ONU alertava: um vírus devastador poderia nos levar a uma pandemia. Governantes ignoraram risco iminente. Agora, enfrentarão nova ordem social – e do confinamento pode emergir uma governança solidária e global

Por Juan Luis Cebrián*, no El País España | Tradução de Simone Paz, em Outras Palavras

Em setembro do ano passado, um relatório das Nações Unidas e do Banco Mundial alertava sobre o sério risco de uma pandemia que, além de dizimar vidas humanas, iria destruir a economia e provocar um caos social. O chamado era para nos prepararmos para o pior: uma epidemia planetária, de uma gripe especialmente letal, transmitida por vias respiratórias. Apontava que um germe patogênico desse tipo poderia tanto surgir de forma natural, como ser projetado e criado num laboratório, com o fim de virar uma arma biológica. E fazia um chamado aos EUA e às instituições internacionais para que tomassem medidas para afastar aquilo que já se mostrava, certamente, à espreita.

A presidenta do grupo que assinava o relatório, Gro Harlem Brundtland, ex-primeira-ministra da Noruega e ex-diretora da OMS, denunciou que um surto de doença em grande escala era uma perspectiva tão alarmante como absolutamente realista, e que poderia nos levar à situação equivalente, no século XXI, da “gripe espanhola” de 1918, que matou cerca de 50 milhões de pessoas. Denunciou, também, que nenhum governo estava preparado para isso nem tinha implementado o Regulamento Sanitário Internacional em relação ao alerta, embora todos o tivessem aceitado. Declarou: “Não surpreende que o mundo esteja tão mal prevenido diante de uma pandemia que avança rapidamente pelo ar”.

As lágrimas de crocodilo de tantos governantes, lamentando o fato de que ninguém poderia ter imaginado uma coisa do tipo, deixam, portanto, de fazer qualquer sentido. Não só houve gente que imaginou e previu o cenário, como também alertaram seriamente sobre isso. Houve, sem dúvida, negligência da parte dos diversos ministros de Saúde e de seus chefes — e, atualmente, na França, três médicos já estão processando o governo, com esse motivo.

A consequência é que a maioria das nações ocidentais, hoje, já saturaram sua capacidade para lutar contra a epidemia. A reação veio tarde, e não foi a ideal. Faltam leitos, faltam profissionais da saúde, faltam respiradores e, também, falta transparência nas informações oficiais. No caso dos jornalistas, já temos que tolerar que nossas perguntas ao poder público sejam filtradas pelo Secretário de Comunicação do governo espanhol.

No dia 24 de fevereiro, a OMS declarou oficialmente a probabilidade de que estivéssemos diante de uma pandemia. Apesar disso e de ter ciência da magnitude da ameaça, já se tornando cruelmente real em vários países, mal foram tomadas medidas na maioria dos potenciais cenário de propagação do vírus. No caso da Espanha, ainda incentivamos enormes manifestações e sugerimos durante dias a oportunidade de manter festas populares massivas; não foi encaminhado um financiamento de urgência para a pesquisa, as autoridades minimizaram a ameaça, e até o funcionário — que ainda mantém o cargo na linha de frente das recomendações científicas — teve a ousadia de afirmar, entre sorrisos, que não existia risco nenhum para a população. 

Não é o momento de abrir um debate sobre o assunto, mas é pertinente supor que, para além das responsabilidades políticas dos cidadãos, que oferecem diariamente um exemplo formidável de solidariedade em meio ao sofrimento generalizado, teremos o direito de exigir uma indenização legal se houver negligência culpável. Com relação a isso, abundam as dúvidas sobre a constitucionalidade do exercício do estado de emergência.

Na prática, foram suspensos dois direitos fundamentais — embora o decreto não tenha estabelecido nada: o de livre circulação e a liberdade de reunião. Não estamos questionando o conteúdo das medidas, evidentemente necessárias, mas a decisão de não declarar estado de exceção, que poderia cobrir esses extremos e também a mobilização do exército. A impressão que fica é a de que o governo é prisioneiro em suas decisões dos pactos com seus parceiros do Podemos e os independentistas catalães e bascos. Em outras palavras, a principal prioridade é a conveniência política, acima da proteção aos cidadãos, inclusive em ocasiões tão graves quanto esta.

Para perdoar um pouco as nossas autoridades, podemos apelar, por desgraça, aos erros similares que a União Europeia cometeu, cujo fracasso institucional pode ser definitivo, se não acordar logo de sua paralisia. A falta de coordenação entre os governos, a diversidade de decisões adotadas, a incapacidade de dar uma resposta global para um problema global, é ultrajante para a humanidade. Comissão, Conselho e Parlamento todos os membros.

A Europa já vinha fracassando com as políticas de migração e refugiados, só demonstrando firmeza e coerência quando se trata de exigir uma austeridade que garanta os equilíbrios orçamentários. Essa austeridade, aplicada com critérios de curto prazo, está na base do baixíssimo investimento em sistemas de saúde, cujas insuficiências nos encaminham, agora, ao maior desequilíbrio econômico e fiscal imaginável. À medida em que fronteiras são fechadas e estrangeiros são expulsos, cresce um nacionalismo à antiga, evidentemente incapaz de dar resposta aos problemas globais, e no qual são gestados — há séculos — conflitos sanguinários.

Mas a bagunça não é só europeia. O G20 e o G7, supostos donos do mundo, ainda não se reuniram; são ignorados os chamados do secretário-geral da ONU para proteger os países menos favorecidos diante da ameaça letal; e o presidente dos EUA não se cansa de acusar a China de ser a responsável pela catástrofe, só porque o primeiro ataque do vírus ocorreu em Wuhan. Um dos principais deveres pendentes, assim que a situação se estabilizar, será de tentar analisar o verdadeiro foco do agente patogênico, e estabelecer se teve origem natural ou se foi uma invenção humana. Afinal de contas, também a pandemia de 1918 recebeu o apelido de “gripe espanhola” quando, na verdade, foi transmitida por soldados norte-americanos que desembarcaram num porto francês.

Se durar duas semanas ou dois meses (o mais provável é que sejam dois meses), a batalha dos cidadãos contra o vírus — e o que se avizinha por trás da vitória, cujo preço teremos de contabilizar em vidas humanas muito antes do que em índices econômicos — representa uma convulsão da ordem social de magnitudes ainda inimagináveis. O poder global será distribuído de uma forma completamente diferente da que conhecemos nos últimos 70 anos.

O novo contrato social já começou a ser elaborado, inclusive, por causa do uso em massa da digitalização durante o confinamento de milhões de cidadãos no mundo inteiro. No novo cenário, a China não será mais coadjuvante, e sim, a principal protagonista. A eficácia de suas respostas nas duas últimas crises globais — a financeira de 2008 e a pandemia de 2020 — lhe permitirá liderar a nova ordem mundial, cujo polo principal se concentra na Ásia. Não é à toa que países como Coreia do Sul, Singapura e Japão tenham se destacado no pódio dos vencedores do coronavírus.

Essa nova ordem mundial há de gerar grandes questionamentos sobre o futuro da democracia e do desenvolvimento do capitalismo. Também, sobre o significado e o exercício dos direitos humanos, ora proclamados ora pisoteados, por todo o planeta. Por mais que a extrema direita grite, essa é a vez dos filósofos.

Um respeitado professor de Direito, Luigi Ferrajoli, chamava precisamente a partir de Roma, poucos dias antes de que a cidade se fechasse para o mundo, a construir um constitucionalismo planetário, “uma consciência geral de nosso destino comum, que, por isso mesmo, também necessita de um sistema comum de garantias dos nossos direitos e de nossa coexistência pacífica e solidária”. Eu queria que essas palavras tivessem sido ouvidas pelos espanhóis, alguns dias atrás, em alguma das mensagens à nação, sempre tão bem intencionadas como pouco inspiradoras.

*Jornalista, escritor e empresário espanhol. Foi diretor-fundador do jornal El País, que dirigiu desde 1976 até 1988. Desde 1996 é acadêmico da Real Academia Espanhola.

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