Até Trump recua, mas Bolsonaro segue na campanha contra isolamento

Ministro da Saúde muda novamente de tom e defende a ciência. Bolsonaro o ignora e faz um tour pelo DF. Trump estende isolamento até fim de abril.

Por Maíra Mathias e Raquel Torres, em Outra Saúde

CORPO A CORPO

Quem assistiu à coletiva do Ministério da Saúde no sábado viu a mudança de tom do chefe da Pasta, Luiz Henrique Mandetta na direção de sua face mais “técnica”. É difícil avaliar o que exatamente está acontecendo por ali. A única certeza é a de que Jair Bolsonaro, por estratégia ou psicopatia, segue em sua determinação de enfrentar essa “gripezinha” com muito, muito contato social.

Ontem, como a essa altura todos já devem ter visto, ele decidiu sair do Palácio da Alvorada para fazer um tour: uma espécie de campanha corpo a corpo contra o isolamento social.  Publicou vídeos no Twitter para mostrar que é um ‘homem do povo’, segundo orientações do ministro de Relações Exteriores Ernesto Araújo, que não lá um especialista em pandemias.

E deixou fixo nessa rede social — fazendo com que ficasse sempre em primeiro lugar na linha do tempo — um vídeo em que aparece conversando com um vendedor de churrasquinho. “Eu defendo que você trabalhe, que todo mundo trabalhe. Lógico, quem é de idade fica em casa”, dizia o presidente, enquanto o rapaz respondia: “A morte está aí, mas seja o que Deus quiser. Só não pode ficar é parado, com medo de morrer. Se não morrer de doença, morre de fome”.

Para garantir que as pessoas não precisem trabalhar nessa situação nem morram de fome há o Estado, é claro. Mas esse é apenas um detalhe…

O vídeo foi apagado pelo Twitter horas depois. Foi a primeira vez em que a rede social deletou postagens de Bolsonaro. Além desse, saiu do ar outro em que o presidente entra em um açougue e diz que o isolamento social pode gerar desemprego. Em ambos, ele citava com mais que otimismo o tratamento com hidroxicloroquina (“graças a Deus o remédio está aí”, animou-se). Como sabemos, o composto está sendo usado em caráter experimental e não há estudos conclusivos.

Mas no WhatsApp, sem filtros, as mensagens correm soltas. N’O Globo, o colunista Lauro Jardim conta que o presidente enviou, entre sábado e domingo, “diversos áudios, vídeos e memes de ironia ao isolamento social, críticas à imprensa, ao infectologista David Uip” e os tais vídeos.

Em tempo: Bolsonaro também foi visitar o Hospital das Forças Armadas. Por quê? Para ver “o fluxo de pessoas por ventura chegando”.

E tem ainda as carreatas. Ao longo do fim de semana, impulsionadas pelas falas e postagens do presidente, elas pediam a suspensão de medidas de isolamento, como o fechamento de comércio e escolas. Nada mais típico: gente dentro de carros pedindo que o país volte a se expor.

Aliás… “Eu, como economista, gostaria que nós pudéssemos manter a produção e voltar mais rápido. Eu, como cidadão, seguindo o conhecimento do pessoal da saúde, já quero ficar em casa e fazer o isolamento”, foi que Paulo Guedes teve coragem de declarar em videoconferência com a Confederação Nacional de Municípios. O ministro está em isolamento domiciliar desde que voltou dos EUA, apesar de já ter feito teste para covid-19 com resultado negativo. Mas ele conseguiu ser um pouco mais razoável do que Bolsonaro (o que não é tão difícil). Disse que “a economia aguenta” um ou dois meses parada. Se o isolamento não funcionar nesse período, “vai ter que liberar” as atividades. 

AMEAÇA NO AR

Na coletiva de sábado, Mandetta concordou que a economia é importante, mas que ficar em casa também é. Conciliador, disse que o Ministério vai construir com governadores os critérios para as medidas de isolamento. Afirmou que mesmo o lockdown (a parada absoluta) pode ser necessário, mas não de maneira desarticulada. Criticou a visão da cloroquina como panaceia e advertiu que pode haver mortes pelo uso incorreto. “Estamos falando de vida. Vamos nos pautar pela ciência”, reforçou, embora sem conseguir apagar da nossa memória tudo o que havia dito durante a semana. 

Logo depois, uma imagem começou a circular nas redes sociais. “Amarelou, Mandetta? É pra fazer quarentena ou obedecer seu presidente?”, dizem as letras garrafais sobre um fundo amarelo.

E Bolsonaro disse que vai demitir o ministro caso este venha a criticá-lo. A informação é de Eliane Catanhêde, do Estadão, a partir de relatos de uma reunião entre o presidente e vários ministros. No encontro, diz ela, Mandetta advertiu que, se morrerem mil pessoas, será o equivalente à queda de quatro Boeings. “Estamos preparados para o pior cenário, com caminhões do Exército transportando corpos pelas ruas? Com transmissão ao vivo pela internet?”, perguntou ele, pedindo que Bolsonaro criasse um “ambiente favorável” para um pacto entre União, estados, municípios e setor privado em torno das estratégias. 

Ainda segundo a jornalista, o ministro afirmou que precisaria criticar o presidente caso ele insistisse em ir a um metrô ou ônibus em São Paulo, algo que Bolsonaro já disse que poderia fazer. Foi então que o mandatário disse que, nesse caso, poderia demiti-lo.

Mandetta ainda não se manifestou sobre o tour do chefe.

CAI, NÃO CAI, GOLPEIA?

A possibilidade do impeachment de Bolsonaro não parece estar realmente no horizonte, ao menos para um futuro próximo — o presidente da Câmara, Rodrigo Maia declarou que o tema não está na pauta do Congresso nesse momento. Mas a cúpula militar já está alerta. Segundo o El País, reuniões estão sendo feitas para debater cenários hipotéticos para o médio e longo prazo, e os participantes estão preocupados que o agravamento da situação brasileira seja “vinculado ao discurso negacionista” do presidente,e que ele possa “soar insensível” quando sugere a volta à vida normal. Assim, como se o presidente pudesse estar sendo apenas mal interpretado.

Mas além disso também circula em Brasília a tese de que Bolsonaro poderia decretar estado de sítio ou de defesa, suspendendo garantias constitucionais e restringindo liberdade e comunicação. Ele nega, ao mesmo tempo em que deixa muita coisa no ar: “Quem quer dar o golpe jamais vai falar que quer dar”, disse, na Band, quando perguntado sobre se pretendia dar um golpe e fechar o país.

Daí que os militares começaram a se aproximar do general Mourão. Isso num momento em que as relações entre o presidente não estão na sua melhor forma. “Com todo o respeito ao Mourão, ele é muito mais tosco do que eu”, disse Bolsonaro na sexta, também na Band.

Em entrevista à Folha, o mesmo Mourão criticou a “falta de coordenação” nas ações do governo federal contra o coronavírus. “Vamos lembrar que somos uma federação. Aquilo que é do município é do município. Se extrapola o município, aí é do estado. Se extrapola do estado, é da União”, disse. Comentando o dilema entre parar ou não parar as atividades econômicas,  declarou que “talvez  chegue o momento de, em uma conversa entre a área técnica da medicina e a econômica, buscar posição onde determinadas atividades possam de forma progressiva retomar”. Não detalhou muita coisa sobre isso, porém.

PARA QUE SERVE UM COMITÊ

Não para muitas coisas, no caso do Comitê de Crise para Supervisão e Monitoramento dos Impactos da Covid-19: o colegiado perdeu totalmente a função consultiva que mobilizou sua criação. Na semana passada, deixou de ter atuação direta de ministros e passou a ser gerido por auxiliares. A campanha #OBrasilNãoPodeParar (falaremos dela adiante) não passou pelo seu crivo. O pronunciamento desastroso de Bolsonaro à TV na semana passada também não. Seu anúncio de que iria determinar o “isolamento vertical”, tampouco. “A falta do protagonismo do comitê foi relatada à Folha por dois ministros, em caráter reservado, que afirmaram também que estão proibidos de dar entrevistas”, diz a reportagem de Renato Onofre e Talita Fernandes, que prossegue: “Sem poder decisório, o órgão virou uma central de monitoramento e de acompanhamento de ações como transporte de cargas e o fechamento das fronteiras”.

PELA CULATRA

O presidente faria um novo pronunciamento na TV durante o fim de semana, mas seus aliados indicaram que não seria uma boa, segundo a Folha. “Os ministros avaliaram com o presidente que é preciso maneirar no discurso por haver um distanciamento entre o que Bolsonaro e seus filhos dizem nas redes sociais e as ações propostas por sua gestão, como fechamento total das fronteiras aéreas do país para estrangeiros, isolamento social e medidas de auxílio econômico para minimizar os danos da crise”, diz a reportagem. A avaliação foi de que o discurso da terça passada até conseguiu inflar os seguidores mais fanáticos, o que, como chegamos a ver aqui, era o objetivo do “gabinete do ódio” ao preparar a fala. Mas, por outro lado,  também deu força à oposição e aos pedidos por impeachment.

INSIGHT

Depois do seu passeio, o presidente deu uma entrevista dizendo  que teve uma ideia : “Eu estou com vontade, tenho como fazer, estou com vontade: baixar um decreto amanhã. Toda e qualquer profissão, legalmente, existente ou aquela que é voltada para a informalidade, se for necessária para o sustento dos seus filhos, levar o leite dos seus filhos, arroz e feijão para sua casa, vai poder trabalhar (…). Me deu um insight, me deu uma ideia aqui agora e falei que estou pensando em fazer um decreto desses, para ver se cabe. Acho que ajuda um decreto desses. O cara vai cortar grama. Se não cortar grama, não tem dinheiro para comprar o leite, arroz e feijão para as crianças, ele vai cortar grama”.

Foi um insight planejado. Segundo O Globo, ainda na véspera ele havia sido alertado de que, se tentasse flexibilizar o isolamento “na canetada”, poderia sofrer revés na Justiça. A repórter Thais Arbex diz que o recado foi dado em uma reunião no sábado, da qual participaram o ministro do STF Gilmar Mendes e os ministros da Secretaria-Geral da Presidência, Jorge Oliveira, da AGU, André Mendonça, e do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho.

“Aqui, não vamos recuar. Se for necessário, iremos até a Justiça“, escreveu o governador do Pará, Helder Barbalho (MDB), logo após a entrevista de Bolsonaro, em um grupo de WhatsApp com outros governadores. A Folha entrou em contato com o petista Wellington Dias, governador do Pauí, que também considera entrar com ação judicial.

PROJEÇÕES

Para justificar sua ideia de “isolamento vertical”, Jair Bolsonaro chegou a dizer na Band que isso é necessário apesar de que “infelizmente algumas mortes terão. Paciência“. Algumas, segundo a estimativa do Imperial College de Londres, seriam quase 530 mil: essa é a projeção do número de mortes caso a ideia de Bolsonaro seja adotada.

E tem um detalhe: as estimativas foram feitas com base em dados da China e de outros países ricos. Ou seja, para nações mais pobres, os resultados podem ser ainda piores do que os previstos.

Para quem não lembra, foi um estudo dessa instituição que conseguiu convencer o primeiro-ministro britânico Boris Johnson a recuar do seu plano inicial, que, como o de Bolsonaro, era o de isolar apenas grupos de risco.

Há outros cenários possíveis. Se nenhuma ação fosse tomada, haveria no Brasil cerca de 1,1 milhão de mortes. Com distanciamento social leve, 627 mil. E mesmo nas melhores hipóteses, com 75% da população em quarentena, haveria cerca de 44 mil a 206 mil mortes, dependendo do momento em que as medidas fossem implantadas. Para termos “só” 44 mil, elas devem acontecer com o número de mortes sendo de até 0,2 por cada 100 mil habitantes por semana. Aqui no Brasil, equivaleria a 420 por semana. Ainda está em tempo.

Até agora, o Ministério da Saúde registrou 4.256 casos e 136 mortes pela doença.

PRESSÃO

“Meados de abril”. Esse é o limite para as quarentenas Brasil afora, se depender da pressão de grandes empresas do varejo. O grupo tem como porta-vozes Flávio Rocha (Riachuelo) e Luiza Trajano (Magazine Luiza) e tem se encontrado tanto com Bolsonaro, quanto com Guedes levando a seguinte ameaça: se a população não for liberada para o trabalho, as empresas vão demitir até um terço de seus funcionários. De acordo com os cálculos da Folha, seriam 600 mil pessoas. Mas de acordo com o Instituto para o Desenvolvimento do Varejo (IDV), as pequenas e médias empresas do setor já começaram a demitir. 

E como uma coisa leva à outra, o fato é que estados que voltaram atrás nas restrições deram mais impulso ainda ao grupo de grandes empresários. Mato Grosso, Rondônia e Santa Catarina decidiram liberar parcialmente o comércio e os serviços na semana passada. “Reservadamente, assessores de Bolsonaro afirmam que a pressão do empresariado pelo fim parcial do isolamento cresceu” depois disso, conta o repórter Julio Wiziack. 

Sempre usando como barganha os empregos, o empresariado – que já conseguiu que o governo adotasse suas demandas de flexibilização das regras trabalhistas na medida provisória enviada ao Congresso – também quer a incorporação de sua agenda relacionada ao adiamento do pagamento de tributos. “Não adianta o governo injetar liquidez na praça, dando linhas de crédito, tudo mais, e, na outra ponta, continuar com o aspirador de pó gigante dos tributos dragando os recursos. Isso não resolve”, afirmou Rocha.

Os empresários basicamente defendem a ideia apresentada pelo economista americano Paul Romer e pelo reitor de Harvard, Alan Garber, em um editorial publicado segunda-feira passada no New York Times com o espalhafatoso título “Nossa economia morrerá de coronavírus?”. No texto, ambos argumentam que os Estados deveriam investir em testagem massiva para identificar, a cada uma ou duas semanas, quem está infectado e quem não está. O empresariado brasileiro, porém, resolveu desconsiderar a parte em que Romer e Garber reconhecem que a ideia precisaria de tempo para ser tirada do papel. “Isso levará algum tempo, um mês ou dois para conseguirmos mais testes e equipamentos, mas significa que precisamos investir urgentemente nessas duas soluções”, confirmou Romer em entrevista a O Globo. Enquanto isso, o isolamento deve continuar, afirma. Detalhe: eles estão se referindo aos Estados Unidos. Qual seria a capacidade de uma testagem a cada uma ou duas semanas de toda a população brasileira? O empresariado tupiniquim está defendendo que os testes sejam feitos apenas na população economicamente ativa, algo em torno de 80 milhões de pessoas.   

SUBNOTIFICAÇÃO

Mas o fato é que o plano não parece ser factível. No sábado, circulou a notícia de que o Instituto Adolfo Lutz enfrentava uma pilha de 12 mil testes enviados somente pela rede pública de saúde da capital paulista. Os resultados demoram de uma semana a 10 dias para sair, reconheceu o secretário municipal de saúde de SP, Edson Aparecido. A solução encontrada pela prefeitura foi enviar dez técnicos para reforçar a sobrecarregada equipe do Adolfo Lutz e contratar, em caráter de urgência, cinco laboratórios privados. 

Deixando para lá os empresários e nos concentrando num problema real e imediato, ao que tudo indica, o país enfrenta a epidemia sem saber suas reais proporções. E talvez decorra daí o fato de a ficha não ter caído para muita gente. A reportagem de capa da Época relata como no maior cemitério de São Paulo se multiplicam os enterros de vítimas suspeitas de coronavírus. E há muitos casos sem confirmação para covid-19, onde se lê  “insuficiência respiratória” no atestado de óbito. Todos esses casos são classificados pelo Cemitério Vila Formosa como “D3”, código para que o sepultamentos aconteça com o caixão lacrado e velório de dez minutos. 

A reportagem lembra que, desde o dia 19 de março, o Ministério da Saúde deixou de divulgar a quantidade de casos suspeitos. Mas que algumas secretarias estaduais ainda o fazem, caso de Minas Gerais, onde até ontem havia 231 casos confirmados, mas nada menos do que  28.783 casos suspeitos. Na semana passada, Mandetta admitiu que assim que os novos testes chegarem – foram prometidos 22,9 milhões – é esperada uma rápida escalada nos números brasileiros. Desse total, 14,9 milhões são testes do tipo RT-PCR, que detectam a presença do vírus e, por isso, são considerados mais precisos. Os oito milhões restantes são testes rápidos que detectam anticorpos, ou seja, só acusam a doença dias depois da infecção. Esses testes serão destinados a profissionais de saúde e os do tipo RT-PCR nos casos mais graves, seguindo o protocolo da Pasta de testar apenas pacientes que apresentam sintomas sérios, como dificuldade para respirar. 

Outra reportagem, da BBC Brasil, aborda o mesmo problema: “O Ministério da Saúde não divulga dados sobre óbitos suspeitos de terem sido causados pelo novo coronavírus, apenas os confirmados. Desta forma, os números reais podem ser muito maiores do que os oficiais.” Além disso, a pasta não tem uma orientação para que exames de pacientes mortos por suspeita de coronavírus sejam considerados prioridade (mas prometeu recomendação sobre o assunto para “os próximos dias”). O site ouviu especialistas do Instituto de Infectologia Emilio Ribas, que problematizam a forma como as coisas estão se dando no país. “O Brasil já restringiu os testes atuais aos pacientes mais graves, que correspondem a cerca de 20% dos casos. Então, não tem nenhum sentido haver atraso para os resultados desses pacientes”, criticou a média Ana Freitas Ribeiro. “Esse resultado é fundamental até mesmo para a equipe médica que atendeu o paciente. Os trabalhadores que acompanharam essa pessoa que pode estar com coronavírus podem ter gripe ou febre e se souberem que foi um caso de covid-19, logo vão se afastar. Ter esses testes com rapidez é muito importante”, defendeu, por sua vez, o supervisor da UTI do Instituto, Jaques Sztajnbok, que acompanhou duas mortes por suspeita de coronavírus que, mais de sete dias depois, ainda não tinham essa confirmação dos testes.

No Rio, o prefeito Marcelo Crivella afirmou, no sábado, que os casos confirmados devem representar uma pequena parcela do número real. “Temos subnotificações. Os casos confirmados são 15% da realidade, segundo o governo, porque não temos testes”, disse. A prefeitura trabalha com a hipótese de que existam 4.471 casos.

Já o Acre projeta um cenário ainda pior: segundo o governo, apenas 5% dos casos são notificados. No estado falta o reagente usado no teste do novo coronavírus. O diretor do Centro de Infectologia Charles Mérieux, Andreas Stocker, afirmou que o estado está no “escuro” e, embora o número oficial seja de 27 casos, ao menos 500 pessoas estariam infectadas. “Os números não aumentam, mas as infecções aumentam clandestinamente“, disse em entrevista à TV Gazeta. “Posso falar à população: por favor, não comecem a se sentir seguros”, alertou, defendendo o isolamento. “Se vocês não ficarem em casa nos próximos dias, nós vamos perder.” 

PARA TESTAR

Os esforços do Ministério da Saúde para ampliar os testes no Brasil vêm junto com grandes acordos com empresas privadas. Dos de 22,9 milhões de testes anunciados, essas empresas devem comprar ou doar 14,9 milhões deles. A Dasa, que lidera a medicina diagnóstica no Brasil, vai fechar um acordo com a Pasta para criar um laboratório especializado em exames de covid-19. Os detalhes devem sair hoje. Mas, segundo a jornalista Claudia Collucci, da Folha, a empresa vai fornecer gratuitamente profissioais e infraestrutura, e fazer as operações de coleta por preço de custo, em conjunto com unidades do SUS.

E a primeira remessa de kits chineses, com 500 mil unidades, deve desembarcar hoje em Guarulhos. Foi uma doação da Vale.

Os kits, muito aguardados, permitem ter um diagnóstico em até 30 minutos. Nem tudo são flores, porém: o setor de medicina diagnóstica argumenta que a falta de um protocolo padronizado para o uso deles resulte em alto número de falsos negativos. A sensibilidade do teste rápido depende do tempo de infecção — se estiver muito no começo, o caso não aparece como positivo. O problema é que o Ministério não publicou nada a respeito, nem respondeu ao El País quando a reportagem perguntou sobre planos nesse sentido.

NEGAR, NEGAR, NEGAR

Indo sempre na contramão das evidências científicas, Jair Bolsonaro chegou a duvidar do número de casos confirmados em São Paulo na sexta-feira (27). “Está muito grande para São Paulo. Tem que ver o que está acontecendo aí. Não pode ser um jogo de números para favorecer interesse político”, disse em entrevista a Datena. 

Outro exemplo da forma como o presidente brasileiro joga com os fatos aconteceu no fim de semana. A campanha publicitária “O Brasil não pode parar” – aquela que custou R$ 4,8 milhões sem licitação – teve veiculação proibida pela Justiça Federal do Rio de Janeiro no sábado. Pois bem: a Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência da República disse à Folha, em nota, que “definitivamente, não existe qualquer campanha publicitária ou peça oficial da Secom intitulada ‘O Brasil não pode parar’. Trata-se uma mentira, uma fake news divulgada por determinados veículos de comunicação”. O jornal verificou que o governo apagou postagens feitas em pelo menos duas contas oficiais com a hashtag #OBrasilNãoPodeParar. A Secom se recusou a comentar esse assunto.

OS JOVENS TAMBÉM SOFREM

Ontem, Crivella, prefeito do Rio, imitou Bolsonaro e, ao mesmo tempo, resgatou a já ultrapassada ideia do primeiro-ministro britânico Boris Johnson e defendeu que a população jovem continue trabalhando para contrair o vírus e ‘adquirir imunidade’: “Idosos nas comunidades são nossa maior preocupação. Principalmente os que têm comorbidades. Mas para protegê-las, é preciso que a população, aos poucos se torne imune. Para isso, não temos vacina, então, é preciso que os jovens continuem trabalhando. Jovens da construção civil e dos serviços podem continuar trabalhando.” 

Em primeiro lugar, a ciência ainda não tem certeza se quem contraiu o novo coronavírus adquire imunidade para sempre. “Parece ser consenso até aqui que muitos pacientes são capazes de desenvolver um grau de imunidade razoável. A questão é quanto tempo essa imunidade vai durar, porque se ela durar menos que um ano, o risco de instalação da covid-19 como endemia permanente aumenta. Não é uma questão fácil de responder, sobretudo porque a capacidade de o sistema imune reagir pode diferir de pessoa para pessoa”, escreveu na Época o repórter Rafael Garcia, que fez uma revisão dos estudos existentes.

Em segundo lugar, a pressão para que a população jovem saia de casa e “trabalhe” se sustenta em uma falácia sobre a covid-19: a de que só idosos desenvolvem a forma grave da doença ou morrem. Não é verdade, conforme são revelados dados de cada vez mais países – inclusive do Brasil. Na sexta-feira (27), dos mais de mil infectados em São Paulo, 516 tinham entre 20 e 39 anos. Por aqui, já há registros de mortes entre gente bem jovem. E a resposta do sistema imunológico ao vírus é afetada não só pela idade, mas por um conjunto de fatores como diabetes, hipertensão, doenças pulmonares… Tudo isso pode acometer jovens. No Reino Unido, sete em cada fez pacientes em UTIs são obesos e, destes, 40% têm menos de 60 anos. Na Itália, a faixa entre 19 e 50 anos é responsável por 12% das internações em UTIs. Os Estados Unidos registraram ontem a primeira morte de bebê por coronavírus no mundo. Então, só para ficar claro: os idosos são mesmo mais vulneráveis, são mesmo a maioria das vítimas da covid-19, mas não são as únicas. Ninguém é invencível a um novo vírus, como frisou o diretor-geral da OMS, Tedros Ghebreyesus.

VAI E VEM

Seguindo o mau exemplo dos governadores de Mato Grosso, Rondônia e Santa Catarina, mas dando um verniz ilustrado à decisão, o governador Romeu Zema (Novo) anunciou na sexta (27) que Minas Gerais encomendou um estudo para a reabertura gradual das atividades no estado. Segundo ele, as mudanças devem ser discutidas com municípios. “Eu diria que estaríamos saindo de uma situação de isolamento para uma situação de distanciamento. Aquele comércio que vier a funcionar, com certeza, vamos exigir que o cliente, por uma questão de segurança, mantenha uma distância de quem o estiver atendendo, e os próprios funcionários também deverão manter distanciamento. Toda ação vai passar pelo crivo da secretaria da saúde, que estará alinhada com os prefeitos”, disse Zema.

Mas a verdade é que os prefeitos têm se colocado na linha de frente contra governadores apressadinhos. O prefeito de Florianópolis, Gean Loureiro (DEM), determinou que manterá a quarentena na capital catarinense até, pelo menos, 8 de abril, apesar da decisão do governador Carlos Moisés (PSL) de reabrir lojas, shoppings e até academias a partir de 1º de abril. Loureiro disse nas redes sociais que não quer repetir o erro de Milão, que aderiu a uma campanha pela “normalidade” que resultou em mais de quatro mil mortos na região. Apesar disso, Florianópolis e Balneário Camboriú aderiram à ideia da testagem em massa. Os municípios compraram testes para 100% da população e, depois dos resultados, acreditam ser possível flexibilizar a quarentena.

Já em Goiás, Ronaldo Caiado (DEM) anunciou que vai iniciar medidas de fiscalização para impedir aglomerações e manifestações nas ruas até o dia 30 de abril. Ele criticou a atuação descoordenada de Mandetta, Guedes e Onyx Lorenzoni (Cidadania). “Os três ministros têm de falar para a população. Não adianta mais esse bate cabeça porque daqui a pouco as pessoas não se sentem mais orientadas por ninguém e vai virar um processo autofágico de as pessoas se acharam no direito de buscar por elas mesmas resolver o problema: de inquietação e de colocar comida na mesa. Temos de agir rápido. Nós perdemos tempo com o atraso de adequar as estruturas de saúde, comprar EPIs [equipamentos de proteção individual], ventiladores, mas agora não temos esse tempo para atrasar a comida chegando na mesa do cidadão”, afirmou a O Globo.

No Piauí, Wellington Dias (PT) denunciou a demora de investimentos, equipamentos, materiais e respiradores prometidos pelo governo federal. “O problema mais grave é que quase não chegaram as coisas anunciadas. Nem para estados, nem municípios”, disse em entrevista à Folha. “O que chegou de material foi a conta-gotas. O EPI eu comprei com antecedência, porque se esperasse do Ministério [da Saúde] estaríamos em situação gravíssima. E precisamos dos respiradores. Não se faz uma política de segurança para coronavírus sem respirador”, apontou. O estado registrou o primeiro óbito no sábado. A vítima foi o prefeito de São José do Divino, Antônio Gomes. 

Em Pernambuco e no Rio, os governadores também sinalizaram para continuar com medidas de isolamento. André Longo, secretário estadual de saúde pernambucano, caracterizou a mobilização pela reabertura de comercias como “carreata da morte”. Já Wilson Witzel (PSC) anunciou pelas redes sociais que assinará hoje um decreto para renovar o isolamento no Rio.

JUDICIÁRIO

A descoordenação das respostas contra a covid-19 em estados e municípios é terreno fértil para que o Judiciário atue para o bem e para o mau. Para ficar em um exemplo: o desembargador Fermino Magnani Filho, do Tribunal de Justiça de São Paulo, anulou no sábado um decreto municipal que restringiria a circulação de pessoas acima de 60 anos nas ruas de São Bernardo do Campo (SP). A medida começaria valer a partir de ontem e previa multa de R$ 200 em caso de reincidência no descumprimento. Na decisão, o desembargador afirmou que “a adesão ao confinamento domiciliar, neste momento um gesto cívico, depende exclusivamente do livre convencimento do cidadão”.

ATÉ TRUMP RECUOU

Já vimos por aqui que o infectologista Anthony Fauci, que faz parte da força-tarefa dos EUA para conter a covid-19, discorda totalmente das falas e ações de Donald Trump em relação à doença. E que tem começado a expor em público, cada vez mais, suas posições. Pois ontem ele declarou que, pelos seus cálculos, entre 100 mil e 200 mil pessoas devem morrer no país. Até agora, já são mais de 125 mil casos e 2,1 mil mortes por lá.

Pouco depois, o presidente recuou da sua ideia de que todas as medidas de isolamento deveriam sem encerradas antes da páscoa, que cai no próximo dia 12. Em entrevista coletiva, disse que elas vão ser mantidas pelo menos até o fim do mês.

PELO MUNDO

No mundo todo, já são mais de 660 mil casos em 183 países. E foram pelo menos 31 mil mortes. A Itália segue como o país com maior número de mortes (cerca de 10 mil, em 92 mil casos confirmados).

Mas a Espanha está no encalço. Também já ultrapassou a China e tem mais de 6,5 mil mortos. Agora, o governo decidiu endurecer o confinamento, estabelecendo a limitação total, exceto de trabalhadores de atividades essenciais. A medida vai durar até no mínimo o dia 9. Demorou muito para ser tomada por conta, claro, dos medos do “mercado”. A situação em Madri é tão ruim que foi necessário abrir dois necrotérios improvisados. Um, numa pista de patinação de um shopping. Outro, num estabelecimento público abandonado.

E o Japão, que tem controlado bem sua curva desde o começo dos casos, viu uma série de recordes desde a semana passada. No domingo, teve o maior número de casos registrados em um único dia em Tóquio: 68. O primeiro-ministro Shinzo Abe prometeu um  pacote de estímulos de US$ 135 bilhões para proteger a economia, e a governadora da capital, Yuriko Koike, pediu que as pessoas evitem sair de casa nas próximas semanas.

Aqui perto, a Argentina decidiu prolongar sua quarentena por mais duas semanas. Não foi uma decisão fácil: veio após uma reunião de mais de oito horas em que o presidente Alberto Fernández conversou com ministros, governadores e equipes de saúde e economia. No dia 12, a medida vai ser reavaliada e pode ser novamente estendida. Lá, hoje, as pessoas só podem sair para comprar comida e produtos de farmácias. E mais de seis mil pessoas já foram processadas por furar a quarentena.

No continente africano, o número de casos confirmados ainda é pequeno, mas quase todos os países já começam a impor restrições à mobilidade. Está todo mundo preocupado com a fragilidade de muitos dos sistemas de saúde e com os muitos locais onde prevalecem habitações informais em cidades muito povoadas. Na Costa do Marfim, por exemplo, as pessoas estão proibidas de viajar da capital para o resto do país, onde os recursos de saúde são limitados. Há também várias nações com toques de recolher e fronteiras fechadas.

Um dos países mais afetados do continente é a África do Sul, que tem agora mais de mil casos, com duas mortes confirmadas. É também um dos que tem as mais duras medidas, e já há problemas nos primeiros dias do confinamento obrigatório, que deve durar três semanas. A polícia disparou tiros de borracha contra centenas de pessoas que estavam na porta de um supermercado em Joanesburgo; na sexta, 55 pessoas foram presas em uma favela por descumprir as regras. E a ação policia não vem sem relatos de abuso: segundo moradores, mesmo aqueles que cumpriam as ordens foram agredidos.  

NA LINHA DE FRENTE

Na quinta, um episódio do podcast “Today, Explained”, produzido pela Vox, entrevistou o médico Calvin Sun, que atua em uma emergência na cidade de Nova Iorque. Uma parte do relato é especialmente impressionante porque Sun fala que, há duas semanas, leva a sua máscara para a casa e a coloca no forno, na tentativa de manter o equipamento de proteção individual efetivo. Procurado, o governo negou que haja falta de máscaras no momento ao que o médico rebateu: “Espero que isso não seja uma piada, não vi nada disso ainda”. 

Por aqui, a BBC Brasil coletou relatos ainda piores, feitos de maneira anônima por medo de retaliação. Por conta da falta de máscaras, médicos ou se expõe a grandes riscos ou se recusam a realizar procedimentos que salvam vidas. “Segundo Ricardo [nome fictício], nesta semana, um paciente com covid-19 precisou ser entubado emergencialmente na UTI, mas a médica de plantão não tinha máscaras disponíveis. Esse tipo de procedimento é um dos que deixam os profissionais de saúde mais expostos ao vírus. ‘Ela fez o procedimento mesmo assim. E tem mais de 60 anos. Decidiu encarar (o risco). No dia seguinte, aconteceu a mesma cena, mas outro profissional falou que não iria fazer, porque não ‘queria ser mártir’”, escreveram os repórteres Leandro Machado e Rafael Barifouse.

Há diretores de hospitais afirmando para suas equipes que a recomendação de uso desses equipamentos pela Organização Mundial da Saúde é exagerada, há médicos comprando os próprios EPIs – e a compra individual do tipo mais seguro de máscara entre os três modelos existentes poderia causar “um motim” entre os outros trabalhadores que recebem o tipo menos seguro… Há, em suma, um princípio de caos em um momento em que as internações começam a se multiplicar. “Para mim, o maior problema que estamos enfrentando é que não existe uma organização uniforme das informações. O Ministério da Saúde fala uma coisa, entidades médicas e secretarias (estaduais) falam outra. Se isso tudo gera uma certa ansiedade nos médicos, imagina na população”, resumiu o diretor de um grande hospital público de Brasília que na matéria se identifica como Lúcio.

Em tempo: o Hospital Sírio-Libanês, um dos mais ricos e bem-equipados da rede privada brasileira, contabilizou ao menos 90 profissionais afastados com coronavírus na última sexta-feira.

E o Sindicato dos Médicos de São Paulo já recebeu 77 denúncias de falta de EPIs em hospitais privados e públicos do estado. E outras 30 de fluxo errado de encaminhamento de casos suspeitos, além de outras denúncias. O MP estadual abriu inquérito para apurar.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

11 − dez =