A crise sanitária e a necessidade da consciência do “homem planetário” solidário com todo o gênero humano e com toda a natureza. Entrevista especial com Domenico Marrone

Segundo o teólogo, discutir o governo da ciência é fundamental para aprofundar a democracia

Por: Patricia Fachin | Tradução Luisa Rabolini, em IHU On-Line

O protagonismo da ciência no enfrentamento da pandemia de covid-19 tem gerado, de um lado, posições negacionistas entre aqueles que questionam seus procedimentos e teses e, de outro, o seu endeusamento entre aqueles que a veem como a última baliza para tomar decisões normativas. Nessa discussão, pontua o teólogo Domenico Marrone, “emerge como é necessário incluir o tema do governo da ciência, com o objetivo de aprofundar a democracia”, porque “o governo da ciência”, pontua, “é um problema de democracia”. “A ciência pode apresentar uma palavra de autoridade específica, mas não tem o poder de pronunciar a palavra exclusiva ou definitiva sobre as escolhas sociais. Devem ser estabelecidas as condições para o credenciamento público dos diferentes saberes; é necessário identificar as formas de controlabilidade pública de tais conhecimentos, os diferentes pressupostos metodológicos e axiológicos que inspiram seu funcionamento; nenhuma forma de saber pode ser afirmada apenas com base em uma predefinida validade-verdade”, diz. 

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, ele menciona que “a incerteza da ciência torna particularmente delicada a posição daqueles que, investidos na tarefa de intervir juridicamente e encontrando-se diante de uma pluralidade de descrições e previsões heterogêneas, devam escolher a tese a ser privilegiada de maneira normativa”. Por isso, adverte, as decisões sociais devem “ser filtradas em múltiplas sedes e através de uma pluralidade de conhecimentos, comparações e negociações”. 

Pós-pandemia, Marrone ressalta que as políticas sanitárias e econômicas para enfrentarmos crises futuras devem ser fundamentadas no amadurecimento de uma “consciência do homem planetário, que sinta solidariedade com todo o gênero humano e com toda a natureza”.

Domenico Marrone é doutor em Teologia e diretor do Istituto Superiore di Scienze Religiose S. Nicolail Pellegrino, da Facoltà Teologica Pugliese, em Bari, Itália.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – A pandemia de covid-19 é o maior risco já enfrentado pela humanidade ou temos que relativizá-la, apesar do alto índice de contágio?

Domenico Marrone – Acredito que a pandemia de covid-19 constitui um risco para a humanidade que certamente não deve ser subestimado, mas ao mesmo tempo não pode ser absolutizado, porque existem muitas outras emergências em que vivemos no mundo contemporâneo em nível planetário: emergência climática, emergência migratória, emergência alimentaremergência de pobreza etc. Essas emergências também causam inúmeras mortes, especialmente no hemisfério sul do planeta, que parece serem irrelevantes para o hemisfério norte. 

IHU On-Line – O senhor tem dito que é preciso “buscar um equilíbrio dos riscos” neste momento e propõe uma distinção entre risco efetivo e risco potencial. O que significa equilibrar riscos e como pensa que seja possível equilibrá-los pós-pandemia? Como a distinção proposta ajuda neste sentido?

Domenico Marrone – As medidas a serem tomadas contra riscos efetivos são diferentes daquelas a serem tomadas contra riscos potenciais. Em alguns casos, o risco é parcialmente quantificável e, em outros, é puramente potencial. Por exemplo, o “caso Lombardia”, na minha opinião, era um risco efetivo, não era um risco potencial. Havia cálculos claros que diziam que havia uma chance de a epidemia se disseminar e isso aconteceu. E esse foi um risco efetivo. As medidas a serem tomadas contra os riscos efetivos são diferentes daquelas a serem tomadas contra os riscos potenciais. Por exemplo, enquanto para a maioria das regiões da Itália o risco de epidemia era potencial, para algumas regiões do norte o risco era efetivo e a quarentena deveria ser aplicada imediatamente. Mesmo no pós-epidemia, essa distinção deve permanecer para avaliar zona a zona os eventuais riscos efetivos e potenciais, com base na disseminação dos contágios

IHU On-Line – A ciência tem sido invocada pelos políticos para justificar suas decisões em relação à pandemia. Contudo, quais são os limites da própria ciência e da comunidade científica neste contexto? 

Domenico Marrone – Cada vez mais e em numerosos âmbitos, a comunidade científica, chamada a se pronunciar em relação a uma questão de ciência que exija regulação normativa, é incapaz de expressar uma posição certa e unívoca, mas apresenta uma variedade de teses díspares ou parcialmente divergentes. Foi o que assistimos neste contexto de pandemia através de um carrossel de virologistas, em que cada um tentava roubar a cena do outro, desmentindo as afirmações do outro. 

Essa incerteza da ciência torna particularmente delicada a posição daqueles que, investidos na tarefa de intervir juridicamente e encontrando-se diante de uma pluralidade de descrições e previsões heterogêneas, devam escolher a tese a ser privilegiada de maneira normativa. Seria interessante ter ciência dos critérios que a política adotou ao assumir as diretrizes de alguns virologistas e não de outros, uma vez que os nomes de ponta da ciência virológica foram mantidos fora da força-tarefa governamental. 

IHU On-Line – O senhor advertiu que um possível governo da ciência pode ser um problema para a democracia. Em que momento a ciência pode ultrapassar a sua finalidade e se tornar um problema para a democracia? 

Domenico Marrone – Hoje emerge como é necessário incluir o tema do governo da ciência, com o objetivo de aprofundar a democracia. O contexto europeu e mundial foi abalado por emergências ligadas precisamente a medidas regulatórias inadequadas e ineficientes no campo científico. As mudanças implementadas nas relações entre ciência e sociedade estão incidindo profundamente nas estruturas institucionais e no conjunto de direitos relacionados à noção de contrato social e, em particular, à ideia de Estado de direito. Os poderes reconhecidos aos cidadãos nos governos democráticos liberais têm sido principalmente o de concorrer para determinar a orientação política com a indicação do voto. A exigência de tornar os mecanismos e procedimentos de tomada de decisão mais visíveis e transparentes dentro das instituições constituiu, em tempos mais recentes, uma forma adicional de (pelo menos potencial) participação na ação do governo, através do que é cada vez mais reconhecido como um “direito de saber” (right to know) por parte dos cidadãos.

Até agora, o conjunto de garantias que entra na definição de Estado de direito não afetou as garantias específicas relativas ao saber-poder da ciência, que também se tornou uma grande parte das escolhas jurídicas e governamentais. A nomeação dos especialistas, a instituição e funcionamento dos comitês científicos e técnicos e o próprio saber científico, sendo considerados expressão de um método objetivo e certo, não foram considerados matéria relevante e problemática do ponto de vista da tutela que o Estado oferece aos cidadãos. A necessidade de introduzir garantias e direitos específicos, bem como de promover uma maior participação democrática da sociedade civil, hoje diz respeito especificamente à regulação da ciência, âmbito em que o afastamento dos cidadãos até agora tem sido quase total.

Essa visão da relação entre ciência e sociedade não desconhece a natureza privilegiada da linguagem científica. A ciência pode apresentar uma palavra de autoridade específica, mas não tem o poder de pronunciar a palavra exclusiva ou definitiva sobre as escolhas sociais. Devem ser estabelecidas as condições para o credenciamento público dos diferentes saberes; é necessário identificar as formas de controlabilidade pública de tais conhecimentos, os diferentes pressupostos metodológicos e axiológicos que inspiram seu funcionamento; nenhuma forma de saber pode ser afirmada apenas com base em uma predefinida validade-verdade. Nesse sentido, o governo da ciência é um problema de democracia: aqui o termo democracia não faz alusão à prevalência da maioria, mas ao caráter aberto e não autoritário de nenhuma linguagem (nem mesmo a da ciência). Toda decisão social deve ser filtrada em múltiplas sedes e através de uma pluralidade de conhecimentos, comparações e negociações. Além disso, a juridicidade torna-se o local onde são garantidos procedimentos de objetiva composição de saberes diferentes através da participação de diferentes sujeitos.

IHU On-Line – O princípio da precaução é invocado com frequência para evitar que medidas de alto risco sejam tomadas em diversas áreas. Entretanto, o senhor chama a atenção para o contrário: para os riscos de dar autônoma dignidade jurídica ao princípio da precaução, inclusive, pós-pandemia. Quais são as ambiguidades desse princípio e por que ele não deve ter precedência pós-pandemia?

Domenico Marrone – Acredito que o significado correto do princípio da precaução não impõe a passividade e a inação, mas, pelo contrário, requer:

  • aprofundamentos científicos (de preferência a serem confiados a agências nacionais ou supranacionais e validados por meio da ferramenta da “peer review” [revisão por pares]);
  • o envolvimento transparente e total de todas as partes interessadas nas decisões administrativas e, de maneira mais geral, o amplo uso de sistemas procedurais e de gestão, a serem considerados como a resposta mais eficiente à incerteza do conhecimento;
  • análise de custos-benefícios também de natureza qualitativa;
  • a identificação de medidas de cautela a serem inseridas de maneira não traumática na legislação vigente e proporcionais ao risco, que – apesar de incerto em suas dimensões – deve ser identificado e (no mínimo) sério.

IHU On-Line – Parte do debate em torno da pandemia de covid-19 girou em torno do dilema de salvar a vida ou salvar a economia, mas, na sua avaliação, uma hierarquia de valores é desnecessária. Do ponto de vista normativo, que critérios devem justificar a precedência ou adesão a determinados valores? 

Domenico Marrone – Eu acho que é necessário distinguir mais claramente entre valores e normas. Porque a partir do mesmo valor, mesmo a partir de uma hierarquia compartilhada de valores, podemos obter diferentes normas morais; não apenas isso, mas também das diferentes juridificações. Todos podemos concordar sobre os valores, podemos até concordar sobre sua hierarquia, podemos até concordar com as normas a serem aplicadas quando elas se tornarem normas jurídicas, mas ainda há outros pontos de vista a serem considerados, tanto no nível do direito nacional como internacional. Isso também se aplica ao estudioso de ética que é consultado pela autoridade política para um parecer. O que, no fundo, estou propondo não é tanto um apelo genérico aos valores, mas um apelo mais diferenciado a eles.

IHU On-Line – Como a tradição casuística pode auxiliar no debate acerca dos valores, normas e decisões a serem tomadas pós-pandemia, para que seja possível agir moralmente diante da incerteza das consequências das decisões a serem tomadas?

Domenico Marrone – A casuística mostra uma sabedoria ética vinculada à gestão de ações das quais não conhecemos todas as consequências e a questão sobre a validade das normas individuais quando essas normas, por sua vez, são apenas prováveis e não seguras. Naquela época, dizia-se que as normas morais eram mais ou menos prováveis, dependendo da posição de autoridade daquele que as definia, a Bíblia, o Papa ou os teólogos.

Falar da probabilidade era uma probabilidade medida sobre a autoridade daqueles que a apoiavam. Hoje não podemos mais evidentemente dizer que uma doutrina moral é mais ou menos provável a partir da autoridade de quem o afirma. Mas vale a partir da capacidade argumentativa, mesmo que os argumentos de autoridade em parte ainda desempenhem seu papel. Na gestão da pandemia, por meio de muitos e intrincados decretos emitidos pelo governo, nem sempre a capacidade argumentativa foi evidente e persuasiva. 

IHU On-Line – Que respostas a tradição casuística pode dar aos problemas da relação homem-natureza?

Domenico Marrone – Evidentemente, hoje não podemos apenas copiar, mas valeria a pena reexaminar a casuística para ver se, aplicada aos nossos problemas da relação homem-natureza, ainda poderia ter algo a nos dizer. A esse respeito, acho que nós, contemporâneos, devemos ser sensibilizados de maneira mais precisa, por exemplo, pelo vínculo presente entre compromisso ambiental e a opção preferencial pelos pobres, pelos mais fracos, presentes e futuros. Sabemos que existe esse vínculo. O compromisso ecológico é um compromisso até para os mais fracos, mesmo que evidentemente o dano ecológico afete a todos. Há muitas pessoas que pensam a partir dessa constatação, que no fundo o vínculo entre os dois problemas não exista mais, enquanto na minha opinião o vínculo permanece, apesar do fato de que o dano ecológico afete ricos e pobres.

Podemos recorrer ao fato de que o dano ecológico atinja a todos para fazer um apelo também aos ricos e dizer que eles têm deveres ecológicos como todos nós, isso sim, mas não vamos esquecer que, se houver uma leitura especificamente cristã do desafio ecológico, penso que devemos ter presente esse vínculo estrutural que liga o compromisso ambiental e a opção preferencial pelos pobres. A relação homem-natureza deve ser repensada, com base precisamente nos impactos que o homem causou nela.

IHU On-Line – A pandemia de covid-19 também trouxe à tona inúmeras discussões sobre a ameaça aos direitos fundamentais, mas também é possível observar a excepcionalidade de as pessoas serem privadas de alguns desses direitos momentaneamente, considerando a crise atual. Na sua avaliação, direitos fundamentais foram desrespeitados por causa da pandemia? 

Domenico Marrone – Não creio que os direitos fundamentais tenham sido violados e ameaçados, uma vez que as medidas tomadas foram destinadas a salvaguardar a vida humana. Deve ser especificado, no entanto, que as limitações impostas nem sempre tiveram uma base jurídica, nem todas eram necessárias, idôneas, razoáveis e geralmente proporcionais. Na prática legal, esses requisitos devem dar origem a avaliações complexas e a um equilíbrio complicado, a fim de chegar a decisões caso a caso.

IHU On-Line – Que novos elementos a pandemia de covid-19 traz para pensarmos acerca dos direitos fundamentais daqui para frente?

Domenico Marrone – Percebemos que enquanto alguns direitos fundamentais – como liberdade de consciência ou de expressão – não dependem necessariamente do contato social, outros necessariamente dependem. Salvaguardar especificamente a saúde pública é um motivo para limitar as outras liberdades. A sociedade – os portadores de direitos fundamentais – deve estar ciente de que as restrições servem principalmente ao imperativo moral de proteger vidas humanas e não devem ser usadas, fora poucas deploráveis exceções, para outros fins políticos.

IHU On-Line – Passado o choque inicial da pandemia de covid-19, que pegou a todos desprevenidos, que questões centrais podem nos auxiliar a lidar com um segundo momento: o pós-pandemia? 

Domenico Marrone – As instituições sanitárias precisam desenvolver melhores planos de emergência para pandemia. Elas também devem prever planos econômicos mais solidários para toda a família humana e superar formas de egoísmo de Estado. É necessário amadurecer em todos a consciência do “homem planetário” que sinta solidariedade com todo o gênero humano e com toda a natureza.

Foto: Pixabay

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