por Marcelo Firpo*, no CEE
Usar o poder da palavra, da escuta e do silêncio ativo neste momento é algo precioso, numa sociedade marcada pelo consumismo compulsivo e sem tréguas, para refletir. Precisamos nos manter calmos, atentos e fortes, até porque nossa saúde mental é estratégica para enfrentarmos com vitalidade o contato com o vírus que virá, mais cedo ou mais tarde. Nossa saúde de corpo e alma também é importante para quem faz parte ou cuida dos grupos de risco (idosos e doentes crônicos com diabetes, hipertensão e asma), ou quando somos responsáveis por crianças cheias de energia em casa que nos pedem cuidado, atenção e amor. Para cuidar dos outros e do mundo, precisamos também cuidar de nós mesmos com mais profundidade e sensibilidade, dos amigos, de quem genuinamente amamos, dos vulneráveis que mais necessitam. Cuidar também implica compreender o presente e transformá-lo na direção de outros futuros que poderão superar a crise e melhorar o mundo. Essa é uma das lições que mulheres, ecologistas, povos e comunidades tradicionais têm nos dado cotidianamente.
Sem dúvidas, uma questão central é: o que seremos e faremos quando voltarmos ao estado normal pós-pandemia, seja lá o que isso significa, e se é que voltaremos à normalidade? Certamente a resposta não é trivial. Neste texto, tecerei breves comentários e pistas sobre possíveis transformações a partir do que tenho lido, pensado e intuído. Tentarei ser cuidadoso, não bombástico nem premonitório, combinando reflexões, alertas e possibilidades diante da crise que vivemos.
Para Ailton Krenak, intelectual indígena que escreveu recentemente Ideias para adiar o fim do mundo, a crise é uma oportunidade para a humanidade despertar e corrigir rumos. Ele nos alerta: “Tomara que, depois de tudo isso, não voltemos à chamada normalidade”. A esperança é que possamos aproveitar o momento de crise e pausa forçada pela pandemia para aprendermos a aprender quem somos, como nos relacionamos uns com os outros e com a natureza, e o que não está indo bem na forma como pensamos, sentimos e agimos no mundo.
Uma primeira reflexão: a pandemia reforça a ideia de que vivemos uma época na qual as fronteiras entre normalidade e anormalidade se diluem. O tempo curto do desastre e da urgência estão a se propagar velozmente em escalas que intercruzam espaços e lugares em todo o planeta. Esse alerta já estava presente faz tempo nos discursos de intelectuais críticos, ambientalistas e autoras como Naomi Klein no seu livro A Doutrina do Choque: a ascensão do Capitalismo de Desastre. É como se os filmes de guerra e catástrofes saíssem como mágica das telas e fizessem parte de nossas vidas. A diferença vira pesadelo quando não temos a opção de interromper a diversão com um click na TV.
Encontramo-nos numa situação paradoxal: a crise como continuum deixa de ser acidente, vira substância e normalidade ou, se preferirem anormalidades normais, expressão cunhada por Bryan Wynne para entender acidentes em sistemas complexos. Na guerra convencional a destruição controlada ocorre no front de batalha nos momentos em que os combates são travados, resguardando de alguma forma a normalidade das retaguardas. Mas na atual crise do turbo capitalismo neoliberal globalizado, nas guerras de drones e nas tragédias ecológicas, o front da anormalidade catastrófica bate às nossas portas e nos encurrala, embora de diferentes e desiguais maneiras.
Essa consciência mais global da crise contemporânea como um desastre contínuo não é propriamente nova. A origem do conceito de vulnerabilidade social nos estudos sobre desastres nos anos 1990 já mostrava que os grupos mais vulneráveis viviam um desastre cotidiano. Embora nem sempre seja percebido por especialistas em desastres, a teoria da vulnerabilidade indicava que as fronteiras entre os desastres naturais e tecnológicos são artificiais, pois todos são irremediavelmente sociais em suas origens e consequências. Essa teoria foi fundamental para explicar porque terremotos, vulcões, furacões ou vazamentos em fábricas químicas com características físicas semelhantes podem matar alguns poucos nos países mais ricos e resilientes, e centenas de milhares nos países mais pobres e vulneráveis na América Latina, Ásia e África. A vulnerabilidade no mundo contemporâneo é uma expressão das desigualdades produzidas pela opressão e falta de solidariedade.
Pensem nas mudanças climáticas e eventos como enchentes, secas e furacões; nos desastres tecnológicos como os nucleares, do petróleo, da mega mineração e da poluição química; nas pandemias como o coronavírus (e, antes, seus predecessores, como o H1N1), tudo isso nos mostra como na atualidade as fronteiras entre os tempos de guerra e paz, de crise e normalidade diluem-se e os mais vulneráveis sofrem mais. Num mundo de conexões virtuais crescentes que nos enchem de informações sem fim, a crise atual nos faz sentir simultaneamente mais próximos e perdidos enquanto pessoas, com laços comunitários que se esvaem, assim como as promessas de um mundo mais seguro feitas pela modernidade em nome do progresso econômico, científico e tecnológico. Precisamos, sim, neste momento de isolamento físico, mas isso não deveria significar isolamento social. Em realidade, precisamos nos aproximar mais de nossa humanidade, de nós mesmos, das pessoas, de nossos sonhos e das organizações que os viabilizam e precisamos transformá-las.
Eis aqui uma segunda reflexão: a velocidade da transmissão e a gravidade potencial da covid-19 ajudam a quebrar barreiras, pois começam a ser levantados para um amplo conjunto das pessoas os véus da vulnerabilidade humana e socioambiental em sua característica sistêmica e global. Afinal, a diferença entre as regiões mais desenvolvidas e superiores com relação às subdesenvolvidas não significa uma clara proteção frente aos riscos. A novidade é que as manchetes da mídia hegemônica começaram a se abrir às injustiças antes invisibilizadas, na medida em que os alicerces do modelo único do crescimento econômico sob a lógica do mercado estão abalados. Isso vem ocorrendo rapidamente seja pela iminência da crise econômica que se aproxima e assusta o mercado, seja pela descoberta de que mesmo certas elites privilegiadas poderiam ser as próximas vítimas. Até mesmo um milionário CEO de um banco privado pode vir a óbito, como aconteceu recentemente em Portugal.
Há, portanto, um profundo abalo da cartilha da salvação neoliberal e universal do progresso, cujas marcas são o crescimento econômico sem limites, os sacrifícios que grande parte da população deve realizar para alcançá-lo (fim do Estado protetor e das políticas públicas redistributivas) e a recompensa final pelo acesso ao paraíso do consumismo desenfreado. Não é à toa que se têm mesclado os fundamentalismos econômicos (neoliberalismo), religioso (falar em nome de Deus e propagar castigo e recompensa) e político (fascismo social, autoritarismo, racismo, machismo e supremacismo). A realidade que nos cerca, porém, apresenta-se com a força da pandemia de outra maneira, e essa dissonância cognitiva entre cartilha e realidade, apesar de todas as fake news e manipulações, pode abrir brechas, levantar véu se liberar nossa imaginação criativa para reinventar outros mundos possíveis.
As mortes por Covid-19 levantam os véus das quatro (in)justiças que temos trabalhado no Neepes [Núcleo Ecologias, Epistemologias e Promoção Emancipatória da Saúde]: social, sanitária, ambiental e cognitiva. Esta última é uma contribuição dos referenciais pós-coloniais, em especial da expressiva obra do sociólogo Boaventura de Sousa Santos. As quatro (in)justiças, isoladas ou combinadamente, têm sido cotidianamente enfrentadas e denunciadas faz tempo por movimentos sociais, povos e comunidades excluídos principalmente do Sul Global.
São muitos e radicais os casos de violências e mortes produzidos por séculos e décadas de colonialismo e capitalismo financeiro neoextrativista, que marcam a vulnerabilidade socioambiental e as injustiças por detrás, porém sua invisibilidade é socialmente produzida e retrata os véus do poder. Cito alguns exemplos recentes: os desastres criminosos de Mariana e Brumadinho que permanecem impunes; a liberação e o uso descontrolado de agrotóxicos que envenenam ecossistemas e até escolas junto às plantações de soja; o assassinato e contaminação de indígenas em áreas de garimpo; a expulsão e violência contra populações camponesas responsáveis pela segurança e soberania alimentar que trazem alimento de verdade ao país; os pobres sem saneamento básico e moradia digna nas cidades; os negros assassinados pelo racismoe por realizarem suas práticas espirituais de matriz africana.
Além disso, existem fortes indícios das origens sistêmicas da pandemia no modo de produção que destrói a natureza, elimina biodiversidade e cria sistemas agroalimentares que, como diz a indiana Vandana Shiva, não produzem alimentos,mas sim commodities (mercadorias), degradação e doenças. Para o biólogo evolucionário Rob Wallace, autor em 2016 do livro Big Farms Make Big Flu, a produção industrial de animais como porcos, frangos e gado bovino, além dos grãos que os alimentam como a soja, faz parte de uma das tragédias socioambientais de nosso tempo. Além de serem sistemas de tortura animal em massa, destroem ecossistemas, e seu metabolismo industrial favorece a introdução de novos microrganismos patogênicos adaptados a ambientes cada vez mais urbanos e densos. Pandemias como a Covid-19 já vinham sendo anunciadas como possibilidade nos últimos anos, mas o agronegócio e os impérios alimentares continuam sob a proteção do véu midiático que não discute nem divulga tais associações.
As injustiças ambientais expressam simultaneamente a gravidade da crise ambiental e sua profunda desigualdade. Relatório da ONU publicado em 2019 estima que as condições ambientais são responsáveis por quase 25% das mortes e doenças evitáveis no mundo, a falta de acesso à água potável mata 1,4 milhão de pessoas por ano principalmente por diarreia e parasitas, a poluição atmosférica provoca entre 6 e 7 milhões de mortes prematuras todos os anos, e aproximadamente 3,2 bilhões de pessoas, principalmente os povos dos campos, florestas e águas, vivem em regiões degradadas pela agricultura intensiva (agronegócio) e pelo desmatamento. Estudo recente da Universidade de Stanford aponta que a redução da poluição na China provocada pela redução das atividades econômicas após o início da Covid-19 impediu cerca de 50 mil mortes prematuras, e outros estudos certamente ampliarão esses dados para outras regiões do mundo, como São Paulo. Claro, isso não deveria significar que a pandemia faz bem ao meio ambiente, mas sim que existem vulnerabilidades sistêmicas que persistirão enquanto não ocorrerem mudanças estruturais na forma como produzimos riquezas, desigualdades e tragédias.
Temos pela frente uma encruzilhada na tragédia em curso: diante da proximidade da morte, podemos nos humanizar e enxergar outras possibilidades de viver, conviver e nos reinventarmos como pessoas e como sociedade, ou manteremos e reforçaremosos véus que ocultam as origens da crise e nossas vulnerabilidades? O foco exclusivo no coronavírus pode esconder as razões da crise e silenciar outras agendas importantes, tal como ocorreu antes no Brasil com o foco no controle do mosquito para controlar a dengue, zika e chikungunya em vez de se lutar pelo saneamento básico, contra a pobreza e as desigualdades sociais.
O momento parece ser propício para levantar os véus das muitas agendas necessárias ao enfrentamento das injustiças. Por exemplo, através da recuperação do papel redistributivo do Estado e das políticas públicas promotoras da cidadania e da dignidade; da defesa do SUS público, das universidades e centros de pesquisa; do retorno à cooperação multilateral solidária entre países e regiões que breque o perigoso confronto entre os dois gigantes da globalização, um em ascensão (China) e outro em declínio (EUA); o apoio à reforma agrária e à agricultura familiar agroecológica e sem veneno; a reversão da PEC da morte que limita gastos com saúde e educação; a ampliação do saneamento rural e nas cidades; a reforma urbana com a oferta de moradias dignas e de transporte público com qualidade; da luta contra o desmatamento e a demarcação de terras indígenas e quilombolas; da mudança de políticas econômicas visando a transição pós-extrativista com a redução de incentivos ao agronegócio e à mega mineração, e o incentivo às atividades econômicas intensivas em trabalho mais justas e sustentáveis; da organização dos direitos trabalhistas numa sociedade precarizada, que possivelmente piorará no curto prazo nos setores econômicos que cresceram a reboque do consumismo desenfreado. Agora eles serão afetados pela crise, como companhias aéreas, hotéis e restaurantes, parques temáticos e eventos culturais, todos repletos de freelancers, iludidos empreendedorese seus empregados sem organização nem proteção social.
O foco no controle do vírus também pode retirar do debate público processos em curso que atentam contra a democracia e ampliam o fascismo social, como o fortalecimento de um Estado de exceção, policial, militar e autoritário; a violência contra indígenas, mulheres e negros; a investigação sem responsáveis pelo assassinato de Marielle Franco; a preparação pelos EUA de uma possível guerra contra a Venezuela, com o apoio militar do Brasil.
Haverá coragem, força interior, clareza e organização política para, diante de tantos interesses poderosos, levantar os véus que despertam corações e mentes para as transformações ou, pelo contrário, véus serão mantidos para manipular e impedir as mudanças?
Essa bifurcação e os caminhos que virão certamente dependerão de muito trabalho, energia, esforço, cuidado, sabedoria e arte. Se é verdade, como muitos dizem, que nada será como antes depois dessa pandemia, que possamos também dançar e cantar juntos com Milton Nascimento e Beto Guedes no Clube da Esquina: “Eu já estou com o pé nessa estrada / Qualquer dia a gente se vê / Sei que nada será como antes amanhã…”
* Coordenador e pesquisador do Núcleo Ecologias, Epistemologias e Promoção Emancipatória da Saúde (Neepes/ENSP/Fiocruz).
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